sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O silêncio dos velhos

Os velhos, de tão velhos,
(podendo a velhice ir dos 0 aos 100, variando de pessoa para pessoa)
conseguem prever, ainda em fase teórica, não todos, mas a grande maioria dos imprevistos que a prática pode gerar. Esta capacidade de prever um imprevisto pode parecer absurda mas não é: a linguagem tem destas limitações, uma vez que pretende servir alguém no geral e ninguém em particular.
O que serve aos velhos pode não servir ao novos e vice-versa.
E para os velhos quase não existem imprevistos na fase prática. 
Aos velhos, todos os imprevistos surgem na fase teórica, logo, na prática deixam de ser imprevistos. 
Ainda assim continuamos a dar o mesmo nome ao que o velho se esqueceu de anotar num papel e ao que o novo, de tão novo, jamais poderia ter escrito em algum lado.
Compreende-se esta limitação da linguagem, se assim não fosse não haveria árvores suficientes no mundo inteiro para imprimir um, apenas um, exemplar de dicionário que compilasse todas as palavras necessárias a servir com exactidão a diversidade humana. 
Apenas o silêncio, que não carece de impressão, consegue abarcar essa diversidade, se considerarmos que é uma linguagem que tende para o infinito; um buraco negro onde a linguagem, de tão densa, deixa de se conseguir ouvir. 
E aí, finalmente, a harmonia, as proporções correctas do silêncio.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ávida e amável, imagine-se...

Assexuada: mulher que não se interessa por sexo.
Amável: mulher que não se interessa por ser amada.
Ávida: mulher que não se interessa pela vida.


Não existem mulheres ávidas e amáveis, ouviu vezes sem conta.
Assexuadas, sim, existem.
Ávidas e amáveis,
nunca.

Ela,
ávida e amável, enfiou o vestido de florzinhas minúsculas pela cabeça,
e lançou-se ao rio com os bolsos cheios de pedras. 
Três pedras apenas, pequenas, em cada um dos bolsos,
pequenos.

Ávida e amável, esperou que os bolsos pequenos cheios de pedras fizessem o seu trabalho.
Ávida, amável e frustrada, regressou a casa com o vestido molhado pela cintura.
Incrédula, colocou e voltou a tirar as pedras dos bolsos dezenas de vezes.
Não restavam dúvidas: estavam cheios, os bolsos.
Não havia razão para que não funcionasse.

Ávida, amável e sem mais do que seis pedras,  
mandou encurtar os bolsos do vestido de florzinhas minúsculas,
para que ficassem ainda mais pequenos, 
para que pudessem ficar ainda mais cheios.

Por não conseguir enchê-los, de tão cheios que já estavam inicialmente,
optou  pela solução radical.
Ávida e amável, mandou costurar os bolsos e ponto final.
Mais cheios seria impossível.
Infalíveis, pensou.

- Não precisa de mexer nas florzinhas. Estão bem assim, minúsculas. Cosa só os bolsos.

Ávida e amável, enfiou o vestido de bolsos cosidos e florzinhas minúsculas pela cabeça,
e lançou-se ao rio.
Ávida e amável, esperou que os bolsos cosidos fizessem o seu trabalho.
Nem a maré, cheia, ajudou.
Ávida, amável e frustrada regressou a casa com o vestido molhado até aos joelhos. 

Certa de que o problema só poderia estar nas florzinhas minúsculas,
certa de que não seria possível mandar costurar florzinhas,
minúsculas,
certa, tão certa, de que florzinhas minúsculas não usam vestidos de bolsos pequenos,
resignou-se à sua sorte,
ávida e amável.

Pelas flores,
e só pelas flores,
não amáveis, nem ávidas,
apenas flores, minúsculas,
decidiu viver para sempre.

Com o tempo e o hábito,
(certamente mais com o hábito)
deu por si a  viver ávida, amável e feliz,
imagine-se,
para sempre.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Gregueriando

Greguería 100mg - Troika relief.  
Leia atentamente o folheto informativo.


- O pinguim é o pianista do Pólo Sul.

- O urso polar é um peluche carnívoro.

- As reticências são um ponto final gago.

- A ostra é um berbigão que chupa rebuçados.

- A zebra é... A zebra é... A zebra é...
(Lamentamos mas este animal está riscado)

- A morte é um frio sem casaco.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Noves fora, nada.

Estava quase certo de que a água era molhada.
Por não suportar viver na dúvida,
atirou-se ao rio.
Constipado, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que o amor não existia.
Por não suportar viver na dúvida,
namorou trinta e nove loiras, apesar de só gostar de morenas.
Sozinho, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que o fogo queimava.
Por não suportar viver na dúvida,
acendeu um fósforo perto demais.
Desfigurado, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que a dúvida era eterna,
Por não suportar viver na dúvida,
respirou fundo e decidiu esquecer essa coisa das certezas.
Em jeito de último beijo, deu-se ao luxo de esclarecer mais uma,
só mais uma:

Estava quase certo de que a corda era mais forte do que ele.
Por não suportar viver na dúvida,
atou-a ao chuveiro e pendurou-se nela.
Gelado, nunca mais respirou e nunca mais teve dúvidas.

Desta vez, acertou na dúvida errada.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O rato e (ou) o elefante

I wish i could wish a mouse, so that i could stop wishing the f**** elephant.
(Em inglês para dar mais credibilidade ao assunto)

Foi mais ou menos isto que cresci a ouvir o meu pai dizer: se queres um rato, deseja um elefante.
Não era bem assim que o dizia, até porque o meu pai não é lá muito bom com animais e muito menos com inglês, mas na essência acho que a ideia está lá: deseja o imposssível para teres o máximo possível.
Impossível e possível juntos na mesma frase devia ter sido desde logo motivo de suspeição, mas foi o pai que disse, e assim sendo...

Gosto muito da teoria e até acho que faz algum sentido, mas como todas as teorias, é relativamente fácil de questionar, basta que tenhamos demasiado tempo livre.
Eu não tenho, mas a minha cabeça insiste em tirar folga mesmo quando eu tenho de trabalhar. E a minha cabeça de folga é um perigo. Em vez de se concentrar no que deve - bebidas com ou sem gelo, vinhos tintos ou brancos, do Douro ou do Alentejo... - gosta de me desafiar com assuntos menores: ratos e elefantes.

E não me venham cá dizer que um elefante é demasiado grande para ser um assunto menor. Experimentem  preparar um bloody mary no espaço minúsculo de uma galley de avião, enquanto se perdem com pormenores de tamanhos, para verem o sarilho que arranjam.

- 150 ml de sumo de tomate
- uma pitada de sal
- 6 gotas de molho inglês
- uma pitada de pimenta preta moída
- 4 gotas de sumo de limão
e, claro,
- 1 dose de gin.

Não é gin, é vodka!
(Eu avisei...)

Se calhar da próxima vez que alguém me pedir uma bebida complicada, vou responder-lhe com a teoria do meu pai,
- Ora aqui está o seu sumo de laranja.- E viro as costas de imediato. Não fico ali em pé à espera que me façam perguntas. Toda a gente teve um pai, não hei-de ser eu a única a saber destas coisas.

Ainda bem que sonhaste alto, rapaz, porque se tivesses desejado um sumo de laranja, tinha-te calhado um copo de água, SEM GELO. Por isso delicia-te com o sumo, que eu já te dou um cartãozinho do meu pai. Assim ajustas contas directamente com ele.

Pois é pai, esta cena do sonho e da realidade seria toda muito engraçada e útil se pudessemos sonhar em inconsciência. Eu explico, que não gosto de coisas confusas:
Se o tipo do 2A pudesse ter desejado um bloody Mary sem se dar conta de que o desejava, estaria agora felicíssimo da vida com o Compal de laranja que lhe apresentei. Não é o caso. Sonhar sem se saber que se sonha é coisa impossível, a menos que se esteja a dormir. E como todos sabemos, sonhar a dormir é apenas uma pequena fatia do sonho em geral. Por isso, se eu desejo um elefante, passo a saber que o posso ter, porque já o tive em sonho. Como queres que me contente com um hamster ranhoso?

Pois é paizinho, esqueceste-te de explicar como se faz isto da resistência à frustração, ou da resignação ao possível, ou da compreensão do que se pode ou não ter. Esqueceste-te e agora sou eu que vou ter de explicar ao tipo engravatado do 2A porque é que faz todo o sentido servir-lhe um Compal de laranja quando ele pediu especificamente um bloody mary.

Sinceramente a minha vontade é dizer-lhe,
- You bloody ignorant! Talk to may dad cause i really dont know what else to say.

Paizinho, o hamster não é assim tão ranhoso, até é querido e tudo mais, mas eu queria mesmo era o elefante. Achas que ainda vou a tempo?