quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sueca de jardim

          A vida comove-me sempre mais que a morte.
Não que a morte não me comova, claro que comove, mas com a vida... com a vida é outra coisa. A morte, zás!, já a vida, zááááá..., não sei se me faço entender. Provavelmente não. A vida comove sem precisar de fazer barulho, sem se dar por ela. A morte não. A morte pinta as beiças de vermelho vivo e grita-nos aos ouvidos. A vida não tem beiças, tem uma boca pequena, vagamente animada com um rosa discreto e sussurra ao ouvido de quem a puder ouvir. Quase só respira. Quente. E a um só ouvido. Fá-lo sempre a um só ouvido. O outro, o ouvido, deve estar entretido com o resto que acontece, e que, não sendo a vida, é fundamental que exista, para que a vida possa acontecer.
          Melhor agora?
          Ainda não?
          Estão desatentos, vocês!
          Capaz de a vida vos respirar ao ouvido livre - têm um ouvido livre, espero!- e ninguém lhe obedecer. E depois bem podem libertar o ouvido, ou os dois, até, que a vida já não se importa.
          É simples,
          a vida záááááááááÁÁÁÁÁÁáááááááááááááÁÁÁÁááááááááá...
          Como o mar.
          Se não se põem a pau,
          se não nadarem,
          vem uma onda e ÁS!

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Banquete

         
          A miúda tem qualquer coisa, mas não sei o que é.
          À conta desta coisa que, sem nome, não é mais do que coisa nenhuma, agora faço listas para tudo. Sem listas não existo. Poupe-me a esse olhar enviesado, o senhor ao fundo. Não lhe agrada, andor. Não entende nem lhe apetece esperar, faça o favor. Acalmem-se os restantes, não pretendo divagar à cerca da memória e da idade, e de como as listas ajudam a retardar o fedor do envelhecimento. Nada disso. São outras as listas de que falo, são as nossas listas. Espanta-se provavelmente porque nunca precisou de as escrever, mas que as tem, tem. Desengane-se se acha que sou caso único. Aliás, agradeça-lhes pois sem elas não poderia brilhar, como brilha, nas conversas de café, ou nos jantares de família, ou nas reuniões de liceu, ou na conversa casual, inocente, com a amiga encalorada que encontrou no supermercado. Faz sempre calor nos supermercados. Menos nos iogurtes. Até nas carnes, refrigeradas. Pedaços de corpos nas montras; o porco dividido em freguesias num cartaz lá no alto; o puto que berra porque quer o puzzle do porco; a mãe que não, que aquilo não é um puzzle; o pai que sim que o puto é um mimado por culpa da mãe que não tem mão nele; a loura nauseada que é inadmissível, que os pais não deviam trazer as crianças às compras; e o porco, ao lado da vaca, que podiam tão bem ser um puzzle. Duas febras de Arroios a ver se o puto se cala.  
          À parte de um ou outro disparate proferido, talento que herdei de família, não costumo brilhar nos jantares. Não sei o nome do filme que adorei, nem do actor pricipal, quanto mais do secundário, ou da personagem, meu Deus, nem da personagem, Ana Sofia?; não sei como se chama o restaurante vegetariano perdido no meio do salgueiro-chorão de um jardim de Lisboa, com luzinhas de Natal o ano inteiro, como é que não te lembras do nome, rapariga? Luzinhas de Natal o ano inteiro, de que mais precisas?; Também não sei o nome do primeiro Presidente da República de Portugal, nem da primeira, nem da segunda, nem da terceira. Nem sei se são três as Repúblicas, acho que sim, mas, de facto, não sei. Há quem confunda achar com saber. São coisas diferentes em profundidade. Uma é chapinhar na poça, a outra é dar um mergulhinho de mar. Para muitos, salpicar a cabeça é quanto baste. Para mim não. Desculpem. Se não engoli, pelo menos, dez pirolitos, não, não sei. E normalmente não sei mesmo, porque não mergulhei. Não experimento aqui nenhum elogio à minha profundidade de conhecimentos, nada disso. Deus sabe que não padeço desse mal, da profundidade. Invejo quem padeça, mas também não desgosto desta existência arejada, sem amarras de sabedoria. Sei o que amei e nada mais, sempre sem saber porquê. Prefiro assim, surpreendo-me mais. Depois, se calhar saber, é uma festa. É de gestão de expectativas que aqui se fala. Se esperar nada, há-de me chegar qualquer coisinha. Bastante medíocre este pensamento. Ou não. Acho que o meu pai diria que não, por isso, para mim não. Mas medíocre na mesma.
          Muito medíocre a minha prestação em jantares, dizia eu. Nunca nada de concreto para dizer, o que, mesmo entre amigos, dificulta a comunicação. Interessam-me sempre mais as impressões das coisas do que as coisas em si. É mais fácil falar das coisas do que da sua impressão. Mais fácil não será, mas mais rápido é certamente. E não temos muito tempo, é certo. Também é mais fácil ouvir, imagino. Claro que mais fácil, se mais rápido. Por isso agora faço listas de tudo. Dos livros que li, dos autores que gostei, dos que nem por isso, dos restaurantes onde fui, dos espectáculos a que assisti. E assim já posso ser à vontade, e quem sabe brilhar um bocadinho ao jantar. Saco as minha listas e depois calem-me se puderem. Fui ver o último filme de tal e tal, da trilogia de tal e tal, realizado em 19tal e tal, fulano tal e tal faz um papel estrondoso, e estou agora a ler o livro tal tal, de fulano tal tal, um talento este americano, apesar de nascido nos confins do estado de tal e tal...
          - No estado de tal e tal? Mas isso fica onde?
          Faço um esforço para não desfazer em pedaços as listas que tenho. Em nenhuma delas encontro a resposta à pergunta. Inúteis uma a uma. Inútil tu também. De tantos tais e tais sobra-te um magnífico Isso fica onde? Encho-me de R´s: Respiro fundo, retomo a compostura, rasgo-as devagarinho, e respondo num sorriso redondo
          - Ora, deixe cá ver, se o puto não desfez o puzzle, há-de ser ali por baixo da vazia.