Em tempos houve duas coisas que desejei secretamente: a máquina de bilhetes do revisor do autocarro e uma pena de pavão.
Secretamente porque nunca me passou pela cabeça que tanto uma como outra fossem acessíveis. Secretamente, porque as julgava irremediavelmente inalcançáveis. Se soubesse que a concretização de um sonho estava ao alcance de um simples pedido...
Sempre me disseram que não se mexe no que não é nosso, e eu que nunca fui cumpridora, cumpri estupidamente esta regra: a máquina do revisor é do revisor e a pena do pavão é do pavão.
Deliciei-me nestes sonhos, isso posso garantir. Apesar do desejo imenso, a aceitação do destino da não concretização fizeram-me saborear cada momento com uma tranquilidade que não me lembro de ter igualado em nenhuma outra altura da vida. Será que foi mesmo assim? Provavelmente estou para aqui a fabricar memórias.
Não sei se sofri com isso e se sofri, não me lembro, por isso para o caso não tem a menor importância. Lembro-me isso sim, do desejo e isso sim, importa e muito. Como é que nunca me passou pela cabeça a frase,
- Mãe, podes pedir ao revisor que me deixe ser eu a tirar o meu bilhete?
Ou
- Pai, podes roubar uma pena ao pavão?
(Deixo a valentia para os homens. A mãe que peça delicadamente ao revisor e o pai que se faça homem e arranque uma pena ao pavão, que entre tantas que arrasta pelo chão, uma a menos não lhe fará falta seguramente)
Nunca pedi. Nunca pensei sequer pedir. Que estupidez. Que frustração gratuita.
No autocarro escolhia sempre um lugar de coxia, por oposição à maioria dos miúdos que se esgadanhavam por um lugar à janela. Dezenas de olhares vazios a mirar o mundo escorregadio lá fora, enquanto resumiam problemas quotidianos no meio do trânsito intenso da hora de ponta. E eu a sonhar lá dentro, indiferente às árvores que corriam para trás. Por várias vezes tive vontade de dar um grito:
- Para onde olham? Está tudo cá dentro.
Corpo apoiado no braço da cadeira, pés a balançar o peso das botas a ritmo cadenciado, cabeça no corredor a espreitar por entre os bancos de napa grená (ainda é uma cor, o grená? Ou foi-se para sempre como a moda das botas ortopédicas?)... e ele ao fundo, a alinhar teclas verdes e vermelhas com o polegar móido, antes de fazer saltar o bilhete num gesto seco de jackpot.
Daquela máquina de chumbo (não sei se era chumbo, nunca lhe toquei, mas parecia chumbo) saiam bilhetes ridículos, pouco dignos de tamanho porte. Assim uns quadradinhos minúsculos de papel branco e gramagem pobre, com letras roxas desbotadas, ao estilo de senha de almoço do liceu.
A máquina do revisor tem história, já o pavão nem tanto. Ou melhor, teve na altura. A história morreu faz anos. Lembro-me da paixão mas sem pormenores e hoje, com o distanciamento adequado, espanta-me que me tenha acontecido. Há lá coisa mais desajeitada que um pavão? Perna curta a segurar o balanço desajeitado daquele corpo de pato, cabecinha de garnisé a fingir delicadeza e às costas, um enorme véu de penas rastejantes e coloridas para enganar as damas. E enganava. A mim enganou-me. No meio deste cenário, quero acreditar que foram as cores que me deram a volta à cabeça. Quanto às cores não tenho nada a dizer sr. pavão. Sim senhor, o que eu gostava de ter tocado naquelas cores.
Hoje em dia, posso fazer isso tudo se me apetecer, mas não me apetece.
Cada coisa no seu lugar. Tenho medo de descobrir que afinal as penas dos pavões não são assim tão coloridas e que as máquinas de chumbo são iguais aos bilhetes miseráveis que dela saem. Por medo deixo-me estar quieta à espera do próximo sonho que vou fazer questão de não concretizar.
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