sábado, 31 de dezembro de 2011

Géneros literários, ou lá o que é...

Tragédia:
- Tens medo da morte?
- Da minha não.

Comédia:
- Tens medo da morte?
- Da tua não.

Épico:
- Tens medo da morte?
- Não sei. Bora experimentar?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Carta ao Pai Natal (fora de horas, claro)

          Querido Pai Natal,

          Ando há dias com esta carta às voltas na cabeça, mas por culpa da urgência dos doces e dos salgados, só hoje a escrevo. Não é urgente, por isso pouco importa a data. As rabanadas eram para sábado, já o que te quero pedir é para quando puderes, sem pressa.
          Desconfio que não faz muito sentido escrever-te a ti, mas não encontrei destinatário adequado ao pedido, por isso abuso do espírito da quadra  para evitar ficar para aqui a falar sozinha.
          Podes-me ouvir?
          Se não te apetecer nem oiças, basta-me que acenes com a cabeça de vez em quando. Pode ser?
Sabes o que é Pai Natal, tenho uma dúvida há anos para a qual ainda não consegui encontrar resposta, e como estou prestes a completar trinta e cinco anos, começo a ter alguma vergonha de ainda não perceber nada disto.
          Diz-se por aí - numa conjugação reflexa do presente do indicativo, demasiado genérica para o meu gosto - que se deve amar com cuidado. Parece que o coração é matéria delicada e mais vale não abusar. Eu tenho abusado, é certo, mas mais por mera inabilidade do que por convicção.
          Depois dos trinta, altura em que nos damos conta de que as birras não valem a pena; de que ele não vai voltar a respirar se estiver já morto; de que um dia nem a tua mãe vai lá estar para te dar dois açoites no rabo e ordenar-te que pares, ou para convencer o pai a comprar o cubo mágico à menina; de que a mãe nem sequer vai lá estar para que lhe grites à vontade o que gostarias de gritar ao patife do defunto; de que um dia vamos olhar em frente e só veremos uma linha; a da frente, claro; enfim, depois de me dar conta de que a vida é mesmo a vida e não há birra cheia de baba que mude isso, achei que devia ser uma pessoa melhor. Depois de alguma investigação científica sobre essa vasta matéria que é "uma pessoa melhor", entendi por bem que devia observar antes de agir, decidir antes de agir e mesmo depois de tudo isso, devia respirar, depois respirar ainda um pouco mais, e só então agir.
          Tentei isso tudo o melhor que pude, mas infelizmente errei ao acreditar que podia ser uma pessoa que não sou. Já tinha errado à primeira quando não quis ver que a vida era a vida, e agora, estúpida, voltei a errar ao achar que podia ser outra que não esta. E esta, apesar de respirar já bastante melhor, não sabe viver feliz de outra maneira que não seja a esticar as mãozinhas em concha e dizer,
          - Toma, é teu, mas vê bem o que fazes com ele.
          Se for preciso ainda explica,
          - Vês, não há mistério nenhum: tem dois ventrículos que funcionam na perfeição, uma aurícula esquerda saudável quanto baste, uma aurícula direita melindrosa, e uma artéria aorta um bocadinho mimada.      
          Mas se o tratares com jeitinho, vive-te feliz até aos cem anos.
          E se mesmo assim não se conseguir fazer entender, vai buscar um bisturi afiado e faz um cortezinho suave, enquanto esclarece,
          - Espreita aqui com cuidado. Mas não toques! Estás a ver ali ao fundo aquela veiazinha minúscula? Ali não deves mexer, senão aborrece-se. Prometes?
          Depois pega numa agulha fininha, tão fininha que quase não se vê para não deixar marcas, e cose a incisão com a delicadeza das modistas de outros tempos. Uma compressa esterilizada só por precaução e,
          - Toma, é teu novamente, mas vê bem o que fazes com ele.
          É certo que esta que sou podia meter as mãos nos bolsos em vez de andar para aí com elas estendidas, e já agora podia guardar o coração no lugar dele. Mas para isso teria de prescindir de toda a parte boa de viver com o coração bem vivo. Teria de prescindir do deslumbramento das coisas bonitas, de se sentir inchada de felicidade por culpa do sol baixinho das manhãs de inverno, da felicidade imensa que chega com as coisas parvas, de te amar com a demência do último dia do Universo, da última hora do Universo, do último minuto do Universo, do último segundo do Universo...  Teria até de prescindir do rímel desbotado por causa do reclame tolo da Coca-Cola... Mas como isso está fora de questão, observou, decidiu, respirou, respirou ainda uma vez mais, e comprou um rímel à prova de água.

          Confuso, Pai Natal? Imagino que sim. Mas não te preocupes, se não conseguires trazer-me a segurança das coisas certas, traz-me ao menos o carro de praia das Barriguitas, para eu me distrair.

          Um beijo enorme,
          S.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Morrer em bom

          Apenas o líder de um regime autoritário consegue morrer de uma doença ilustre, que dá pelo nome pomposo de "cansaço físico e psicológico da sua dedicação à vida e ao povo". A mim cheira-me a uma subespécie primitiva da tuberculose ou do herpes labial, mas quiseram chamar-lhe assim, e quem sou eu para contestar.
          O comum dos mortais morre de cancro, de doença cardíaca, ou de cirrose. Já o incomum dos mortais, como felizmente é o caso, morre sem fraldas mijadas, nem tubos enfiados pela goela abaixo; morre barbeado, perfumado, bem vestido e, claro, delicadamente durante o sono. Líder tirânico que se preze nem às portas da morte põe em causa a dignidade e perpetuação do seu regime.
          Parabéns senhor Kim Jong-il!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ad scribendum

          Sei, desde sempre, que o meu pai estudou no seminário. Aliás, sempre julguei saber que o meu pai estudou no seminário. Ontem, porém, descobri que o meu pai estudou no seminário, e chorei.
          Tive sempre um enorme orgulho em ter um pai que sabia latim, que lia convictamente os escritos majestosos cravados nas fachadas de edifícios públicos importantes.
          -Estão a ver ali meninas: Domvs ivstitiae. Sabem o que quer dizer? - Inquiria num tom de voz tranquilo e sábio, de cada vez que passávamos à porta de um tribunal.  As meninas, inchadas de admiração, desencostavam-se prontamente do banco do carro, e esticando o pescoço num esforço hercúleo para a sua pequenez, acendiam as luzes do palco, abrindo-lhe as portas à vitória,
          - O quê? O quê? Onde?
          - Ali, na parede do tribunal. Significa palácio da justiça, e é o sítio onde se aplicam as leis. Está escrito em latim, uma língua antiga do tempo dos romanos. - Concluía, sorridente de vaidade. E as meninas, boquiabertas, retomavam serenas o encosto. Estávamos seguras, ao volante encontrava-se um homem que sabia coisas importantes e que por sorte nos calhara em pai.
          Era frequente exibirmos no colégio tamanha glória. Deleitávamo-nos a ostentar a grandiosidade do nosso pai, gigante, maior que todos os outros. Ainda que não soubéssemos ao certo a relevância de tal facto, parecia-nos quase sobre-humano que o nosso pai (que sorte, logo o nosso) conseguisse ler e entender letras enormes, todas elas maiúsculas, esculpidas em pedra na gravidade das fachadas imponentes, ou proferidas ao mundo inteiro por um ser superior vestido de branco.
          - Urbi et Orbi. À cidade e ao mundo - Repetia baixinho a saudação do Papa. E depois explicava,
- No latim os artigos integram os substantivos sob a forma de terminação. Ou seja, o "à" e o "ao" são substituídos pela terminação "i" em latim. Por isso, esta expressão jamais poderia significar "da cidade para o mundo" como estás a dizer, Sofia. Esta sabedoria de pacote de farinha33 quase me valeu o ódio de um professor de faculdade que um dia ousei corrigir.
          Para enorme desgosto da minha avó, que o elegeu entre onze irmãos para frequentar o seminário, o meu pai nunca foi um homem fé. Mas apesar de descrente na religião, tinha um amor inabalável  à escrita e à correcta utilização das palavras, que considerava sagradas. Eu e a minha irmã tivemos o privilégio de crescer a acreditar que saber escrever correctamente era imprescindível para qualquer ser humano.
          - Mesmo que queiram ser varredoras de rua quando crescerem, devem conhecer a vossa língua. Sem isso não vão a lado nenhum. - Apregoava frequentemente.
          Mesmo que na altura não encontrássemos relação pertinente entre uma vassoura e a Língua Portuguesa, lá fomos crescendo imbuídas num enorme respeito pelas letras. Porém, à época não fazíamos ideia do que estava por trás de tudo isto. Ríamos desbragadamente dos relatos que o meu pai fazia da sua primeira noite no seminário, do choro aflito no meio escuridão, e principalmente do colchão de palha que o salvou do embaraço de uma cama molhada pela manhã. O que as meninas riam, ignorantes, por saber que um dia o pai também fez chichi na cama, de palha.
          Tenho a certeza de que o meu pai me perdoa tamanha arrogância inconsequente, própria da idade. Já eu não estou certa de me conseguir ilibar tão cedo. Pelo menos não antes de conseguir processar o que li ontem.
          É fácil retirarmos gravidade à má sorte de um miúdo de seis anos, que agora vemos radiante, a gargalhar de si próprio enquanto delicia as meninas com histórias passadas. Mas quando essa mesma história nos chega de alguém que não sabemos se agora ri, repensamos tudo. Essa história chama-se "Manhã submersa" e chegou-me pela mão de VF, por quem, por estar morto, me posso declarar pública e irremediavelmente apaixonada. Não sei se sabia rir antes de morrer e acho que nunca saberei. Espero que sim. Prometo, contudo, não voltar a rir da foto do meu pai enfiado num fato preto dois números acima, e com os pés afundados num par de sapatos gigantes, com que lograria regressar do seminário,anos mais tarde, com os pés apertados. Mas porque gosto demasiado de rir, provavelmente não vou conseguir manter a promessa. E assim sendo, acho mais prudente prometer apenas que vou rir bem alto, sim, mas sempre com o olhar cúmplice, para ti, das coisas que eu agora também sei.

          (Peço desculpa ao meu pai, pelos erros que este texto provavelmente tem. Podemos rir-nos disso também.)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sem título (o que no caso já é um título)

Há dez anos sobreviveu à morte.
Chorou tanto que foram precisos 784 mil lenços de papel aromatizados para lhe secar as lágrimas.
Ele, indiferente ao odor a alfazema, continuou morto.
Ironicamente tudo leva a crer que ela não chegará a sobreviver à vida.
Mas desta feita não vai precisar de lenços de papel.
Menos mal.

domingo, 27 de novembro de 2011

Usados de qualidade

Esteve ali anos esquecido. Tão esquecido que se o vendesse poderia anunciar:
"Usado, como novo"
Todas as divisões quadradas têm quatro. Num guardo a mala de viagem semi-aberta, no outro repousa atravancada a mesa de computador que não uso, e no terceiro (sim: E no terceiro) escondo um escadote ferrugento. Esta divisão quadrada foi até hoje triangular. Não sei bem explicar porquê; simplesmente não me acontecia fazer lá nada. Cheguei a comprar-lhe uma poltrona - com o entusiasmo com que compraria um segundo peixe de dois euros, para fazer companhia a um primeiro peixe de dois euros. Para o bicho não ficar ali sozinho, coitadinho - mas também a poltrona;
"usada, como nova"
e duas almofadas coloridas (aprendi a lição dos peixes), e claro;
"usadas como novas".
Hoje apeteceu-me mudar o destino. E mudei. E felizmente não se vendem cantinhos, nem mesmo com poltronas e almofadas. Tão felizmente que se agora o quisesse vender teria de anunciar:
"Não se vende"

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Assim se ama na Pérsia



Foi assim que encontrei Hafez. Morto e chorado. Nunca tinha visto devoção tão grande que não se prendesse com religião. Tentei falar com algum dos muitos devotos que visitavam o túmulo naquele dia, mas o inglês ingénuo da maioria dos iranianos e o meu débil farsi, não ajudaram. Quando finalmente encontrei duas mulheres com quem pude trocar mais do que dois sorrisos de conversa, perguntei curiosa o motivo de tanta comoção. Estava certa de que a resposta seria que para além de um grande poeta persa, Hafez tinha sido também um muçulmano irrepreensível e um fiel seguidor do Corão. Mas a resposta foi bem mais simples (ou não) da que imaginei. Entre véus escorregadios a denunciarem cabelos finamente cuidados, risos comprometidos em rostos excessivamente maquilhados, e alguns gracejos em farsi, a resposta à minha pergunta foi afinal: O Amor.                                          
Num país em que o destino feminino nasce traçado, mulheres de todas as idades confiam emocionadas  o seu futuro aos poemas de um defunto. Estranho? Não. Quando o real nos escapa à vontade, resta-nos sonhar que o irreal nos pode contornar a sorte. Nunca cheguei a saber a fortuna desta mulher. Nem a real, nem a sonhada.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Aforismo?

Morrer é fácil. Viver também. Para ambos é preciso descobrir as combinações certas, químicas e instantâneas no primeiro caso, físicas e duradouras no segundo. Lembra-te apenas que a vida não é um pudim.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quem quiser que coma, e quem puder que cale

Sr. Manel que me perdoe, mas falta-me o ar se fico calada. Acredito que é homem inteligente, capaz de compreender que a minha zanga nada tem que ver com ele. Apesar de tudo, é lá que hei-de voltar, sempre que quiser lavar o carro. Sendo este sempre, como é bom de ver, enquanto o Sr. Manel lá estiver.Considero-me uma tipa pacata, não uma tipa exemplar, que alívio, mas tolerante, e sobretudo consciente de que existe mais mundo para além do meu, mesmo quando não o consigo entender. No fundo sou uma crente. Acredito sempre que há uma justificação lógica para tudo aquilo que à primeira vista se me apresenta absurdo.
Se um carro trava bruscamente à minha frente, mesmo que quase me esborrache na sua traseira, não acredito de imediato que se trate de um idiota ao volante. Considero primeiro a hipótese de lhe ter entrado um cisco no olho, ou de ter tido uma quebra de tensão, ou de ter simplesmente cometido um erro.
Sou daquelas que acredita que existem apenas duas, ou três; na pior das hipóteses quatro pessoas puramente estúpidas no mundo inteiro, contabilizando já os ligeiramente anfíbios como pescadores, marinheiros ou trabalhadores de plataformas petrolíferas. Todos os outros travaram seguramente por terem uma justificação forte para isso, como uma criança chinesa de dois anos perdida na rua, por exemplo.
Agora que defendi os meus 58 quilos de gente, posso passar a explicar o que hoje me aborreceu na bomba onde trabalha o Sr. Manel.
Tornou-se moda nos últimos tempos as estações de serviço terem as bombas em pré-pagamento. Alegadamente para se precaverem dos clientes menos cumpridores que fogem sem pagar. À primeira vista não se desvenda problema de maior. Vamos à caixa primeiro e abastecemos depois. Não é grave. Mas há um dia (há sempre esse dia) em que tudo muda. E hoje foi um desses dias para mim. Estava com pressa, queria atestar o depósito, e tinha um vale de desconto para utilizar. Combinação fatal esta, entre alguém nestas condições e uma bomba com um letreiro pendurado a anunciar:
"PRÉ-PAGAMENTO OU PAGAMENTO NA BOMBA"
Dirigi-me à caixa e pedi em tom agradável,
- Não se importa de desbloquear a bomba 10 para eu poder atestar o depósito?
- Tem de fazer o pagamento na bomba, se quiser atestar.
- Sim, bem sei, mas tenho um talão de desconto para utilizar.
- Então tem de pagar aqui primeiro.
- Sim, bem sei, mas eu gostava atestar.
Depois de algumas bolas para lá, e outras tantas para cá, chegámos juntos à inovadora conclusão de que atestar o depósito e usar um talão de desconto são realidades incompatíveis. Antes que tivéssemos tempo de dar as mãos em agradecimento aos Deuses por este momento de improvável osmose, mandei a chata da tolerância esperar por mim no carro, e passei-me à antiga. Uma pessoa não pode estar sempre calada a comer toda a merda que lhe ponham no prato. Já fiz esse papel, e bem feitinho tanto quanto me lembro,
- Vá Sofia, ninguém se levanta da mesa sem comer a sopa toda.
Depois de sustida a respiração, lançava-me ao prato sem pestanejar.
- Acabei! já posso sair da mesa?
Para quem não sabe, eu já saí da mesa, e já comi toda a sopa que tinha para comer na vida, por isso, o que eu quero mesmo agora é o livro de reclamações. Ninguém sai da mesa sem eu escrever tudo o que tenho a escrever! E que já agora foi isto:
"Exmos Srs,
Desagrada-me profundamente a política de desconfiança que a Galp tem vindo a praticar para com os seus clientes. Sou uma pessoa séria, e exijo é ser tratada como tal. Do mesmo modo que os Srs legitimamente exigem que eu pague o combustível que abasteço. Não sei se estão a entender a lógica do: "eu faço a minha parte e tu fazes a tua". Eu não tenho de andar para trás e para a frente a fazer o vosso trabalho. É a Galp que deve encontrar uma solução eficaz para os clientes fugitivos, SEM PENALIZAR OS  CLIENTES CUMPRIDORES. Bem sei que a minha ginástica vos fica bem mais económica do que um simples sistema de cancelas capaz de fazer um controlo eficaz, mas atrevo-me a dizer que o preço do litro da mercadoria que os Srs comercializam, chega  e sobra.
Atentamente,
Sofia Cunha (ao momento com 237 batimentos cardíacos por minuto)"
Pensarão alguns estar na presença de uma princesa que julga ter nascido para ser servida. Infelizmente para a explicação simplória desses alguns, não é disso que se trata. Tão pouco se trata de um surto psicótico-comuna. Bom, talvez tenha alguma coisa de comuna.
O preço do barril subiu, e a gasolina subiu. Certo!
O preço do barril desceu, e a gasolina não desceu. Errado! Mas lá aguentámos sem refilar. E assim sendo: certo!
Os senhores de mala de couro a tira-colo deixaram de nos abastecer o carro, e a gasolina não desceu. Errado! Mas é mesmo assim, os tempos estão a mudar e temos de nos habituar. É o progresso. E assim sendo: certo!
Então e os senhores das malas a tira-colo a engordar as contas do desemprego?
Então a poupança resultante desse desemprego a engordar as contas das gasolineiras e não as nossas?
O IKEA vende móveis mais baratos porque partilha o trabalho connosco. Queres uma cama de casal  barata? Podes ter, mas acartas com ela às costas para a caixa, e depois para casa. Está certo! É justo. Tudo claro. Jogo limpo. A isto sim podemos chamar progresso, digo eu.
Não me caem os parentes na lama por andar para trás e para a frente na estação de serviço.  Mas assusta-me pensar nas milhares de pessoas que num dia não acharam muito grave ter de andar com uma estrela ao peito (é só uma estrela, que mal pode fazer?), e no dia seguinte andavam todos de pijaminha às riscas e corte de cabelo radical.
Desculpa mãe mas desta sopa eu não gosto. Tem agrião e mete-se-me tudo nos dentes. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mesa para vinte e nove, ou oito

Cheguei demasiado cedo. Em dias como este dez minutos de antecedência são mais do que suficientes. Meia hora é uma eternidade. Como é que só te lembraste disso depois de lá estares sentada a fingir naturalidade?  Ninguém aguenta trinta minutos de à vontade fabricado. Dez minutos no máximo, dizem as leis.
(E não me perguntem quais leis. As leis, ponto.)
Esgotei rapidamente os sms desnecessários que tinha mesmo de enviar, bem como as esquinas vazias para olhar... De tempos a tempos, o pezinho a balançar em sinal de ansiedade.
Puseram-me uma pastinha verde garrido na mão que mais ninguém tinha. Fui a primeira nova aluna a chegar. Fui a primeira a estar sozinha numa mesa do bar. Bom, a minha pastinha também foi a primeira a usufruir da negligência da dona e isso de alguma forma traz justiça à situação. Apeteceu-me engoli-la. Ou então perguntar ao rapaz da mesa ao lado
- Desculpa, esta pastinha verde garrido é tua?
Não tive tempo, porque ele
- Já não vais precisar desta mesa?
- Não, podes levar se quiseres.
Já não vais? Ensandeceste? Tenho idade para ser tua mãe pá! As mães não dizem pá, acho eu. A minha dizia.
Sim, leva a porra da mesa, e as cadeiras também. Deixa-me aqui sozinha numa mesa ridícula no meio das tribos de alunos veteranos de joelhos encolhidos colados uns aos outros. Vinte e nove numa mesa de quatro. Achas que faz diferença mais uma mesa ou menos uma mesa? Parece-te razoável deixares-me aqui nesta ilha de solidão, para passarem a ser vinte e nove numa mesa de seis? Uma mesa e duas cadeira foi o que me deixaste. As mesas estão aos pares por alguma razão, sabias? Quem és tu para mudar isso tudo? Como é que adivinhaste que eu não esperava ninguém? Eu que até tive o cuidado de não balançar o pezinho, eu que nunca cruzei os braços nem as pernas para evitar a linguagem corporal defensiva. Sabes o que custa aquele ar negligente com o braço apoiado na cadeira do lado? Eu tinha duas mesas e quatro cadeiras. Uma fortaleza. E tu, cheio de ti próprio arruinaste isso tudo com um simples
- Já não vais precisar desta mesa?
- VOU - Devia ter gritado.
Deixaste-me sozinha numa mesa com duas cadeiras. Podias ter levado também a cadeira em que eu  tinha o braço apoiado. Escusavas de a ter deixado ali perdida, sem mesa, com a minha pastinha verde garrido à vista de todos. Pior do que me deixares sozinha numa mesa, foi deixares-me na companhia de uma cadeira nua. Nua! Sabes o que é nua?
- Alunos do curso de Escrita Literária, venham comigo. Sala 7.
Tiveste sorte miúdo. Escapaste-te de boa porque tenho de ir para as aulas, senão ias ver.
Éramos oito na sala. Número mais que suficiente para uma tribo.
No intervalo para café o bar quase vazio e a ordem das mesas reposta.
Apenas uma mesa ocupada por sms desnecessários, e uma pastinha verde pousada na cadeira.
- Puxa mais uma mesa Sofia. Três chegam para nós todos.
- Desculpa, já não vais precisar desta mesa?
- Não, podes levar se quiseres.
Porém o pezinho a balançar mais do que nunca.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Provedor da bicharada pequena

1. Um elevado número (todos é muito, mesmo quando são só dois)  de Ácaros  tem reclamado pelo facto de a blogosfera em geral e o "Encalhando" em particular, persistir em confundi-los com o Caruncho.
2. O Ácaro é, comparativamente ao Caruncho, um bicho infinitamente mais popular entre o público em geral. Não há quem não tenha em casa uma mantinha remelosa cheia deles, para aquecer os joelhos nos serões mais frios. Já um soalho em madeira maciça, apetecível a uma tropa carunchosa voraz, não é para o bolso de todos (o caruncho refuta acusações de snobismo com relatórios de perícias médicas realizadas por vassouras pisteiras inglesas, que atestam a sensibilidade digestiva do Caruncho a soalho flutuante barato)
3. Independentemente das limitações médicas do caruncho, que muito me comovem,  não posso deixar de constatar que elas não são mais do que discussões paralelas que servem apenas para desviar atenções do cerne desta polémica: devem ou não o Ácaros sentirem-se humilhados por serem confundidos com o Caruncho?
4. Depois de profunda análise sobre esta questão, parecem-me justas as reinvindicações dos Ácaros, pelo que aqui fica a reposição da verdade:

Quem faz este chiqueiro...











... é o Caruncho e não os Ácaros.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Boas notícias

Se um ácaro consegue fazer isto:











Eu devo conseguir fazer isto:










E sem fazer tanto barulho...



terça-feira, 18 de outubro de 2011

Fschhhhhhh...












Ainda no outro dia tentava explicar aqueles balões a uma amiga.
- Sabes sim, aqueles pirosos de camuflado colorido...
Nada, nem uma vaga memória lhe avivou o rosto
- Não, não faço ideia do que falas...
Nada. Nem tão pouco improvisou uma mentira piedosa para me tranquilizar o espírito. Podias ter mentido Susana, um simples
- Tenho uma vaga ideia, sim...
ter-me-ia descansado.
Se calhar sonhei que fui feliz com aqueles balões que ninguém queria. Impossível. Lembro-me bem demais de os ver ganhar forma num instante.
Fschhhhhhh... E num segundo passavam de uma insignificância murcha a uma existência orgulhosa de peito inchado.
O que mais me fascinava nestes balões específicos era o momento único em que o ar injectado lhes dava forma ao camuflado colorido, instantes antes escondido na sua pequenez frôxa.
Fschhhhhhh... E aquele minúsculo patinho feio transformava-se de imediato num belo cisne esvoaçante. Por mim teria ficado ali horas ao pé do senhor que operava esta mudança. Qual Jardim Zoológico qual quê!  Por mim, fschhhhhhh... o dia todo, a tentar adivinhar as manchas coloridas que cada patinho feio escondia encolhidas. Intrigava-me que aquele processo fosse inverso ao da plasticina, e enchia-me de esperança saber que se podiam afinal separar as cores, outrora juntas. Com a plasticina isso não acontecia. Sempre que misturava as cores todas numa só bola, ficavam irremediavelmente juntas num castanho eterno. Já com estes balões, tudo era possível. De um bocado de borracha frôxo e de cor indecifrável, nascia instantaneamente um arco-iris de cores, assim que a botija de oxigénio fschhhhhhh...
(aquilo não era oxigénio, bem sei. Mas o que importa isso agora?)
Talvez tentasse fschhhhhh... nas minhas plasticinas um dia destes lá em casa. Mas onde poderia arranjar uma daquelas botijas cinzentas gigantes capazes de fschhhhhhh...? Era frequente vê-las empilhadas a um canto à saída do Hospital onde trabalhava a minha mãe.
Num hospital?
Estariam doentes os balões naquela época?
Agora entendo. Se calhar sucumbiram à doença, por isso nunca mais ninguém os viu.
Parece que recentemente, do outro lado do mundo, foi visto um rapazinho com uma molhada de sobreviventes na mão...
Corri a explicar-lhe que sem fschhhhhhh... não durariam muito mais, mas ao que parece a língua dele é daquelas que se escreve da direita para a esquerda, e convenhamos que hhhhhhhcsf não incha o peito a ninguém.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Do lameiro com amor

Talvez seja porque já não chove tanto como antigamente.
Ou talvez seja só porque já não é antigamente.
Antigamente inundavam-se os campos de cultivo com a água que escorria contínua e abundante das levadas. Os campos alagados explodiam em minúsculas margaridas de agradecimento na Primavera, e as pedras toscas que desenhavam os canais de rega forravam-se de musgo escorregadio para que a água escorresse sem dificuldade. Não se podia caminhar nos lameiros sem galochas, nem nas pedras dos canais sem cair. Estava tudo pensado ao pormenor para que a água seguisse o seu caminho livremente.
A mim parece-me que continua a chover tanto como antigamente, mas os prados devem estar doentes, só pode. Porque raio haveriam de estar a soro se assim não fosse? Quilómetros sem fim de mangueiras furadas, pretas e gordas, invadiram os campos. Amassam o pasto que não quer ser amassado, e penduram-se deselegantemente ao pescoço das amendoeiras, que só não as deixam cair por não saberem baixar os braços.
A água em tempos generosa, pinga agora em esforço apenas onde faz falta.
Não fazem falta as margaridas?
Não fazem falta as vacas barrosãs com meias de lama até ao joelho?
(Eu avisei. Não se pode caminhar nos lameiros sem galochas)
Não faz falta o musgo verde para o presépio?
E o presépio meu Deus? Que será agora do presépio?
Quero lá saber. O que eu queria mesmo era falar de amor, mas saiu-me isto das mangueiras...
Parece que no Natal há amor.
Por agora serve.

domingo, 21 de agosto de 2011

Quase fácil

De tempos a tempos, sem saber muito bem à procura de quê, volto aos meus livros infantis. Encontro sempre a resposta, o que no caso é fácil, uma vez que não sabia a pergunta. Se isto fosse um teste de Língua Portuguesa, tinha o "Insatisfaz" garantido, por não saber fazer corresponder a esta resposta,  a questão respectiva. Mas quem precisa de uma pergunta perante uma resposta destas?
- Ana Sofia, uma resposta é sempre consequência de uma pergunta.
Nem sempre professora, nem sempre.
Com a idade chegam-nos as artrites e as palavras caras. Tanto umas como outras acabam por nos arruinar a existência. As primeiras por degradação clara das capacidades físicas, e as segundas por obstrução óbvia à transmissão da mensagem.
- A mensagem é o que o emissor transmite ao receptor, não é professora?
As palavras caras, compridas e engalanadas, são seguramente o ruído. Servem mais para enobrecer o discurso e o ego de quem as usa, do que para esclarecer as dúvidas de quem as ouve. Tenho pena que me cheguem as artrites, mas fico bem mais desolada por saber que me chegarão também palavras em vestido de noite. O que quero dizer é geralmente simples, e por isso não precisa de brincos.
Gosto.
Amo.
Quero.
Não gosto.
Não quero.
Fico.
Vou.
Sim.
Caso sim.
Se uma coisa é quase a melhor coisa, é porque seria a melhor coisa se tal conceito existisse. Como existem várias melhores coisas, partilham todas o quase primeiro lugar "ex-aequo" da melhor coisa do mundo. Gosto de pensar que seria preciso um pódio gigante para dar medalhas a essas coisas todas. Gosto ainda mais de imaginar que te podia pôr lá num cantinho, na esperança que o júri não desse conta que não és uma quase melhor coisa, mas sim só a minha quase melhor coisa. Com sorte, ninguém dava por nada e trazíamos a medalha para casa. E se alguém um dia questionasse o prémio, eu diria tão simplesmente,
- Esta é a minha melhor coisa, o que a qualifica para quase melhor coisa do mundo.
Era esta a pergunta, professora?
Não sei se chega para o "Muito Bom", mas foi quase a melhor que consegui encontrar para te dizer isto.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

"TO bacco" e "TO be"

Desenvolvi recentemente uma paixão improvável por cigarros americanos esquisitos. Tudo por culpa de uma colecção de caixas de tabaco, que nem sequer me pertence. Desde então, tenho-me dedicado à fútil tarefa de escolher maços pela sua aparência.
- Queria um daqueles azul, com o índio na caixa, por favor.
- Qual? O American Spirit?
- Sim, esse, o do índio.
Contingências económicas motivaram-me a fumá-los todos.
Este do índio dizia na caixa, em letras minúsculas:
"100% additive free - natural tobacco"
Inocente, entendia-se. Por isso fumei-o sem culpa.
Talvez não tenha aditivos. Talvez até seja natural. Mas o que os senhores da tabaqueira não sabem, é que o tabaco natural pode ser apenas naturalmente aditivo. E foi.
O tempo de um tabaco natural corre devagarinho (corre devagarinho?), que é como quem diz, passeia-se-nos tranquilamente entre os dedos, sem aditivos comburentes que o apressem. Chega a apagar-se se nos deixamos embalar pelo seu caminhar tranquilo até ao filtro. Pode ser enervante que um cigarro se apague antes de tempo. Pode ser, mas só no caso de cigarros comuns, frenéticos e galopantes. Neste caso não pode. Neste caso é tão somente uma oportunidade de tactear uma vez mais o isqueiro perdido nas almofadas do sofá, e acendê-lo outra vez, lentamente, sem merdas que me apressem.
Um dia quero ser um American Spirit. Aquele do índio na caixa. Aquele que corre devagarinho.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Nada, só coisas

Não era bem um gira-discos, porque ninguém recebe um gira-discos aos seis anos. Quis o destino, que desta feita se fez representar pelo desejo dos meus pais, que a minha avó me oferecesse um gira-discos no dia do meu sexto aniversário. Como a mim ninguém me perguntou nada, fiquei pregada ao chão, a olhar boquiaberta aquela caixa metálica, à procura do buraco por onde haveriam de sair bonecas com uma fita plástica atada à volta da cabeça para segurar o cabelo, ou pequenos carros de metal pintado destinados a alargar o parque automóvel da minha estação de serviço de dois andares (com elevador e tudo), ou qualquer outra coisa colorida capaz de animar o aniversário de um ser de apenas seis anos. Podiam até ser serpentinas, ou rebuçados pegajosos...Qualquer coisa... Mas nada! Tudo cinzento e estático. Eu e o meu novo gira-discos, frente a frente, incrédulos e indiferentes ao rebuliço infantil dos meus pais, que festejavam ruidosamente o presente que receberam sem precisarem de fazer anos.
- Boa A.C., que surpresa tão grande! Dá um beijinho doce à avó.
E eu a pensar
- Eu? Porquê?
Dei.
Não era aquele o presente que esperava receber no meu aniversário, e tenho a certeza que aquele desgraçado reluzente também não fazia grande questão de ter como dona, uma pirralha de dentes a abanar, que o mais certo servia dar-lhe cabo da agulha. Um gira-discos que se preze não toca discos de histórias infantis, ou músicas de Natal do coro de Santo Amaro de Oeiras. Mas ele ao menos tinha escolha. Os meus pais preenchiam seguramente os requisitos necessários, para satisfazer as necessidades básicas de um gira-discos de ouvido educado. Já eu, teria de me contentar com as camisolas interiores e os collants grossíssimos que as minhas tias haveriam de trazer, e rezar para que me trouxessem ao menos, meia dúzia de rebuçados para a tosse.
E assim foi. As tias chegaram, vestiram-me e despiram-me trinta e nove camisolas diferentes, mais uns tantos pares de collants quentinhos, numa verdadeira operação relâmpago que me deixou as orelhas a arder com tanto puxão, e o cabelo feito num fanico, por conta da electricidade estática.
- Ajuda A.C.! Por amor de Deus, já és crescidinha! - Diziam enquanto se acotovelavam para vestir a menina.
 Apesar do meu estado de desolação profunda, e com os tótós mais ou menos fora de sítio, aproveitava os breves intervalos entre um puxão e o outro, para ir deitando um olho vigilante ao meu novo brinquedo improvável.
De cada vez que a minha cabeça nascia a custo, por entre as golas justas e ásperas das inúmeras camisolas a prova, virava o pescoço à pressa, e pensava
- Pelo menos tem botões. E muitos.
Mais uma orelha quase arrancada, e
- Talvez melhore, se o pintar de cor-de-rosa.
Outro tótó assassinado, e
- Não vai poder ser com lápis...
Felizmente, lembrei-me a tempo da tragédia que foi lá em casa, quando decidi personalizar (vandalizar, nas palavras dos meus pais) as paredes recém-pintadas do meu quarto, com um marcador vermelho de ponta bem grossa. O gira-discos era meu, é certo. Mas o quarto também, e nem isso atenuou a minha pena na altura. Na dúvida, não arrisquei.
Resignada à fatalidade irremediável do meu dia de aniversário, passei o resto da tarde a comer quadradinhos de chocolate, embrulhados em pratas coloridas, que posteriormente alisava com a unha do polegar.
- Que estás a fazer A.C.?
- Nada. Coisas...
Porque raio me haveriam de perguntar agora fosse o que fosse, se se tinham esquecido de me fazer uma pergunta tão simples quanto
- Já pensaste o que queres para os teus anos?
Como é que eu ia explicar lá na escola que tinha recebido como presente... um gira-discos?
Deram-me uma coisa que eu não entendia, e agora era também isso que eu estava a fazer: coisas que eles não entendiam.
- Levanta-te A.C., vamos pôr o bolo na mesa para cantar os parabéns.
Bom, pelo menos havia bolo.
Como seria de esperar, o gira-discos passou a ser da casa e não meu, tal como o aspirador ou a máquina de lavar. Se pudesse levava-o debaixo do braço para todo o lado, mas os meus direitos sobre aquele objecto enorme e pesado, resumia-se a ter preferência na hora de colocar cuidadosamente a agulha sobre o disco já a rodar.
A raiva foi-se com o passar das semanas, e a certa altura dei por mim encantada a observar o balanço elegante do disco, sob a garra afiada da agulha. Pouco me interessava a música que dali saia, fascinava-me sim todo o processo envolvido. Punha e tirava discos consecutivamente, ordenava o girar com um simples movimento do braço da agulha, delirava com o avô da Heidi a gritar pela neta com uma voz esganiçada por conta das rotações trocadas... E quando o chão da sala estava coberto de rodelas pretas de núcleo colorido, aparecia a mãe os gritos a exigir arrumação. Entretinha-me então, horas a fio, a limpar o pó aos vinis. Era preciso muito cuidado. O meu dedo indicador minúsculo cabia na perfeição no buraco central do disco, e sobrava-me apenas uma mão para desenhar círculos perfeitos, com uma espécie de ferro-de-engomar minúsculo com base de veludo preto, certificando-me que nem uma poeira restava na superfície lustrosa onde se escondia a música. Quando não restavam dúvidas de que estava imaculada, guardava-o gentilmente no pedaço de cartão que lhe servia de capa.
Há dias, numa visita à casa de férias, dei com o gira-discos velho, cheio de pó e encostado a um canto. Tinham-lhe posto um naperon de crochê em cima, para lhe esconder as feridas. E perguntei-me:
Por que raio não está o gira-discos na casa dele?
ou seja
Por que raio não está o gira-discos em minha casa?
Não gostei de receber um gira-discos aos seis anos, é certo. Mas quase trinta anos depois, fiquei com um friozinho na barriga ao reencontrar o gira-discos que a minha avó me deu.
Desta vez fui eu que recebi um presente sem fazer anos.
E se na altura, do alto dos meus insignificantes seis anos, cheguei a sentir alguma piedade pela desadequação ignorante da tua escolha, hoje sinto absoluta piedade pela minha própria ignorância.
Tinhas razão. É que um gira-discos dura para sempre, e tu sabias disso muito bem

domingo, 10 de abril de 2011

Pensamentos profundo (parte II)

Tranquiliza-me muito saber que o miserável estado da Nação não é culpa do governo, mas sim da oposição. Apre, ainda bem que não votei em nenhum deles!
(Obrigada Zé, pelo teu esclarecimento)

(voltei :)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Chuva de morte (ou neve rasteira)

Ontem nevou junto ao chão.
Para os mais distraídos, choveu apenas.
Mas diz quem andou (atento) por Sintra, que as gotas de chuva se transformavam em flocos de neve pouco antes de se esborracharem no chão.
Estou aborrecida com a chuva, por ter a lata de reduzir a segundos um espectáculo assim. Parece que se zangou com o frio, que decidiu fazer birra e não lhe congelar as gotas a tempo. Da discussão resultou este nevar rasteiro, que só por óbvia falta do que fazer, ou algum atacador desapertado, chegaria a ser observado por alguém.
Pouco me importam estas desavenças domésticas. Continuo a achar que a chuva não tinha o direito de nevar apenas a um palmo do chão, e chego até a pensar, se não será isto uma vingança mesquinha, para com os mais distraídos. Uma forma de selecção bastante nazi, capaz de reservar naturalmente este espectáculo memorável, aos que são capazes de ver coisas assim pequeninas. Um grande nevão toda a gente vê. Mas e esta neve rasteira, capaz de se confundir com a neblina agarrada ao chão da manhã? E o mundo submerso do joelho para baixo, quem reparou?
Pode ser que a chuva se tenha zangado com o frio.
Pode ser que a chuva tenha decidido castigar os mais distraídos.
Pode até ser que a chuva tenha decidido apenas premiar os mais  sensíveis.
Pode ser.
Mas de repente dei comigo para aqui aflita, às voltas com a ideia de que esta história pode ser bem mais complicada.
E se se trataram de gotas kamikazes, arrependidas no último momento?
Gotas kamikazes que se cansaram da fatalidade de anos a fio em vôo picado para a morte, e ontem decidiram implodir-se em flocos de neve, como pipocas de algodão, na esperança inútil de que a leveza as salvasse da morte certa. Salvar não salvou, mas adiou. E assim ficaram para ali a pairar, baloiçando os últimos segundos, entre o descanso de só mais um bocadinho, e a fatalidade do reconhecimento da asneira
- Por que caraças fui eu saltar?
Tenho pena que tenhas saltado, mas tenho ainda mais pena que te tenhas implodido num floco de neve
-Para quê? Se já não havia nada a fazer. Para quê?
E agora estou para aqui irritada, por não ter estado em Sintra.
Desculpa.
Queria ter ido mais cedo, mas tive de passar no Banco para tratar dos papéis para o empréstimo da casa, lembras-te? A greve de comboios também não ajudou e depois encontrei o João. Mas foram só cinco minutos, juro. Queria falar comigo, nada de importante. Não tive como dizer que não. E depois sabes como é, conversa puxa conversa estava-me a soprar disparates ao ouvido, e sabes como é, conversa puxa conversa sobre como estão grandes os miúdos (o mais pequeno é a tua cara) e estávamos de mãos entrelaçadas, e o João
- Podia ser nosso, o mais pequeno.
Fingi que fugia várias vezes, mas quando dei por mim tinha passado meia hora. Sabes como é, o tempo passa a correr. Mas não te preocupes com João, a sério. Lá acabei por conseguir fingir que fugia e enfiei-me no comboio apinhado de gente impaciente. Não te preocupes com o João, já te disse. Não vês que consegui meter-me no comboio, mesmo apinhado e mesmo a suspirar? Sabes como é. Deixa para lá isso do João por favor.
Com ou sem João, a verdade é que teria sempre chegado atrasada.
E assim foi.
Quando aí cheguei, já não havia flocos de neve para salvar. Sintra estava já irremediavelmente coberta de um descanso eterno e molhado. Tinha caído a noite e as luzes dos automóveis reflectidas na chuva inerte do chão, deixavam bem clara a desgraça. Doeu-me que nenhum automobilista tivesse o cuidado de abrandar em sinal de respeito pelo vosso último suspiro. E deixei-me ficar ali a imaginar que se não fosse pelo João, teria chegado a tempo de me pôr de joelhos no chão e rabo para o ar, a deixar cair levemente nas mãos essas gotas kamikazes de esperança. Depois, deitava-as todas juntas num frasco e levava-as ao hospital. Ou então à feira popular. Têm lá uma daquelas rodas gigantes de fazer algodão doce. Deitava-as no buraquinho do açúcar, estendia-lhes um pauzinho como se faz aos periquitos, e levava-as para Sintra outra vez.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Falta, não falta?

Há muitos anos o meu pai escreveu-me uma dedicatória que dizia
"O sol está longe mas é belo"
Na altura não compreendi exactamente o que queria dizer com aquilo. Hoje compreendo, mas de quando em quando, tenho vontade de voltar a ser a miúda sentada no banco traseiro da velha Diane a caminho do Porto, e perguntar
"Achas que falta muito?"

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pontes de areia

Por muito que me apeteça culpar a areia da praia, hoje sei que não posso. Passaram-se anos que a culpei descaradamente sem pinga de remorso. Nunca se queixou. Limitava-se a ficar para ali estendida ao sol, que de tempos a tempos lhe aquecia as costas e lhe secava a água trazida pela maré.
Ocasionalmente, irritada com a passividade da areia que se preocupava demasiado com o bronze e muito pouco com os meus queixumes, culpava a minha irmã
- Bolas mana. Estragaste tudo outra vez.
(Bolas não é asneira, pois não?)
(Culpar a areia também não é asneira, pois não?)
(Mas culpar a irmã é, não é?)
Para fazer uma ponte de areia em condições é preciso alguma habilidade, muita paciência e areia no ponto certo, nem demasiado seca, nem demasiado molhada. Reunir as três num momento só, nem sempre é possível.
Por isso, por aqui continuo de joelhos na areia, a esgravatar pontezinhas que vão desabando por isto ou por aquilo. Por alguma onda desajeitada que não sabe ainda mergulhar bem e que descontrolada veio inundar onde não era suposto. Felizmente uma outra onda agarra-a logo pelo cachaço e leva-a de volta, para que repita o mergulho sem exageros. São matreiras estas ondas descontroladas que ainda não sabem mergulhar na medida certa. É preciso contar com elas, para que não nos apanhem despercebidas.
Atenta a tudo, continuo a arrastar montes de areia, já não apenas com as mãos, mas também com os braços, à laia de retroescavadora empenhada, na esperança de um dia, lá no fundinho do buraco, encontrar uma mão. E nesse momento, com o braço enterrado até ao ombro, sorrir-te, sem que aqueles que não têm as unhas desconfortavelmente cravadas de grãos de areia, entendam o motivo da felicidade. Ainda assim, se a ponte cair no momento crucial de largarmos as mãos e desenterrarmos os braços, continuaremos a ter motivos para sorrir. Basta subir ou descer um pouco mais no areal, e procurar a areia certa, porque a habilidade já a tivemos num aperto de mão areado e a paciência há-de chegar.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

As borboletas da Joaninha

A joaninha fez um desenho que se chama "a mãe, a tia e as borboletas".
Eu sou a tia, mas com este desenho fiquei a sentir-me a borboleta.
Gosto de ser borboleta, especialmente se essa borboleta for da Joaninha.
Se calhar gosto mesmo é da Joaninha.
Aos cinco anos a joaninha ainda dá beijinhos cheios de baba, mas quando lhe perguntam
- Com essa baba toda, joaninha?
não tem vergonha de limpar desajeitadamente a boca à manga da camisa.
A Joaninha é como um esparguete de aletria, mais magrinho e mais doce do que o esparguete normal. Mas mesmo quando é especial, o esparguete é difícil de abraçar convenientemente, de tão magrinho e escorregadio.
Há dias fui à festa de anos da Joaninha e ela foi receber-me à porta, com uma saia cinzenta curtinha, pendurada ao pescoço por um daqueles peitilhos que mais parecem as costas de uma cadeira. Quis acreditar que teve o cuidado de vestir uma saia curtinha, para que se vissem bem os sapatos de salto alto, forrados a lantejoulas cor-de-rosa, que a tia borboleta lhe ofereceu no Natal, e comoveu-me que tivesse pendurado a saia ao pescoço com as costas de uma cadeira
(não acredito que seja confortável)
para que não houvesse a menor hipótese de num momento de brincadeira distraída, a saia tapar os sapatos.
Assim a encontrei à porta, com uma saia exageradamente curta a deixar ver a cicatriz em U dos collants que em tempos serviu para acomodar a fralda, uma cadeira pendurada ao pescoço, os pés às dez para as duas (dolorosamente) enfiados nos sapatos de princesa de acabamentos duvidosos, e claro, a manga da camisa pronta a limpar o excesso de baba, antes do beijinho da praxe.
- Hoje pode ser mesmo com essa baba toda, Joaninha.
Gosto de tudo na Joaninha, mas o que me deixa mesmo com o coração apertado é o sorriso.
A Joaninha ri-se com os dentes todos fora da boca, como se os mostrasse para inspecção materna antes de deitar
- Que bem lavadinhos estão, Joaninha. Estás uma crescida.
Eu acho que a Joaninha tem  medo que duvidem que está a rir, por isso usa todas as suas armas (dentes, neste caso) sem excepção. Tem até o cuidado de fechar os olhos num franzido de chinesinha, para que a alma dos olhos não interfira com a árdua tarefa de rir sem margem para dúvidas.Desconfio ainda, que o excesso de baba serve para chamar a atenção do sorriso e topo-lhe o esforço malandro dos olhos, a borboletearem apertadinhos, entregues ao compromisso partilhado entre não se mostrarem, e conseguirem ver a reacção alheia.
Será que riem as borboletas?
No desenho dela, rio.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Amor gramatical

Não sei muito bem porquê, mas gosto sempre mais de usar os adjectivos depois dos substantivos.
Ou não.
Ou depende.
Depende, acho.
Sei que gosto da ideia de
uma coisa linda ser mais linda, que uma linda coisa.
(Está certa aquela vírgula ali, Pedro?)
Prefiro quando se referem a mim dizendo com uma ar ternurento
- Que coisa linda.
Desconfio porém, que não raras vezes o pensamento é mais
- Que linda coisa...
As coisas têm de facto uma relação conflituosa com os adjectivos. Se calhar amam-se e depois dá nisto.
Todas as coisas preferem ser "coisas grandes", a "grandes coisas". Uma "grande coisa...", especialmente se proferida com ar de desdém e reticências (é possível proferir reticências?), é na realidade uma coisa pequena.
Há dias em que a versatilidade me cansa.
Tempos houve em que me aborreceram os Legos. Ficava sempre um bocadinho ansiosa, quando me davam uma caixa de Lego com meia dúzia de peças que devidamente conjugadas, podiam construir trinta e nove carros diferentes. Que desgaste meu Deus!
Para o bem do descanso de muitos (acreditando que há por aí mais gente cansada da versatilidade das coisas) sugeria que os adjectivos beijassem de uma vez por todas as coisas na boca, e que em regime de excepção, não deixassem as coisas passar à frente nas portas.
Assim, teríamos sempre coisas lindas e coisas grandes.
É possível que se verifiquem momentos de amuo por parte das coisas, de cada vez que os adjectivos pouco cavalheiros lhes passarem à frente. Não desanimem meus senhores, não deverá ser nada que mais um beijo doce não resolva.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Afiadela nº 33

Passar o ano é uma afiadela de lápis.
A cada ano, o cinzeiro mais cheio de aparas
e o lápis cada vez mais curtinho.
Não é possível escrever com aparas, é certo.
Mas só é possível escrever com o lápis afiado.

Bom Ano