quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ad scribendum

          Sei, desde sempre, que o meu pai estudou no seminário. Aliás, sempre julguei saber que o meu pai estudou no seminário. Ontem, porém, descobri que o meu pai estudou no seminário, e chorei.
          Tive sempre um enorme orgulho em ter um pai que sabia latim, que lia convictamente os escritos majestosos cravados nas fachadas de edifícios públicos importantes.
          -Estão a ver ali meninas: Domvs ivstitiae. Sabem o que quer dizer? - Inquiria num tom de voz tranquilo e sábio, de cada vez que passávamos à porta de um tribunal.  As meninas, inchadas de admiração, desencostavam-se prontamente do banco do carro, e esticando o pescoço num esforço hercúleo para a sua pequenez, acendiam as luzes do palco, abrindo-lhe as portas à vitória,
          - O quê? O quê? Onde?
          - Ali, na parede do tribunal. Significa palácio da justiça, e é o sítio onde se aplicam as leis. Está escrito em latim, uma língua antiga do tempo dos romanos. - Concluía, sorridente de vaidade. E as meninas, boquiabertas, retomavam serenas o encosto. Estávamos seguras, ao volante encontrava-se um homem que sabia coisas importantes e que por sorte nos calhara em pai.
          Era frequente exibirmos no colégio tamanha glória. Deleitávamo-nos a ostentar a grandiosidade do nosso pai, gigante, maior que todos os outros. Ainda que não soubéssemos ao certo a relevância de tal facto, parecia-nos quase sobre-humano que o nosso pai (que sorte, logo o nosso) conseguisse ler e entender letras enormes, todas elas maiúsculas, esculpidas em pedra na gravidade das fachadas imponentes, ou proferidas ao mundo inteiro por um ser superior vestido de branco.
          - Urbi et Orbi. À cidade e ao mundo - Repetia baixinho a saudação do Papa. E depois explicava,
- No latim os artigos integram os substantivos sob a forma de terminação. Ou seja, o "à" e o "ao" são substituídos pela terminação "i" em latim. Por isso, esta expressão jamais poderia significar "da cidade para o mundo" como estás a dizer, Sofia. Esta sabedoria de pacote de farinha33 quase me valeu o ódio de um professor de faculdade que um dia ousei corrigir.
          Para enorme desgosto da minha avó, que o elegeu entre onze irmãos para frequentar o seminário, o meu pai nunca foi um homem fé. Mas apesar de descrente na religião, tinha um amor inabalável  à escrita e à correcta utilização das palavras, que considerava sagradas. Eu e a minha irmã tivemos o privilégio de crescer a acreditar que saber escrever correctamente era imprescindível para qualquer ser humano.
          - Mesmo que queiram ser varredoras de rua quando crescerem, devem conhecer a vossa língua. Sem isso não vão a lado nenhum. - Apregoava frequentemente.
          Mesmo que na altura não encontrássemos relação pertinente entre uma vassoura e a Língua Portuguesa, lá fomos crescendo imbuídas num enorme respeito pelas letras. Porém, à época não fazíamos ideia do que estava por trás de tudo isto. Ríamos desbragadamente dos relatos que o meu pai fazia da sua primeira noite no seminário, do choro aflito no meio escuridão, e principalmente do colchão de palha que o salvou do embaraço de uma cama molhada pela manhã. O que as meninas riam, ignorantes, por saber que um dia o pai também fez chichi na cama, de palha.
          Tenho a certeza de que o meu pai me perdoa tamanha arrogância inconsequente, própria da idade. Já eu não estou certa de me conseguir ilibar tão cedo. Pelo menos não antes de conseguir processar o que li ontem.
          É fácil retirarmos gravidade à má sorte de um miúdo de seis anos, que agora vemos radiante, a gargalhar de si próprio enquanto delicia as meninas com histórias passadas. Mas quando essa mesma história nos chega de alguém que não sabemos se agora ri, repensamos tudo. Essa história chama-se "Manhã submersa" e chegou-me pela mão de VF, por quem, por estar morto, me posso declarar pública e irremediavelmente apaixonada. Não sei se sabia rir antes de morrer e acho que nunca saberei. Espero que sim. Prometo, contudo, não voltar a rir da foto do meu pai enfiado num fato preto dois números acima, e com os pés afundados num par de sapatos gigantes, com que lograria regressar do seminário,anos mais tarde, com os pés apertados. Mas porque gosto demasiado de rir, provavelmente não vou conseguir manter a promessa. E assim sendo, acho mais prudente prometer apenas que vou rir bem alto, sim, mas sempre com o olhar cúmplice, para ti, das coisas que eu agora também sei.

          (Peço desculpa ao meu pai, pelos erros que este texto provavelmente tem. Podemos rir-nos disso também.)

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