Desde que me conheço marco os livros com o próprio livro. Dobro o cantinho e pronto. Os marcadores de livros podem perder-se, mas os cantinhos não. Perder o cantinho significa perder o livro todo, e nesse caso não há marcador que valha. Como sou uma cabeça no ar, dá-me muito jeito que o marcador venha já com o próprio livro; ali mesmo no cantinho.
Por ler devagar, poucas páginas de cada vez, acabo por dobrar grande parte das folhas de cada livro que leio. Antigamente fazia-o com algum pudor, não me agradava estragar o livro, dobrá-lo todo. Tinham-me ensinado que se os estragasse depois já não os teria, e já se sabe como são as crianças; diz-se-lhes uma coisa e elas acreditam mesmo.
Faz hoje precisamente não muito tempo que deixei de ser criança na cabeça, e foi só nessa altura, nesse dia impreciso não muito distante, que compreendi que os livros são meus e posso fazer com eles o que bem entender. A mãe não havia de gostar, mas a mãe tem os livros dela e eu agora também já tenho os meus. Mas a mãe às vezes ainda se baralha um bocadinho com essa história do "meu" e do "teu". No outro dia, quando a mãe me devolveu dois livros que lhe tinha emprestado, - não um, dois. Dois livros - disse-me satisfeita que lhes tinha tirado o preço da contracapa.
- Não gosto nada dos preços nos livros. - Disse-me aliviada.
Como referi anteriormente, a mãe ainda se baralha um bocadinho com os pronomes possessivos e, sem querer, limpou os meus, em vez dos dela. Não reagi como seria expectável; não gritei, nem fiz nenhuma birra. Nem sequer chorei balões de ranho pelo nariz até a mãe ir buscar ao lixo o código de barras, cuidadosamente empurrado com a unha do polegar, até se transformar num montinho de papel autocolante, muito idêntico a uma pastilha elástica, para o voltar a pôr no mesmo lugar. Em vez disso, limitei-me a informar a mãe que eu gostava de manter os preços nas contracapas, para que no futuro, quando já não houvesse dinheiro na Terra - sim, isto vai ter de acabar -, poder mostrar aos mais novos que sou muito antiga; é que com tanta parvoíce eles são bem capazes de não acreditar. Bom, mas dizia eu, em vez de gastar energia num ataque de fúria, informei a mãe dos meus desejos e vontades - não podemos não acreditar em bruxas e depois esperar que as pessoas adivinhem coisas -, e pedi-lhe que os respeitasse nos meus livros. A mãe aceitou bem. Pediu desculpa e tudo. Eu disse que não fazia mal e expliquei-lhe a história dos bruxos e das bruxas. A mãe pareceu um bocado surpreendida, talvez por nunca ter pensado numa coisa que, de tão simples, parece complicada.
Cortado o cordão umbilical no que a livros diz respeito, passei a dobrar os cantinhos dos meus livros sem qualquer sentimento de culpa, passei até a dobrar cantos gigantes - praticamente a folha toda transformada num cantinho gigante - quando precisava de marcar uma determinada linha onde alguém tinha escrito qualquer coisa que eu não podia perder de vista. Um dos lados do cantinho a sublinhar o que interessava e estava feito. Estes cantinhos gigantes têm, tal como os cantinhos mesmo cantinhos, uma função utilitária; marcar uma determinada coisa. Os primeiros são temporários e marcam o sitío onde se vai na leitura, os segundos são permanentes e servem para não perder de vista um sítio onde se poderia ficar para sempre na leitura.
Quero com isto dos cantinhos dizer que passei a usar os livros com uma liberdade que não fazia ideia ser tão saborosa. É mesmo, deviam experimentar. Não é amachucá-lo todo ou tratá-lo com descuido, nada disso, é dobrar com cuidado, atenção e respeito. Os livros até gostam, acho eu. Um cantinho temporário é uma promessa; vou voltar, para aqui. Um cantinho gigante e permanete, outra promessa: amo-te e não te quero perder.
É claro que uma vez encetada esta relação de desassombro com os livros, não há como parar. Muitos dos livros duplicaram em espessura de tanto que gostei deles. A mesma lombada a segurar com firmeza 100 páginas, agora gordas como 150. 50 páginas de amor do mais puro.
Por questões meramente logísticas acabei, com o tempo, por substituir os cantinhos enormes pelo simples acto de sublinhar, e assim me livrei da obesidade a ocupar espaço nas prateleiras. Prefiro os cantinhos gigantes, na medida em que não precisam de intermediários - eu e o livro chegamos perfeitamente -, mas com o tempo habituei-me ao lápis e arrisco-me até a dizer que a ousadia de sublinhar um livro, é muito idêntica ao arrojo necessário para se dizer amo-te a alguém.
Por prudência, habituámo-nos a não sublinhar uns nem amar suficientemente os outros.
A prudência faz mais falta no segundo caso é certo, mas o arrojo também. É que tal como já aqui disse anteriormente, não podemos não acreditar em bruxas e ao mesmo tempo esperar que as pessoas adivinhem coisas.
O ser humano é burro, por definição, ou inseguro, ou descrente, o que lhe queiram chamar, principalmente quando gosta. É preciso dizer-lhe tudo, muitas vezes, as vezes necessárias, às vezes só uma, no caso dos fortes, e às vezes muitas, provavelmente demasiadas, no caso dos fracos.
E amar é isso, é sublinhar com força, sem medo de partir o bico ao lápis, sem medo de marcar acidentalmente a página seguinte numa linha errada, ou desadequada. Quando o bico do lápis se parte, afia-se, quando se marca acidentalmente a página seguinte onde não se quer... Bom nesse caso não vejo solução definitiva, mas com a nossa idade quem é que não tem já as páginas seguintes todas marcadas? Com a nossa idade todas as páginas seguintes estão já cravadas de sulcos, de riscos visíveis ou invisíveis, mas que estão lá; mais um não vai fazer grande diferença, muito menos se esse um resultar de um risco certeiro na página certa.
Amar e dizer que se ama é ter a ousadia de sublinhar com força a página actual, sem medo de sublinhar às cegas a página seguinte. E é indispensável fazer isso se queremos que a história avance. Ela, a história, vai terminar um dia, isso é garantido, por isso o melhor é fazê-la avançar sem medo.
Vou contar-vos um segredo: é mesmo verdade aquela história das bruxas. Se não dissermos as coisas importantes, ninguém vai saber. Eu já tinha experimentado com a mãe e funcionou, mas decidi tirar a prova dos nove com ele, e reafirmo que resulta. No outro dia disse-lhe que o amava e também ele pareceu ficar um bocado surpreendido. Talvez por nunca ter pensado numa coisa que, de tão simples, até parece complicada. Depois de recuperado do espanto, disse baixinho:
-Eu também.
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