quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Morgado

Em Fevereiro de 2012, durante o Curso de Escrita Literária da Restart, a minha querida professora Margarida Fonseca Santos, fez-nos escrever um conto infantil. Eu, que nunca me tinha imaginado nesse papel, escrevi. E pior, gostei. O Morgado ficou este tempo todo guardado na gaveta, sem desejo de ir a lado nenhum. Porém, o desafio de ler uma história aos alunos da sala da minha (sobrinha) do meio, a Joaninha, fê-lo sair. E agora é que vão ser elas. É que deixá-lo aqui para os graúdos, é uma coisa, mas lê-lo, ao vivo e sem as cores das ilustrações, a miúdos de sete anos, é um desafio muito maior.

***

O Morgado era um cão especial. Não só por ser da mais pura das raças, mas também por conseguir farejar uma lebre a quilómetros de distância. Tinha o faro mais apurado que o caçador alguma vez tinha visto. Era o cão de uma vida e por isso era tratado com exceção. Não se misturava com os restantes rafeiros.

Não! Nem pensar!

O Morgado era o príncipe da casa. Comia na sala junto à mesa dos donos, dormia numa banqueta forrada a pura lã de ovelha e usava uma coleira de couro verdadeiro, com uma medalha de bronze, onde se podia ler o seu nome e a morada do caçador. Nunca se poderia perder, o Morgado.

Não! Nem pensar!

Das poucas vezes que saía de casa, parava um momento à porta, levantava a cauda bem alto, enchia o peito com a enorme soberba de um cão de linhagem e, só então, com o nariz empinado caminhava altivo por entre os dezassete cães rafeiros, sem coleiras nem medalhas. Sua excelência, o Morgado ia só arejar. Olhava com desdém as brincadeiras empoeiradas dos rafeiros e seguia o seu caminho, em bicos de pés, para não se sujar. Não estava ali para brincar com cães de pêlo cerdoso e patas cheias de lama.

Não! Nem pensar!

Aos domingos de caça os dezassete rafeiros de perna curta viajavam amontoados num atrelado velho e ferrugento, enquanto o Morgado seguia viagem, magnificamente instalado, numa manta felpuda colocada traseira do carro, onde dormia tranquilo durante a longa viagem até à floresta onde moravam quase todas as lebres do Universo. Só raras vezes levantava ligeiramente a cabeça e espreitava, arrogante, a balbúrdia que ia no interior do atrelado. Jamais se poderia ali imaginar.

Não! Nem pensar!

Durante a caçada seguia confiante na frente da matilha, de cabeça baixa, focinho rasteiro, e numa linha recta que só o Morgado, cão de raça pura e faro delicado, sabia desenhar. Os dezassete rafeiros seguiam-no em Ss desastrados, com a cabeça no ar e sempre a espiar o mestre que os havia de comandar. Os rafeiros não precisavam de farejar.

Não! Nem pensar!
O ilustre Morgado sabia muito bem para onde os levar.

Um dia, porém, aconteceu o que ninguém podia imaginar. O distinto Morgado deixou de conseguir cheirar, e o caçador furioso queria-o mandar matar. Mas a mulher ofendida, com tão monstruosa ideia, gritou de imediato:

- Não! Nem pensar!

O caçador, contrariado, obedeceu à mulher, mas nesse mesmo dia, tratou de o castigar. Arrancou-lhe a coleira com um puxão e atirou-o para a rua, dizendo:

- Aqui em casa, não! Nem pensar!

Os primeiros tempos não foram nada fáceis para o ilustre Morgado. Foram até de grande desgraça, o pobre Morgado levou tempo até se acostumar. Dormir ao relento não tem graça nenhuma, e é muito triste não ter com quem conversar. Os rafeiros, toda a gente sabe, são cães que só sabem ladrar. Mas o pior chegou no domingo seguinte em que foram caçar. Ia o ilustre Morgado trepar para o banco traseiro, quando o caçador gritou:

- Sai daí malandro! Esse já não é o teu lugar!
e chamou outro cão, dez anos mais novo e acabadinho de chegar:
- Anda daí, rapaz, o teu reinado está só a começar.

O Morgado teve de se convencer que era no atrelado que teria de se enfiar. Meteu o rabo entre as pernas e, ajeitou-se a um canto, com as beiças cheias de baba de um rafeiro a taparem-lhe o olhar. Desgraçado da vida o ex-magnífico Morgado, estava triste que doía, e quando viu o outro cão, todo aprumado, abrir um enorme bocejo do alto do seu ex-lugar, partiu-se-lhe o coração e desmanchou-se a chorar. Então e não é que um dos rafeiros, que o Morgado suspeitava só saber ladrar, de pronto lhe disse:

- Deixa-te disso! Queres brincar?

O Morgado não fazia ideia o que isso era. Em casa do caçador costumava passar o dia inteiro a relaxar. Mas disse logo que sim, afinal não custa experimentar. Aquilo é que foi um reboliço no atrelado. Os rafeiros estavam loucos de felicidade por terem o mestre Morgado junto deles. Pouco lhes importava se conseguia cheirar, ou se não conseguia cheirar. Mordiam-lhe as orelhas, puxavam-lhe o rabo, tudo com jeitinho para não o magoar.

Não! Nem pensar!

O atrelado fez o caminho num verdadeiro virote, a balançar para lá e para cá. Foi uma sorte não se virar. De início o Morgado não sabia o que pensar. Não era mau de todo aquilo da brincadeira, mas o mau hálito dos rafeiros era difícil de suportar. Enjoou um pouco ao princípio, mas estava tão entretido com a galhofa, que pouco tempo depois já não dava por nada. Aliás, a meio do caminho lembrou-se, que já nem sabia cheirar. O mau cheiro que sentia só podia ser obra da sua imaginação. Quem é que disse que os rafeiros cheiram mal? Deve ter sido o caçador que nem sabe farejar.
Assim que chegaram à floresta saltaram todos cá para fora num reboliço que só visto. Aquilo é que foi correr sem parar. Tinham quase todas as lebres do Universo para caçar e tinham que se despachar. Os rafeiros corriam que nem tontos de um lado para o outro como de costume e o Morgado seguia-os para os tentar imitar. No fim da caçada, com as patas enlameadas e as beiças cheias de baba de tanto brincar, o Morgado deitou-se na relva, ao sol, de papo para o ar.

A caçada tinha sido uma desgraça. Nem uma lebre para amostra. O cão novo, coitado, não estava habituado a caçar. Apesar de um faro bestial, faltava-lhe experiência para se saber desenrascar. O caçador furioso com o seu novo cão de caça que afinal não sabia caçar, chamou o Morgado para a traseira do carro:

- Anda velhote, sempre dás para remediar! Este desgraçado caríssimo não serve nem para....

O ex-ilustre Morgado nem o deixou terminar. Fugiu para o atrelado e gritou

- Essa agora... Nem pensar!

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