quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quero

Hoje fiz o que faço há uns tempos, por não me apetecer fazer outra coisa: corro à frente dos dias, com o mesmo desespero com que em tempos corri à frente do joão que era o chato dos carolos lá do colégio. Levanto-me antes dele e ponho-me numa corrida desenfreada pelo mundo, na esperança que o dia não me apanhe. Canso-me enquanto há sol, e à noite adormeço com a serenidade de quem se safou ao teste de Matemática.
- Menos um!
Porém hoje, no meio desta correria disparatada de tempo perdido,
"Quer conhecê-lo?"
Largo os sacos no chão, sem jeito. Ouvem-se garrafas mas não importa. O que são umas garrafas barulhentas em comparação com um,
"Quer conhecê-lo?"
Levo as mãos à cara para não molhar a camisa e fico ali escondida uns segundos, a respirar em esforço. Afasto o indicador, espreito o mundo embaciado, tiro as mãos devagar e confirmo,
"Quer conhecê-lo?"
É mesmo verdade. Apanhou-me o dia.
E agora estou para aqui, a andar para trás e para a frente, com o extâse a arrumar as compras em sítios disparatados. Guardo a pasta de dentes no armário da mercearia. Pouso as garrafas no balcão, volto a pegar-lhes e pouso-as meio metro ao lado. Hei-de pousá-las em meia dúzia de sítios errados antes de as colocar no seu lugar, que o extâse pelos vistos desconhece. Vasculho os sacos à procura da pasta de dentes (queres ver que me esqueci da pasta de dentes). Encontro um pacote de esparguete. Abro o armário da mercearia. Pouso o esparguete e a pasta de dentes a rir-se para mim, encostada a um pacote de arroz carolino.
"Quer conhecê-lo?"
Dou graças a Deus (não sei muito bem porque passo a vida a dar graças a uma coisa em que não acredito) por ter um tornozelo defeituoso que não me deixou atingir uma velocidade inalcançável. Por momentos imagino a fatalidade de não me ter deixado apanhar e logo de seguida penso na fatalidade de ter sido apanhada. O que faço agora? Se o quero conhecer? Claro que sim. Mas e depois? Mas e durante? Durante é fácil. Quer dizer, é previsível: vou tropeçar, gaguejar, transpirar, dizer disparates impulsionados pelo desejo idiota de dizer coisas inteligentes, vou rir imenso (rio sempre). Rir resulta sempre, ou quase sempre. Rir é uma actividade imparcial, pode ser tudo, ou quase tudo. Quer dizer, não pode ser dor. Se calhar pode. Pode sim.
Nunca fui fã de nada até agora. Em tempos cheguei a forrar um dicionário de português com fotografias do Tom Cruise. Forrei-o com a mesma convicção com que bebia o leite todas as manhãs. Porque sim. Porque toda a gente forrava e porque toda a gente bebia.
E agora estou nisto, comovida porque,
"Quer conhecê-lo?"
e a imaginar que aquela pergunta pode querer dizer,
"Ele quer conhecê-la"
e a imaginar que se comoveu com os meus disparates. Está tudo trocado, é o que é.
Claro que o quero conhecer e claro que vou fazer todas aquelas figuras ridículas que não me apeteceu fazer nos tempos do Tom Cruise e da Madonna. E se me der na cabeça, forro um dicionário com fotografias dele. Porque agora que o dia me apanhou, vou passar a adormecer à noite com a serenidade de
- Mais um!

1 comentário:

José Alexandre Ramos disse...

:) mais uma vez :) e outra vez :)