Valter
acordou diferente.
Olhou-se
ao espelho e aparentemente tudo em ordem. Talvez os olhos mais magoados do que
o habitual, talvez o rosto mais severo, mas tudo na conformidade do desalento
que o acompanhava há anos. Ignorou-se, longe de saber a desgraça que a noite
lhe trouxera.
A
discussão violenta da noite passada deixara-o exausto, mas não era cansaço que
sentia. Sabia que não voltaria a ver Leonor, mas não era angústia que o corpo
acusava. Estava seguro da separação - ou da sua inevitabilidade, talvez -, mas não
era alívio o que despertara com ele. Bom, talvez algum alívio, mas não aquele
alívio desejável; geral, sereno. Um alívio inquieto. Alívio por se saber no
caminho certo - ou inevitável, talvez -, e inquieto por ainda não ter lá
chegado.
Preparou
a infusão de mel que tomava quando precisava de falar em público, e por entre o
vapor adocicado que lhe embaciava os óculos a cada golo sorvido, fez uma última
vistoria aos textos que preparara para a apresentação daquela tarde. Tinha uma
enorme oportunidade em mãos, e apesar de ser mais da responsabilidade do acaso
do que do seu talento ou determinação, decidiu agarrá-la com a avidez do filósofo
promissor que fora em tempos.
Caminhava
em roupão pela pequena sala debilmente iluminada, envergando numa das mãos
meia-dúzia de folhas impressas com as suas impressões, que haveriam de
impressionar a plateia, e na outra, uma chávena fumegante a sacralizar o
momento num ritual de defumação. Apesar da casa despida da opinião de Leonor,
gargarejou, solene, o último golo de chá, pousou a chávena na mesinha de centro,
e no momento em que se preparava para simular, para o vazio, a abertura da
palestra, deu-se conta da desgraça que o seu corpo produzira durante a noite. Nenhuma
palavra inteligível lhe saía da boca. Nada. Nem o mais pequeno monossílabo compreensível.
Desesperado, movia os lábios em esgares extravagantes na esperança de se tratar
de uma falha momentânea. Apesar do empenho aflito, apenas sons, harmoniosos até,
mas nada que pudesse servir para esclarecer uma plateia. Valter deteve-se um
momento de pé, cabisbaixo, as mãos caídas ao longo do corpo, a acompanhar a
presilha do roupão que pendia felpuda e assimétrica. Com as mãos caducas das
folhas impressas caídas aos seus pés, despejou o peso do corpo na poltrona.
Sabia muito bem que nada daquilo era inexplicável, aliás, não seria razoável
esperar desfecho diferente. Com os olhos secos de lágrimas gastas, amaldiçoou a
sorte (só um bocadinho, a sorte) e os anos de conversas sérias, redundantes,
inúteis, todas idênticas, todas de si para si (amaldiçoou muito os anos de
conversas de si para si), com que tentara, ignorante, fazer-se entender a
Leonor. Onde pode estar a inteligência de um homem que espera resultados
diferentes de uma mesma acção? Em lado nenhum. Onde pode estar a inteligência
de um homem que ao atirar uma bola para a esquerda, espera que ela vá para a
direita? Nos últimos anos com Leonor, melhorou: passou a esperar apenas que a
bola fosse um bocadinho menos para a esquerda. À primeira vista, dir-se-ia
inteligente a adaptação, mas não, é ainda mais errado. Ser capaz de reconhecer
que faz falta uma mudança e ser tão maricas a pedir. É preciso coragem para
pedir. Quem pede não pode ter medo de que as coisas aconteçam. Ou pode, mas
nesse caso é ainda mais medíocre do que o tipo da bola.
Se
a evolução da espécie fizera cair o excesso de pelagem do corpo humano por ausência
de função, era apenas justo que o destino tivesse decretado o fim das suas palavras inúteis. Odiou Leonor com a imensa
paixão da revolta, e desejou, sem certezas, que o destino lhe tivesse roubado a
ela a capacidade de olhar exclusivamente para a direita.
Recompôs-se
com esforço do choque inicial e tentou desenhar mentalmente uma estratégia que
lhe permitisse concluir com sucesso a ansiada palestra da tarde. Não
conseguiria falar, é certo, mas talvez pudesse fazer as coisas de outra
maneira. Afinal tinha a apresentação meticulosamente preparada, com imagens
explicativas e textos projectáveis. E havia sempre a possibilidade, ainda que
improvável, de que a desvirtude da fala lhe regressasse a qualquer momento.
Estava decidido a arriscar tudo para não perder a oportunidade que o destino
lhe pusera no caminho. Depois de tantos anos de estudos e reflexões complexas
sobre questões fundamentais da existência humana, e numa altura em que Valter
já não esperava que a sua carreira de filósofo acontecesse para além das aulas
que prestava a alunos do segundo ciclo de um Liceu da periferia, não iria agora
permitir que um percalço, ainda que enorme, deitasse tudo a perder. Vivera
durante demasiados anos quase resignado, quase satisfeito, quase feliz na sua
condição de quase filósofo. Um dia, quem sabe, haveria também de viver quase em paz com a ausência de
Leonor. Nunca imaginou que esta sua quase vida pudesse um dia encher o peito de
ar e atrever-se a respirar fundo novamente. Foi exactamente o que aconteceu no
dia em que Horácio Estima, Presidente da Associação de Pensadores e Filósofos
Portugueses lhe telefonou pessoalmente, inquirindo-o sobre a sua
disponibilidade para integrar o painel de oradores das Jornadas de Reflexão
Filosófica, este ano sob a temática "O papel da análise conceptual na
filosofia contemporânea". Valter não se preocupou demasiado com a falta de
decoro do convite de última hora, para substituir o reconhecido professor
Arnaldo Mesquita que caíra na cama doente a poucos dias do acontecimento. Já
não tinha idade para falsos puritanismos. Independentemente da motivação do
convite, era sem dúvida uma grande oportunidade.
Delineada
a estratégia para contornar o incontornável, Valter livrou-se do conforto morno
do roupão, vestiu as calças de bombazine castanha que o esperavam penduradas de
véspera na cadeira do quarto, voltou a pendurar no roupeiro a camisa que tinha
previamente escolhido para o grande dia, e decidiu-se pela camisola preta de
gola alta. Ninguém estranha que um filósofo se apresente numa conferência sem
camisa bem engomada, e talvez a garganta aconchegada lhe remediasse a desgraça.
Vestiu um blazer suficientemente coçado para a imagem despojada de um pensador
à séria, e correu escada abaixo tão depressa que por momentos se esqueceu de
que corria, muito provavelmente, para a humilhação pública. Entrou de rompante
na pastelaria, e antes que Valter, imprudente, tentasse pedir alguma coisa,
-
Bom dia Professor Valter. É o costume, não é verdade?
Valter
sorriu ao tomar consciência do que podia ter acontecido se tivesse, naquele dia,
evitado a familiaridade daquele café, como fazia nos dias em que não lhe
apetecia grandes conversas. Limitou-se a um aceno de cabeça afirmativo,
colorido por um largo sorriso forçado. A D. Alzira depositou o galão escuro e o queque de passas
no balcão, e, felizmente, também ela não tinha grande vontade de conversar.
Valter engoliu o queque em três dentadas e demorou o galão morno na garganta,
inclinado a cabeça ligeiramente atrás. Mal não faria. Correu para o Fiat Uno
beije que o esperava à porta, sem se lembrar sequer de se despedir da D. Alzira
- ou melhor, sem sequer se lembrar que jamais se poderia ter despedido da D.
Alzira -, e acelerou até ao Centro de Convenções da Ajuda. No rádio velho soava
uma mistura de interferências com uma música estridente da moda. Valter
aproveitou a desordem sonora para pôr uma vez mais à prova as suas (in)capacidades
vocais. Apesar da descoordenação verbal agora minorada pelo ruído confuso, pode
confirmar que nada mudara.
Quando
chegou ao Centro de Convenções já os trabalhos se tinham iniciado. Correu para
os Bastidores onde o Presidente Horácio Estima o aguardava ansioso e quase
arrependido por ter confiado tamanha responsabilidade a um simples professor de
liceu. O Presidente Estima acompanhou Valter pelo braço até à saleta onde
deveria aguardar a sua altura de entrar em palco. Enquanto caminhavam
apressadamente falou, perguntou, tudo, felizmente, sem esperar resposta.
-
Mas onde é que você se meteu, homem? Já estava a ficar aflito. Pronto, mas
agora já cá está que é o que importa. Lembre-se do que combinámos, tem um
comando em cima do púlpito que deve usar para mudar a projecção. Não há que
enganar.
O
Presidente soltou o braço de Valter impelindo-o para dentro da saleta, e fechou
a porta com uma frase,
-
Prepare-se que é o próximo a entrar!
Antes
que tivesse tempo para aflições de última hora, ouviu-se uma voz metálica
chamar o seu nome. Valter retirou da pasta as folhas impressas, ajeitou-as
fazendo-as bater verticalmente na madeira da secretária que justificava o nome
de sala, a um espaço tão exíguo, e depois de fazer ressoar dois ou três sons
cavernosos na garganta, tentou, sem sucesso, imitar a voz que o chamara. Não
conseguia sequer dizer o seu próprio nome. Nem o galão morno, nem o aconchego
da gola alta tinham surtido qualquer efeito. Valter tomou consciência do
sarilho em que se tinha metido e começou a transpirar terror testa abaixo. As
mãos molhadas ondularam as suas notas de papel, e foi assim, reluzente de pavor,
que se apresentou perante uma plateia repleta de ilustres pensadores
internacionalmente reconhecidos. Caminhou timidamente no palco em direcção ao
círculo de luz que gritava humilhação, ajeitou o microfone à sua invulgar
altura, e com os ombros encurvados de pudor, arremessou, com um clique, o primeira
imagem para a enorme parede branca atrás de si. Da plateia negra que se
estendia frente ao palco sopravam murmúrios, certamente inquisitórios.
-
Quem é este? - Jurou ouvir.
O
burburinho inicial diluiu-se rapidamente na penumbra, e o sigilo do círculo
perfeito de luz que designava inequivocamente o orador, quebrou-se à revelia de
si próprio. Sem saber muito bem como tudo aconteceu, Valter endireitou os
ombros e lançou-se destemido à punição, proferindo um encadear de sons melodiosos
que acompanhavam o ritmo das imagens projectadas. O burburinho da plateia negra
voltou a fazer-se ouvir. Sentado na primeira fila, o Presidente não pode
ignorar durante muito tempo os olhares interrogativos dos restantes
espectadores, e demasiado orgulhoso para admitir o erro da escolha, depôs com
segurança,
- Este homem é um génio!
A
plateia, invertebrada e submissa à opinião inquestionável do Sr. Presidente,
retomou a ordem e aplaudia agora a performance absurda de Valter. A sua apresentação
terminou ovacionada pelo público eufórico, que de pé canonizavam, sem pensar,
um equívoco. O Presidente, inicialmente inchado de orgulho pelo poder magnânimo
da sua influência, e mais tarde dominado pela incerteza da real nudez do orador,
manteve-se fiel à sua avaliação inicial,
-
Verdadeiramente surpreendente! De uma clarividência desconcertante!
Valter
não compreendeu de imediato o porquê dos acontecimentos. Do alto do palanque
não se deu conta de que a onda de aprovação se devia exclusivamente à liderança
cobarde de um, e ao aval cego de todos os outros. Dividido entre a vergonha e a
vaidade e aterrorizado pela euforia da multidão, abandonou o auditório antes
que o Presidente, ou alguém, o pudesse encontrar. Pensava agora em Leonor, no
desejo que tinha de lhe falar, e foi com o raciocínio embriagado que decidiu
procurá-la. Só poderia estar em casa, na casa da tia há anos emigrada no
Canadá. Correu para lá, estacionou o carro em frente à porta, e tocou à
campainha. Claro que Leonor estava em casa. Na verdade não tinha saído o dia
inteiro. O tumulto da noite anterior corroera-lhe por completo o ânimo e telefonara para o consultório a avisar que não
iria trabalhar. Naquele dia Leonor não esperava nada, nem ninguém, muito menos
Valter, e foi com o coração apertado que viu o Fiat Uno estacionado lá em
baixo. Abriu de imediato a porta. Valter subiu os degraus aos pares e deteve-se
apenas ao ver Leonor, vestida com o desleixo de um domingo inútil, e o olhar
húmido a suplicar uma coisa qualquer. Uma explicação, uma justificação, ou até
mesmo uma acusação, um insulto... Valter
caminhou devagar na sua direcção, dando-se tempo para ler os seus desejos. A
cabeça ligeiramente inclinada de Leonor, expondo o pescoço nu à vontade de
Valter, não deixava dúvidas quanto à rendição. Valter abarcou o pescoço
delicado de Leonor com as mãos largas, e no momento em que os seus lábios
tocaram os dela, sentiu duas lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto, incitadas
pelos olhos fechados do beijo. Já no sofá, com os corpos agasalhados um no
outro, Valter tentava uma vez mais fazer-se entender àquela que era, sem dúvida
e apesar de tudo, a mulher da sua vida. Leonor por sua vez, escutava atenta o melodioso
discurso sem sentido de Valter, e em vez de estranheza, pode finalmente
encontrar o que precisava de ouvir, nas coisas que ele não dizia.
E agora com licença que o narrador
vai para dentro. Valter e Leonor fizeram desta história o que bem entenderam,
que não é mais do que as coisas como elas são - escorregadias - e o narrador
reserva-se o direito de não ter saco para atirar mais bolas.