sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sublinhar com força

Desde que me conheço marco os livros com o próprio livro. Dobro o cantinho e pronto. Os marcadores de livros podem perder-se, mas os cantinhos não. Perder o cantinho significa perder o livro todo, e nesse caso não há marcador que valha. Como sou uma cabeça no ar, dá-me muito jeito que o marcador venha já com o próprio livro; ali mesmo no cantinho.
Por ler devagar, poucas páginas de cada vez, acabo por dobrar grande parte das folhas de cada livro que leio. Antigamente fazia-o com algum pudor, não me agradava estragar o livro, dobrá-lo todo. Tinham-me ensinado que se os estragasse depois já não os teria, e já se sabe como são as crianças; diz-se-lhes uma coisa e elas acreditam mesmo.
Faz hoje precisamente não muito tempo que deixei de ser criança na cabeça, e foi só nessa altura, nesse dia impreciso não muito distante, que compreendi que os livros são meus e posso fazer com eles o que bem entender. A mãe não havia de gostar, mas a mãe tem os livros dela e eu agora também já tenho os meus. Mas a mãe às vezes ainda se baralha um bocadinho com essa história do "meu" e do "teu". No outro dia, quando a mãe me devolveu dois livros que lhe tinha emprestado, - não um, dois. Dois livros - disse-me satisfeita que lhes tinha tirado o preço da contracapa.
- Não gosto nada dos preços nos livros. - Disse-me aliviada.
Como referi anteriormente, a mãe ainda se baralha um bocadinho com os pronomes possessivos e, sem querer, limpou os meus, em vez dos dela. Não reagi como seria expectável; não gritei, nem fiz nenhuma birra. Nem sequer chorei balões de ranho pelo nariz até a mãe ir buscar ao lixo o código de barras, cuidadosamente empurrado com a unha do polegar, até se transformar num montinho de papel autocolante, muito idêntico a uma pastilha elástica, para o voltar a pôr no mesmo lugar. Em vez disso, limitei-me a informar a mãe que eu gostava de manter os preços nas contracapas, para que no futuro, quando já não houvesse dinheiro na Terra - sim, isto vai ter de acabar -, poder mostrar aos mais novos que sou muito antiga; é que com tanta parvoíce eles são bem capazes de não acreditar. Bom, mas dizia eu, em vez de gastar energia num ataque de fúria, informei a mãe dos meus desejos e vontades - não podemos não acreditar em bruxas e depois esperar que as pessoas adivinhem coisas -, e pedi-lhe que os respeitasse nos meus livros. A mãe aceitou bem. Pediu desculpa e tudo. Eu disse que não fazia mal e expliquei-lhe a história dos bruxos e das bruxas. A mãe pareceu um bocado surpreendida, talvez por nunca ter pensado numa coisa que, de tão simples, parece complicada.
Cortado o cordão umbilical no que a livros diz respeito, passei a dobrar os cantinhos dos meus livros sem qualquer sentimento de culpa, passei até a dobrar cantos gigantes - praticamente a folha toda transformada num cantinho gigante - quando precisava de marcar uma determinada linha onde alguém tinha escrito qualquer coisa que eu não podia perder de vista. Um dos lados do cantinho a sublinhar o que interessava e estava feito. Estes cantinhos gigantes têm, tal como os cantinhos mesmo cantinhos, uma função utilitária; marcar uma determinada coisa. Os primeiros são temporários e marcam o sitío onde se vai na leitura, os segundos são permanentes e servem para não perder de vista um sítio onde se poderia ficar para sempre na leitura.
Quero com isto dos cantinhos dizer que passei a usar os livros com uma liberdade que não fazia ideia ser tão saborosa. É mesmo, deviam experimentar. Não é amachucá-lo todo ou tratá-lo com descuido, nada disso, é dobrar com cuidado, atenção e respeito. Os livros até gostam, acho eu. Um cantinho temporário é uma promessa; vou voltar, para aqui. Um cantinho gigante e permanete, outra promessa: amo-te e não te quero perder.
É claro que uma vez encetada esta relação de desassombro com os livros, não há como parar. Muitos dos livros duplicaram em espessura de tanto que gostei deles. A mesma lombada a segurar com firmeza 100 páginas, agora gordas como 150. 50 páginas de amor do mais puro.
Por questões meramente logísticas acabei, com o tempo, por substituir os cantinhos enormes pelo simples acto de sublinhar, e assim me livrei da obesidade a ocupar espaço nas prateleiras. Prefiro os cantinhos gigantes, na medida em que não precisam de intermediários - eu e o livro chegamos perfeitamente -, mas com o tempo habituei-me ao lápis e arrisco-me até a dizer que a ousadia de sublinhar um livro, é muito idêntica ao arrojo necessário para se dizer amo-te a alguém.
Por prudência, habituámo-nos a não sublinhar uns nem amar suficientemente os outros.
A prudência faz mais falta no segundo caso é certo, mas o arrojo também. É que tal como já aqui disse anteriormente, não podemos não acreditar em bruxas e ao mesmo tempo esperar que as pessoas adivinhem coisas.
O ser humano é burro, por definição, ou inseguro, ou descrente, o que lhe queiram chamar, principalmente quando gosta. É preciso dizer-lhe tudo, muitas vezes, as vezes necessárias, às vezes só uma, no caso dos fortes, e às vezes muitas, provavelmente demasiadas, no caso dos fracos.
E amar é isso, é sublinhar com força, sem medo de partir o bico ao lápis, sem medo de marcar acidentalmente a página seguinte numa linha errada, ou desadequada. Quando o bico do lápis se parte, afia-se, quando se marca acidentalmente a página seguinte onde não se quer... Bom nesse caso não vejo solução definitiva, mas com a nossa idade quem é que não tem já as páginas seguintes todas marcadas? Com a nossa idade todas as páginas seguintes estão já cravadas de sulcos, de riscos visíveis ou invisíveis, mas que estão lá; mais um não vai fazer grande diferença, muito menos se esse um resultar de um risco certeiro na página certa.
Amar e dizer que se ama é ter a ousadia de sublinhar com força a página actual, sem medo de sublinhar às cegas a página seguinte. E é indispensável fazer isso se queremos que a história avance. Ela, a história, vai terminar um dia, isso é garantido, por isso o melhor é fazê-la avançar sem medo.
Vou contar-vos um segredo: é mesmo verdade aquela história das bruxas. Se não dissermos as coisas importantes, ninguém vai saber. Eu já tinha experimentado com a mãe e funcionou, mas decidi tirar a prova dos nove com ele, e reafirmo que resulta. No outro dia disse-lhe que o amava e também ele pareceu ficar um bocado surpreendido. Talvez por nunca ter pensado numa coisa que, de tão simples, até parece complicada. Depois de recuperado do espanto, disse baixinho:
-Eu também.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

É só um instante

Um dia destes, hoje, acho, acordei determinada a morrer perfeita.
Não hoje; quando o meu tempo chegar, que já não deve ser hoje uma vez que o dia já vai longo, e não pretendo abrir a porta a ninguém.
Espero que o meu tempo também não chegue amanhã, nem depois, nem depois. Não se espera que me leve menos de três dias a resolver uma última imperfeição que tenho em mãos. É coisa complicada que não se alcança de um dia para o outro.
Tenho apanhado as malhas dos dias com a sofreguidão de quem não quer viver com as meias rotas, mas as filhas da mãe não páram de se suceder como foguetes malcriados, difíceis de domar. Costurei as que pude, e apliquei verniz incolor nas outras. Quase não se notam. Está um trabalho bonito de se ver, a sério. Na maior parte dos casos das que não soube coser, podia ter resolvido o problema, na hora, com o vermelho carmim da Risqué que tinha cá em casa. Mas não, preferi esperar e comprar o verniz adequado. Encontra-se por todo o lado, hoje em dia, até no chinês.
Cosidas ou envernizadas, o facto é que quase nem se dá por elas; as malhas, chamemos-lhes assim.
E durante muito tempo andei devagar, evitei meias demasiado finas, cadeiras de palhinha - que para quem não sabe, são verdadeiras assassinas de collants - e usei, todas  as manhãs, da maior cautela ao vesti-las, não fosse uma unha mal limada estragar-me o trabalho.
Mas um dia destes, se não me engano, hoje, acordei determinada a guardar a perfeição para o momento da morte. A morte é um instante, já a vida nem por isso - lenta e penosa, a vadia - e um instante de perfeição eu consigo garantir, basta apenas acertar no instante certo.
Por agora, enquanto esse instante não chega, arrisco. Comprei uma resma de meias elegantíssimas, densidade 8, e deitei fora uma gaveta inteira de meias elásticas, densidade 70, resistentes até a catástrofes naturais, óptimas para a circulação venosa e excelentes como método contraceptivo; ninguém se atreve a pegar numa mulher com pernas de cera, e quando surge um atrevido, é vê-lo suar até conseguir arrancar-lhe os collants.
Estou mais bonita, é certo - as pernas, pelo menos - mas tripliquei as horas dedicadas à costura, e esgoto frequentemente o stock de Risqué do chinês aqui da rua. Vou cosendo e envernizando à medida das necessidades e já não me preocupo tanto com a perfeição diária; ela vai acontecendo, aos soluços, mas convicta.
Na verdade nem sequer estou certa de querer resolver aquela última imperfeição.
- Fazia o quê, depois?
- Escrevia o quê, depois?
- Chorava o quê, depois?
- Ria com quê, depois?

- Abraçavas-me porquê, depois?

Apenas por precaução, apliquei verniz incolor num dos pares de meias elásticas antigas, e guardei-as. Agora já não me preocupo tanto. Quando chegar o momento certo, visto-as e pronto. Mesmo que a malha venha espreitar por cima do calcanhar no momento errado, não faz mal, puxo a meia com cuidado pela ponta dos dedos, escondo a imperfeição dentro do sapato e deito-me sossegada com as mãos sobre o peito.
Eu tinha avisado; um instante de perfeição consigo garantir.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Um pai e pêras

Não sei se já escrevi sobre o meu pai.
Se escrevi, devo ter deixado alguma coisa importante por dizer,
porque hoje,
acordei com uma enorme vontade de falar sobre ele.
(Não com ele. Com ele é fácil. Olá, estás bom? Claro que está. Está sempre bom. Com ele está sempre tudo bem, até mesmo quando não está.)
Mas mesmo que já tenha escrito sobre o meu pai, e que não tenha deixado nada por dizer,
no caso dele,
do meu pai,
nunca é demais repetir.
O meu pai é um pai e pêras.
Não porque me
(nos. Esqueço sempre que somos duas, de tão grande que é o meu pai. Suficientemente grande para ser dois pais; um para cada uma. Duas filhas únicas, irmãs.)
habituou mal no que respeita a fruta. Se assim fosse, teria de ser um pai e pêras,
e maçãs,
e pêssegos,
e até mangas, mesmo quando não havia muito dinheiro.
O meu pai é um pai e frutas.
Um pai e todas as frutas que as meninas gostavam, já descascadas.
Arrisco até dizer que o meu pai é uma melancia, gigante,
O coração, doce e sem pevides, sempre para as meninas.
No caso da melancia, éramos três, também chegava para a mãe. Ainda que no caso dela, com algumas pevides à mistura, como sempre são as melancias conjugais.
Pevides à parte, porque filhas somos só duas e foi disso que me propus falar hoje,
(vocês que são crescidos que se entendam com as pevides)
passemos ao que interessa.
Bom, mas com tanta conversa sobre fruta, já sei o que me esqueci de dizer sobre o meu pai.
Não foi bem esquecimento, não se pode esquecer o que ainda não aconteceu.
Por isso te pergunto, pai:
Lembras-te quando no outro dia te ralhei
(os filhos fazem muito isso; crescem um bocadinho e acham que sabem tudo, até mais que os pais)
porque foste demasiado frouxo,
ou indolente,
ou benevolente,
ou educado
(é isso mesmo, demasiado educado)
com a senhora do Banco?
Lembras-te quando te disse que às vezes eras um bocadinho irresoluto, e que isso dava espaço aos outros (no caso a tipa do Banco) para resolverem por ti?
Lembras-te  da vozinha trémula, quase apagada,
- Pois...
com que ficaste?
E lembras-te também quando, dias depois, te pedi para tratares do pneu do carro que eu tinha rebentado?
(Não furado; rebentado. Um pneu furado qualquer um resolve. Um pneu rebentado, só os maiores sabem resolver, por isso te chamei a ti.)
Pois eu lembro-me disso tudo, e lembro-me também da tua voz segura, ensaiada com certeza, a tentar compensar a fraqueza para com a senhora do Banco, e a repor o meu orgulho em ti.
- Pronto, Sofia, está tratado! Não tinham um pneu igual, só vem em Dezembro. Até lá andas com este que o Sr.Dinis emprestou.
- Emprestou? Então e quanto foi?
(Os teus empréstimos custam-te sempre qualquer coisa que eu sei.)
- Olha, nada...
(Que nada tão grande. Um nada cheio de coragem, determinado. Determinado a impressionar-me.)
- Nada como, pai?
(Eu sei que tu nunca recebes coisas sem pagar nada. Mesmo que essas coisas valham coisa nenhuma. Não gostas, é uma questão de feitio. De seriedade, talvez.)
- Nada. Zero. Sou sempre o parvo que insiste: vá lá, diga quanto... Desta vez aceitei o "fazemos contas em Dezembro". Por que os tempos não estão para recusas irrecusáveis...
Não estão de facto, pai, não depois da cena com a tipa do Banco e da tua vozinha quase apagada,
- Pois, Sofia... Tens razão, devia ser mais firme.
Mas sabes uma coisa, pai, visto agora à distância, quem tinha razão eras tu.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para isso tudo que tu és, e que estupidamente me pareceu errado.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para seriedade lá do fundo, como a tua.
Não daquela à superfície para os outros verem. Não daquela seriedade que se consegue com fatos caros e gravatas de seda. Agora reformado já não usas fato todos os dias, não precisas. Bem vistas as coisas nunca precisaste. Podias ter ido trabalhar a vida inteira de fato-de-treino, porque usas sempre integridade da seda mais pura.
A parte boa sabes qual é, pai?
A parte boa é que agora, sem fatos nem gravatas delicadas para camuflar a verdade,
(camuflar não é só para as coisas más, no teu caso é para as boas. No teu caso o fato só servia para camuflar a moral genuína. Podia induzir em dúvida: será apenas do fato?)
não há que enganar.
Por isso, o que tinha para te dizer é: estiveste sempre certo e eu fui uma estúpida em te deixar a vozinha quase apagada.
- Pois, Sofia...
Pois nada.
Pois uma bofetada na cara, era o que eu merecia.
Pois digo eu, quase sem voz.
Pois é, pai, és um pai do caraças.
Que não passe de hoje, por favor, vais falar com o Sr. Dinis e perguntar-lhe quanto é, que nestas coisas da vida, não dá para afrouxar.
Se quiseres vai de chinelos de quarto. No teu caso não há que enganar.

domingo, 28 de outubro de 2012

A hora da sorte

O telemóvel agarrado ao acaso marcava 22:22 exactas.
Nem mais, nem menos.
Uma fila de números demasiado parecidos uns com os outros para passarem por entre as gotas da chuva, especialmente se essas gotas forem grossas e se essa chuva for densa, como sempre eram as gotas e a chuva da vida de Susana. À quarta vez que, na mesma semana, tal semelhança lhe calhou nas mãos, acabou por concluir que eram, na realidade, iguais. Uma parecença extrema que só podia configurar uma identidade única.
Quando perante o seu olhar incrédulo o último 2 lhe explodiu num 3,
(Plof)
sem qualquer compaixão pelo raciocínio vagaroso de Susana, que ainda não tinha conseguido amassar a informação num bolo alimentar capaz de lhe chegar ao estômago nas devidas condições, encolheu os ombros e deixou cair o telemóvel pela boca da mala que lhe saía debaixo do braço.
Quatro números iguais, independentemente do número de vezes por semana, não deixam de ser isso mesmo: iguais. A igualdade não é mais do que o estádio máximo da semelhança, ou talvez uma palavra inventada para descrever o que o olho humano não consegue distinguir: iguais, portanto.
Simples.
Susana nunca foi uma  mulher de sorte, nem tão pouco de azar. A vida não lhe corria bem, mas nem por isso lhe corria mal. Bem vistas as coisas talvez nem lhe corresse; caminhava, apenas. A sua vida caminhava pausadamente para o final, com o sossego característico de quem não tem pressas. Não é preciso pressa para ir  a lado nenhum - costumava pensar. A pressa precisa de motivação para acontecer. Ali, acontecia apenas que Susana não tinha, até aquele dia, nenhuma das duas.
Enquanto caminhava decidida, mais por hábito do que por convicção - fazia aquele percurso diariamente -, até à cafetaria da estação de serviço junto à estrada principal, ia envolvendo em saliva o que lhe sucedera antes de sair de casa. Não que tivesse problemas de estômago, nada disso, tinha apenas tempo de sobra para deixar que todos os processos, até os digestivos, decorressem como dizem as regras que devem decorrer.
Sentada na mesa do costume, junto ao canto, de frente para a pequena sala sempre vazia àquela hora, sorveu com delicadeza o galão morno que lhe empurrou definitivamente a capicua para o sítio certo. Digerida esta coisa da semelhança ou da igualdade, caçou o telemóvel de antepenúltima geração por entre as inutilidades que carregava na mala, e olhou o pequeno visor cinzento à procura de confirmação.
A confirmação não chegou.
22:37, marcava agora.
Que tolice, pensou. Ainda assim, tola, pousou o aparelho de barriga para cima na mesa e continuou a bebericar o galão. De quando em quando passava-lhe o olhar desinteressado por cima, uma lambidela apenas, é impossível não olhar para o que está mesmo à nossa frente, verdade? Não acreditava em superstições, claro que não, essas coisas da sorte são para os outros, olhava o telemóvel da mesma maneira que olhava a lata dos guardanapos, ou as costas do condutor que se sentara na mesa à sua frente.
Gordo, o tipo.
Tantos lugares vazios e havia logo de se sentar ali, a tapar-lhe o caminho do olhar para a sua telenovela diária. Nos últimos tempos Susana quase não saía de casa durante o dia, mas não dispensava um serão tardio no bar da estação de serviço onde podia ver vida acontecer sem ser reconhecida. Os clientes estavam sempre apenas de passagem e os empregados também. Estes últimos sucediam-se com rapidez suficiente para que nenhum alguma vez lhe perguntasse se queria o do costume. Os seus costumes, neste caso o seu galão nocturno, eram só dela e não queria ter de os partilhar com mais ninguém. Porque de um galão às onze da noite, ou de qualquer outra rotina menos convencional, nascem sempre conjecturas que não estava disposta a tolerar na sua vida.
- Coitada, aquilo são insónias, seguramente.
- Solteira, só pode.
- Trabalha à noite, é certo.
Eram poucas as coisas que não tolerava por isso sentia-se no direito de não querer "seguramentes" ou "só podes" ou "é certos" perto de si. Aliás, nem este telemóvel perto de mim, agora. Chega de parvoíces. E assim que o telemóvel aterrou de costas na escuridão da mala pousada na cadeira ao lado,
23:32
Dois números aos pares a rirem, luminosos.
E perante o seu olhar incrédulo
Plof
23:33
Plof sem qualquer compaixão pelo raciocínio vagaroso de Susana, que ainda não tinha conseguido amassar a informação num bolo alimentar capaz de lhe chegar ao estômago nas devidas condições. Plof, enfiaram-lhe outra colherada na boca, sem  qualquer espécie de piedade pela sua mastigação lenta, como fazem os pais apressados aos bebés preguiçosos.
Pediu mais um galão.
Os costumes estavam, naquela noite, por repetição, dispostos a vencer o ritmo de rotatividade dos empregados da casa, pelo que seria de esperar que não tardassem a chegar os  "seguramentes", os "só podes" e os "é certos".
Que se lixem os empregados. Nunca mais cá volto e pronto. Resolve-se assim.  - Pensou enquanto segurava o olhar no visor à espera de ver quem piscaria primeiro.
Plof, piscou o telemóvel:
23:34
E ganhou, o telemóvel.
33:33 nem sequer existe, Susana. Que tolice e que perda de tempo esperar o que não é expectável.
Não era de todo uma tolice, na sua opinião tolice seria esperar aquilo que se sabe poder acontecer. Se vai acontecer deixa-se ali e pronto, da próxima vez que olharmos terá seguramente acontecido. Que perda de tempo, isso sim, parar o nosso tempo para olhar o tempo natural das coisas fazer o seu percurso ao encontro do que se sabe certo. Se é para parar o tempo, que seja pelo improvável.
O improvável não se decidiu a acontecer naquela noite, nem mesmo depois de cinco galões e um serão inteirinho de angústia, com o telemóvel a oscilar consoante a disposição de Susana; ora refastelado de barriga para o ar em cima da mesa, ora jogado nas profundezas da mala de mão. Em ambos os casos sempre vigiado, entre galões, pelo olhar inquieto de Susana.
Plof
23:44
Plof
23:47
Plof
23:52
- Uiiiii... Tolinha de todo, aquela...
E pronto, em menos de nada, uma distraçãozinha apenas, e os seus costumes estavam expostos, ainda que deturpados, acelerados pela ansiedade da noite. Cinco galões pedidos ao mesmo empregado tinham-lhe deixado o esqueleto à vista. Os costumes que, quis o destino, nem sequer fossem os dela - jamais tomara cinco galões numa só noite - tinham-na deixado vulnerável à presunção certa de um empregado de bar. Nada havia a fazer, agora. Não podia ir ter com o universitário ensebado e dizer-lhe olhe que eu nunca tomo cinco galões numa noite, tomo um apenas. Não havia maneira de falar dos costumes que não eram seus sem referir aqueles de que era legítima proprietária. De uma maneira ou de outra estaria sempre à mercê do julgamento daquele indivíduo de barba rala e borbulhas na cara.
Pagou determinada a não voltar mais. Não se lembrou sequer de que os seus costumes eram indiferentes para a sua tomada de decisão. Podia voltar à vontade, o mais provável era o jovem empregado não durar mais do que a semana que duraram os anteriores e nessa medida o número de galões por noite era absolutamente irrelevante. Naquele momento estava demasiado preocupada com a sua imprudência imaginária - por existir apenas na sua imaginação e não por ser imaginável - para se preocupar com a realidade factual. Não voltaria mais, estava decidido.
Já à porta da estação de serviço, antes de se meter a caminho, olhou uma vez mais o telemóvel, desta vez para ver as horas e não para ver a sorte.
00:00, marcava.
Quatro zeros. Gordos. Vazios. Tão vazios que só podiam ser horas. A sorte, todos sabem, está sempre cheia de coisas.
Claro que são as horas, Susana, só as horas.
Círculos, quanto muito. O melhor que tens a fazer é acordar cedo, amanhã, pegar na secção de emprego dos jornais que tens empilhados lá em casa e fazer muitos círculos gigantes à volta dos pedidos de enfermeiras. Depois, quem sabe se as horas não viram sorte.
Nada de novo, Susana, o costume: as horas são as horas, e a sorte... A sorte não existe, Susana. A sorte é outra coisa qualquer.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tamanho único

Descrevia na rua uma trajectória absurda, limitando-se a vaguear sem noção precisa do futuro próximo.
Observava o mundo pela minúscula fatia de olhar que as pálpebras pesadas não cobriam, numa insistência lânguida de confirmação do amor.
Pormenores quotidianos como,
“Porra, esqueci-me de pedir o gás”
não despertavam nela qualquer interesse ou preocupação. 
A embriaguez da sua paixão tinha-se encarregado de redimensionar as coisas pequenas, tornando-as de uma vez por todas,
pequenas. 

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O silêncio dos velhos

Os velhos, de tão velhos,
(podendo a velhice ir dos 0 aos 100, variando de pessoa para pessoa)
conseguem prever, ainda em fase teórica, não todos, mas a grande maioria dos imprevistos que a prática pode gerar. Esta capacidade de prever um imprevisto pode parecer absurda mas não é: a linguagem tem destas limitações, uma vez que pretende servir alguém no geral e ninguém em particular.
O que serve aos velhos pode não servir ao novos e vice-versa.
E para os velhos quase não existem imprevistos na fase prática. 
Aos velhos, todos os imprevistos surgem na fase teórica, logo, na prática deixam de ser imprevistos. 
Ainda assim continuamos a dar o mesmo nome ao que o velho se esqueceu de anotar num papel e ao que o novo, de tão novo, jamais poderia ter escrito em algum lado.
Compreende-se esta limitação da linguagem, se assim não fosse não haveria árvores suficientes no mundo inteiro para imprimir um, apenas um, exemplar de dicionário que compilasse todas as palavras necessárias a servir com exactidão a diversidade humana. 
Apenas o silêncio, que não carece de impressão, consegue abarcar essa diversidade, se considerarmos que é uma linguagem que tende para o infinito; um buraco negro onde a linguagem, de tão densa, deixa de se conseguir ouvir. 
E aí, finalmente, a harmonia, as proporções correctas do silêncio.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ávida e amável, imagine-se...

Assexuada: mulher que não se interessa por sexo.
Amável: mulher que não se interessa por ser amada.
Ávida: mulher que não se interessa pela vida.


Não existem mulheres ávidas e amáveis, ouviu vezes sem conta.
Assexuadas, sim, existem.
Ávidas e amáveis,
nunca.

Ela,
ávida e amável, enfiou o vestido de florzinhas minúsculas pela cabeça,
e lançou-se ao rio com os bolsos cheios de pedras. 
Três pedras apenas, pequenas, em cada um dos bolsos,
pequenos.

Ávida e amável, esperou que os bolsos pequenos cheios de pedras fizessem o seu trabalho.
Ávida, amável e frustrada, regressou a casa com o vestido molhado pela cintura.
Incrédula, colocou e voltou a tirar as pedras dos bolsos dezenas de vezes.
Não restavam dúvidas: estavam cheios, os bolsos.
Não havia razão para que não funcionasse.

Ávida, amável e sem mais do que seis pedras,  
mandou encurtar os bolsos do vestido de florzinhas minúsculas,
para que ficassem ainda mais pequenos, 
para que pudessem ficar ainda mais cheios.

Por não conseguir enchê-los, de tão cheios que já estavam inicialmente,
optou  pela solução radical.
Ávida e amável, mandou costurar os bolsos e ponto final.
Mais cheios seria impossível.
Infalíveis, pensou.

- Não precisa de mexer nas florzinhas. Estão bem assim, minúsculas. Cosa só os bolsos.

Ávida e amável, enfiou o vestido de bolsos cosidos e florzinhas minúsculas pela cabeça,
e lançou-se ao rio.
Ávida e amável, esperou que os bolsos cosidos fizessem o seu trabalho.
Nem a maré, cheia, ajudou.
Ávida, amável e frustrada regressou a casa com o vestido molhado até aos joelhos. 

Certa de que o problema só poderia estar nas florzinhas minúsculas,
certa de que não seria possível mandar costurar florzinhas,
minúsculas,
certa, tão certa, de que florzinhas minúsculas não usam vestidos de bolsos pequenos,
resignou-se à sua sorte,
ávida e amável.

Pelas flores,
e só pelas flores,
não amáveis, nem ávidas,
apenas flores, minúsculas,
decidiu viver para sempre.

Com o tempo e o hábito,
(certamente mais com o hábito)
deu por si a  viver ávida, amável e feliz,
imagine-se,
para sempre.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Gregueriando

Greguería 100mg - Troika relief.  
Leia atentamente o folheto informativo.


- O pinguim é o pianista do Pólo Sul.

- O urso polar é um peluche carnívoro.

- As reticências são um ponto final gago.

- A ostra é um berbigão que chupa rebuçados.

- A zebra é... A zebra é... A zebra é...
(Lamentamos mas este animal está riscado)

- A morte é um frio sem casaco.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Noves fora, nada.

Estava quase certo de que a água era molhada.
Por não suportar viver na dúvida,
atirou-se ao rio.
Constipado, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que o amor não existia.
Por não suportar viver na dúvida,
namorou trinta e nove loiras, apesar de só gostar de morenas.
Sozinho, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que o fogo queimava.
Por não suportar viver na dúvida,
acendeu um fósforo perto demais.
Desfigurado, respirou certezas durante três dias.

Estava quase certo de que a dúvida era eterna,
Por não suportar viver na dúvida,
respirou fundo e decidiu esquecer essa coisa das certezas.
Em jeito de último beijo, deu-se ao luxo de esclarecer mais uma,
só mais uma:

Estava quase certo de que a corda era mais forte do que ele.
Por não suportar viver na dúvida,
atou-a ao chuveiro e pendurou-se nela.
Gelado, nunca mais respirou e nunca mais teve dúvidas.

Desta vez, acertou na dúvida errada.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O rato e (ou) o elefante

I wish i could wish a mouse, so that i could stop wishing the f**** elephant.
(Em inglês para dar mais credibilidade ao assunto)

Foi mais ou menos isto que cresci a ouvir o meu pai dizer: se queres um rato, deseja um elefante.
Não era bem assim que o dizia, até porque o meu pai não é lá muito bom com animais e muito menos com inglês, mas na essência acho que a ideia está lá: deseja o imposssível para teres o máximo possível.
Impossível e possível juntos na mesma frase devia ter sido desde logo motivo de suspeição, mas foi o pai que disse, e assim sendo...

Gosto muito da teoria e até acho que faz algum sentido, mas como todas as teorias, é relativamente fácil de questionar, basta que tenhamos demasiado tempo livre.
Eu não tenho, mas a minha cabeça insiste em tirar folga mesmo quando eu tenho de trabalhar. E a minha cabeça de folga é um perigo. Em vez de se concentrar no que deve - bebidas com ou sem gelo, vinhos tintos ou brancos, do Douro ou do Alentejo... - gosta de me desafiar com assuntos menores: ratos e elefantes.

E não me venham cá dizer que um elefante é demasiado grande para ser um assunto menor. Experimentem  preparar um bloody mary no espaço minúsculo de uma galley de avião, enquanto se perdem com pormenores de tamanhos, para verem o sarilho que arranjam.

- 150 ml de sumo de tomate
- uma pitada de sal
- 6 gotas de molho inglês
- uma pitada de pimenta preta moída
- 4 gotas de sumo de limão
e, claro,
- 1 dose de gin.

Não é gin, é vodka!
(Eu avisei...)

Se calhar da próxima vez que alguém me pedir uma bebida complicada, vou responder-lhe com a teoria do meu pai,
- Ora aqui está o seu sumo de laranja.- E viro as costas de imediato. Não fico ali em pé à espera que me façam perguntas. Toda a gente teve um pai, não hei-de ser eu a única a saber destas coisas.

Ainda bem que sonhaste alto, rapaz, porque se tivesses desejado um sumo de laranja, tinha-te calhado um copo de água, SEM GELO. Por isso delicia-te com o sumo, que eu já te dou um cartãozinho do meu pai. Assim ajustas contas directamente com ele.

Pois é pai, esta cena do sonho e da realidade seria toda muito engraçada e útil se pudessemos sonhar em inconsciência. Eu explico, que não gosto de coisas confusas:
Se o tipo do 2A pudesse ter desejado um bloody Mary sem se dar conta de que o desejava, estaria agora felicíssimo da vida com o Compal de laranja que lhe apresentei. Não é o caso. Sonhar sem se saber que se sonha é coisa impossível, a menos que se esteja a dormir. E como todos sabemos, sonhar a dormir é apenas uma pequena fatia do sonho em geral. Por isso, se eu desejo um elefante, passo a saber que o posso ter, porque já o tive em sonho. Como queres que me contente com um hamster ranhoso?

Pois é paizinho, esqueceste-te de explicar como se faz isto da resistência à frustração, ou da resignação ao possível, ou da compreensão do que se pode ou não ter. Esqueceste-te e agora sou eu que vou ter de explicar ao tipo engravatado do 2A porque é que faz todo o sentido servir-lhe um Compal de laranja quando ele pediu especificamente um bloody mary.

Sinceramente a minha vontade é dizer-lhe,
- You bloody ignorant! Talk to may dad cause i really dont know what else to say.

Paizinho, o hamster não é assim tão ranhoso, até é querido e tudo mais, mas eu queria mesmo era o elefante. Achas que ainda vou a tempo?

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Um quarto assim

          Desde os quatro anos que Jaime não saía à rua, ou à casa dos avós, ou a outra casa qualquer. Desde os três anos que Jaime não saía para lado nenhum. Nem para a sala. A sua sala. Sabia que existia sala naquela casa, apenas porque de tempos a tempos podia ouvir a mãe encaminhar a única visita da casa, 
          - Entre Sr. Prior. Passemos à sala.
          Jaime sabia a sala grande, enorme para que lá coubessem as conversas graves, murmuradas em ladainhas mucosas, que se repetiam todas as quartas-feiras. Na verdade Jaime não sabia a sala enorme; imaginava. Sabia apenas o seu quarto pequeno. Ou se calhar nem isso. As coisas só são pequenas se comparadas com outras maiores. Por isso, Jaime sabia apenas o seu quarto assim. Na sala as conversas dos outros ecoavam de forma distinta, por isso, não assim, a sala; necessariamente diferente. Na verdade não aconteciam conversas no seu quarto. Talvez por demasiado pequeno, ou demasiado assim. Mas independentemente das conversas e dos ecos, só sabia o seu quarto assim. Era a único espaço que conhecia.
          Recordava-se vagamente dos longos dias de verão passados na praia grande, durante a época balnear, mas a debilidade dessas memórias não lhe bastava para reconstruir o cheiro a maresia. Ou talvez as memórias lhe chegassem através de relatos de outros, e por isso lhe surgissem sempre inodoras. É impossível descrever um cheiro, diriam os mais cépticos. Impossível não é, mas é muito difícil, replicariam os mais crédulos. Jaime diria simplesmente que num quarto assim, é impossível, sim. Não há benevolência que descreva seja o que for num quarto onde não acontecem conversas. Seja ele grande, pequeno ou assim.
          Entregue às maleitas que, de dia para dia, lhe deformavam o corpo (obra do diabo, diziam os médicos), sobrevivia há 64 anos estendido e imóvel, na cama de dossel que o mantinha a salvo do apetite dos insectos que não lograva afugentar.
          Quando o seu pai sucumbiu ao desgosto, Jaime não pode assistir ao funeral. A mãe seguiu os passos do marido poucos dias depois, e mais uma vez Jaime não compareceu à cerimónia.
          Na manhã da missa do sétimo dia, o caseiro deu por encerrada a vida naquela casa, e desferiu sete ruidosas voltas à fechadura da porta de entrada, que ecoaram nos ouvidos de Jaime, como uma condenação em tribunal. Na vila ninguém tinha conhecimento da existência de Jaime. Todos comentavam frequentemente o infortúnio daquela família, cujo único filho caíra ao poço ainda mal andava. E foi como se sentiu naquela manhã; caído nas profundezas de um buraco, para onde ninguém voltaria a olhar. A aflição, impotente, não conseguiu apoderar-se dele, pelo mesmo motivo que nunca conseguira apoderar-se de uma maçã, ou de um prato. As naturezas mortas são, por definição, tranquilas; ou quietas. Não se sentia triste, nem contente, apenas vivo. Talvez nem isso. Na realidade morrera aos quatro anos. Não por obra do diabo que alegadamente lhe desfigurara o corpo, mas por obra dos que o amavam, mas que por vergonha lhe apagaram a alma. Permaneceu então pousado para sempre, na exacta posição em que a mãe o deixara no dia da sua morte, inevitavelmente sossegado (do corpo, e também cabeça), à espera que o fim lhe oficializasse a morte.
          Jaime nunca chegou a aprender a ler, nem a escrever. Desaprendeu até de falar o pouco que alguma vez tinha dito. O seu conhecimento do mundo limitava-se à realidade que lhe chegava pela janela de um casarão plantado no meio do nada. Nem o pai, nem a mãe alguma vez trocaram com ele mais do que as palavras essenciais à sua sobrevivência.
          - Abre a boca que a sopa arrefece.
          Teria sobrevivido independentemente da temperatura da sopa. Um
          - Abre a boca
          teria bastado.
          Inquieto pelo incómodo das feridas do corpo há anos inerte, vivia ironicamente no sossego próprio da doença e do desconhecimento. O corpo sossegado por não se conseguir movimentar, e a cabeça sossegada por quase nada saber. Sabia que o sol nascia pela manhã, que se punha ao final da tarde, que a sopa devia comer-se ainda quente, e pouco mais.
          Cinco dias passados da segunda condenação em vida ditada pelo som do ferrolho, Jaime acordou uma manhã, mais cedo do que o costume, com uma voz grave e longínqua que lia em voz alta coisas que não compreendia. Coisas indecifráveis para alguém que, como ele, nada sabia. Coisas de planetas diversos, e países distantes.
          Mas o que era distante?
          Coisas de rios e montanhas.
          Mas o que eram rios?
          E montanhas?
          Por oposição ao silêncio de outrora, o seu dia era agora passado a escutar esta voz que não fazia ideia de onde viria. Quando não podia mais segurar o sono deixava-se adormecer, acordando no dia seguinte com essa mesma voz, insistente, a debitar matéria ininterruptamente. De início desconsertado com a informação proferida, Jaime foi-se acostumando à voz ritmada que lhe preenchia os dias, e foi construindo a realidade a partir dessas palavras. Ao cabo de um ano o seu mundo era já redondo e o país onde vivia tinha já um nome. Os rios doces nasciam nas montanhas e corriam para os mares, que por sua vez eram salgados. Ao fim do segundo ano conhecia a razão pela qual o sal dos mares não contaminava a doçura dos rios, e a meio do terceiro ano, desafortunadamente, deu-se conta da teimosia dos homens que não se contentavam com rios doces e mares salgados. Insistiam em ir mais além, mais distante (já sabia o que era distante. Já conseguia imaginar, pelo menos), muito para lá daquilo que as coisas são. Foi então que se lembrou da mãe e do pai incapazes de suportar a realidade insuportavelmente salgada de um filho diferente, e que por vergonha construíram um rio de mentira que lhes trazia a doçura da normalidade perante os habitantes da vila, mas que tanto lhes amargava na boca nos poucos momentos que subiam ao quarto do filho para o alimentar.
          Agora demasiado sábio,
          (Sim, demasiado, porque penosamente sábio)
          Jaime passou o que restava do seu tempo a tentar evitar aquela voz, que cada vez mais próxima, insistia em depor informação que não desejava mais ouvir. Aos 67 anos a aflição conseguira finalmente deitar-lhe a mão. Angustiado, esforçava-se em vão por fazer chegar aos ouvidos as mãos inertes, há anos pousadas sobre o lençol de linho. Raras vezes conseguia emitir sons, roucos e desajeitados por anos de silêncio, que abafassem a voz que a cada dia se ouvia mais próxima da porta do seu quarto. Parecia destinada a fazer o seu caminho, a voz, lentamente, degrau a degrau, palavra a palavra, aproximando-se com tempo; o tempo necessário para que as condições perfeitas se instalassem. E as condições foram-se instalando, com a tranquilidade e a indolência com que uma nuvem de pó faz o seu caminho de volta ao tampo da mesa de onde foi sacudida com um espanador.
          O sol deixou de nascer de manhã. Aliás, deixou de nascer de todo, numa tentativa, divina talvez, de cegar a lucidez que atormenta os demasiado sábios. Mas a escuridão dos dias pouco podia fazer pela desgraça de Jaime; não se pode regressar do desassossego do conhecimento.
          Numa manhã invernosa, num horário em que o sol teria já nascido, fossem outras as circunstâncias, Jaime despertou do sono perturbado, com o ranger da sua porta que há três anos não se abria. Iluminada por uma vela insuficiente que segurava na mão direita, surgiu à entrada uma figura pequena de rosto acabrunhado e envelhecido, que segurava na mão esquerda um enorme livro aberto.
          - Estás pronto? - Perguntou piedoso.
          Jaime agitou-se na cama, empenhado em conseguir responder, mas nada, nem o mais ténue grunhido conseguiu emitir. A figura aproximou-se lentamente e Jaime reconheceu uma certa familiaridade naquele rosto. Apesar de mais envelhecido, era sem dúvida o homem que costumava a ver a arranjar o jardim das traseiras, nos tempos em que havia jardim. A expressão de misericórdia intacta, igualzinha à que tinha quando arrancava as ervas daninhas para que não perturbassem o esplendor colorido das gerberas.
          - Essa barba está enorme, Jaime. É assim que se parecem os homens sábios. Pareces-me pronto, Jaime.
          O caseiro pousou o enorme livro sobre a cómoda, abriu cuidadosamente a primeira gaveta, e tomando na mão um punhal de cabo de marfim, perguntou
          -Estás pronto, Jaime?
          Claro que estava pronto. Demasiado pronto, até. Talvez aqui não sirva o "demasiado". Estava pronto, apenas. Demasiado sábio, logo, pronto.
          Jaime assentiu com a cabeça e o homem aproximou-se. A luz incapaz da vela agora pousada na mesa de cabeceira, iluminava a enorme barba grisalha apenas o suficiente para que se cumprisse o desígnio. Sabia que era sua a decisão, e não teve dúvidas. No momento em que sentiu a lâmina gelada roçar-lhe a traqueia, posta caridosamente a jeito para que decidisse, Jaime optou pela solução radical. Naquele ponto já não havia barba rasa capaz de lhe apaziguar a alma. Fitou o caseiro em agradecimento, e quando viu descerem-lhe as pálpebras expulsando um mar enorme, dir-se-ia até um oceano, sobre a face rosada, e apertar com firmeza o cabo de marfim em sinal de consentimento para que se cumprisse a vontade do filho, Jaime desferiu um movimento brusco de cabeça ao encontro do sossego final.
          E de repente tudo apenas assim outra vez. Nem grande, nem pequeno.
          Sossegadamente assim, apenas.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Matemática das verdades

          Ao Nuno, por não precisar de contar pelos dedos.


          Às vezes a minha Lua está sempre cheia.
          Um dia, se tiver sorte, ou coragem, a minha Lua vai estar cheia para sempre.
          Por agora contento-me com as vezes em que a minha Lua está sempre cheia.
          São cada vez mais, essas vezes. 
          No outro dia aconteceu-me uma dessas vezes em noite de Lua Nova. E isso significa que,
          um dia, se tiver sorte e continuar a ter coragem, a minha Lua vai estar cheia para sempre.  
          Nunca fui pessoa de fé. Gosto da verdade verdadinha, da que se pode confirmar com uma conta de somar ou de subtrair. Ou até mesmo de dividir. A sério, pode ser de dividir. Conto pelo dedos, se for preciso.
          Sempre me baralharam as divisões matemáticas, não as outras de que é feita a vida. 
          (Sim, a vida também é feita de divisões.)
          E vai um... Ou dois... Nunca me fez sentido, aquilo. Vai para onde?
          Mas não te preocupes, deixa as contas comigo, já te disse que conto pelos dedos se for preciso. 
          Neste caso não vou sequer preocupar-me em esconder a mão atrás das costas. Nestes assuntos importantes não há vergonha possível. Faço qualquer coisa pela minha Lua cheia para sempre, pela nossa Lua cheia para sempre. 
          (Sim, divido a Lua contigo, claro.)
          Uma Lua a dividir por dois, por nós dois pelo menos, dá uma Lua cheinha para cada um. A mesma. 
          Pode ser? 
          (Vês, podes ficar tranquilo, nestes casos nem preciso de contar pelos dedos)
          Faço qualquer coisa por uma verdade verdadinha, daquelas que de tão verdades, não existem, se não tratarmos de as fazer. Se calhar só por isso faço tudo por ela. Que graça teria fazer tudo por uma coisa que, de tão simples, existe por todo o lado? 
          Antigamente não havia a roda, nem o fogo, nem o ipad. E pior, havia Plutão e a Terra plana. Tudo verdades verdadinhas até alguém ter tempo de as fazer, ou desfazer.
          É mais difícil desfazer do que fazer. Ou talvez apenas mais difícil de compreender. Faz-se o que se faz porque se precisa das coisas. Mas desfazer uma coisa já feita, que não chateia nada,
          (Que mal fazia Plutão ali no final? Ou que mal fazia a Terra plana? Nenhum.)
          é coisa para precisar que se conte pelos dedos.
          Mas não sou eu que vou aborrecer quem gosta de desfazer as coisas. Cada um sabe de si. Se calhar da mesma maneira que eu preciso da nossa Lua cheia, também alguém precisou de Plutão dali para fora. Se calhar dividiu-o demasiado, ou esqueceu-se de contar pelos dedos. Quem sabe até dividiu Plutão com alguém, mas esqueceu-se que nestes casos o resultado tem de ser sempre um. Só um. O mesmo. Para os dois.
          Há pessoas assim, egoístas.
          Eu também já fui assim. 
          Um dia não quis dividir um cubo mágico com a minha irmã, e ficámos as duas a perder: zero cubos mágicos para cada uma. Parece que eram caros e os pais só podiam comprar um cubo mágico para as duas. Nessa altura eu tinha dificuldades com as divisões todas, não só as matemáticas. A minha irmã não. Sempre foi boa com os números. Ao ver-me espojada  no chão, a chorar, e a contar pelos dedos com a mão atrás das costas,
          (Naquela altura eu ainda tinha vergonha.)
          a minha irmã disse aos pais que podiam comprar só um cubo mágico para mim, que não fazia mal, que ela não se importava. Mas os meus pais nunca gostaram que as meninas não cumprissem com as obrigações escolares, e a boa prestação a matemática da minha irmã não foi suficiente para encobrir a minha total incapacidade de lidar com os números. Zero cubos mágicos para cada uma. Que injustiça. Para a minha irmã. 
          Posto isto sou bem capaz de ter sido eu a espatifar Plutão sem me dar conta.
          Se fui, peço desculpa, e prometo não repetir a graça. Agora, a minha conta há-de dar sempre uma Lua, a mesma Lua, para os dois. Continuo péssima a matemática mas aprendi a contar bem pelos dedos. Desde que a conta dê certa, pouco importa se é talento ou trabalho.
          No meu caso é trabalho. 
          Pode ser?  
          A verdade está sempre relacionada com o tempo, e isso tenho de sobra; até ao fim da vida.
Não que me sobre tempo. Claro que não sobra. Aliás, contigo há-de sempre faltar-me tempo. Mas se me disponho a usar todo o que tenho para que a conta dê resto zero, então tenho de sobra, sim. Que não é mais do que uma forma megalómana de dizer: tenho o tempo todo para encher a Lua contigo. 
          O tempo todo sobra sempre para alguma coisa. Mas só para as coisas simples. Para fazer um bolo, por exemplo, não é preciso a vida toda, por isso sobra. Quando dizemos que temos tempo de sobra para fazer qualquer coisa de que desconhecemos a duração, significa apenas que estamos tão empenhados 
          (ou dependentes) 
          em concluir essa tarefa, que nos dispomos a usar todo o nosso tempo de que dispomos para a terminar, com ou sem êxito, até que não sobre nada. 
          Essa entrega,
          (ou desespero. Desespero, claro.) 
          é mais do que suficiente para legitimar o exagero da expressão "isso tenho de sobra". 
          Tenho a falta de talento para a matemática com que nasci, mas tempo de sobra.
          Comprei até um caderno quadriculado.
          E assim sendo, vou usá-lo todo, todinho, para garantir que a nossa Lua vai estar cheia para sempre.
          Mesmo que só me aconteça na véspera do fim. Ou no dia do fim.
          Nestes casos pouco importa se o resto é zero. 
          O importante é que se use o caderno todo.

quarta-feira, 11 de julho de 2012



Se desse, era isto:


Não sei se é literário,
mas tem linhas,
e nuvens,
e um tipo no sítio errado,
e letras.
Não são letras, são pombos!
Olha... então já não dá.




[Treta originalmente publicada em Novembro de 2011 num blog já morto e ressuscitada aqui]

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A graça da Graça

À noite escolho sempre o vestido.
Não por vaidade, apenas por ser mais confortável.
Ontem, por ser já muito tarde e chover desalmadamente, fiquei na dúvida; talvez as calças fossem uma escolha mais inteligente.
Abri o armário e os colares ecoaram violentamente na porta de madeira, em três intensidades distintas, até se silenciarem inertes.
(Se calhar não foi assim tão boa ideia pendurar ali as bugigangas todas)
Bom, dizia eu, abri a porta do armário e nem um único par de calças passado a ferro. Estava deliberada a sentença sem possibilidade de recurso: hoje usaria o vestido. Aprecio quando o Universo (para os mais esotéricos) ou o acaso (para os mais descrentes) tomam decisões. O acaso tinha-se decidido hoje pelo vestido e nem por momentos desejei questioná-lo. Agradeci-lhe apenas.
Tinham passado doze dias desde o meu último vôo, e a rotina que automatiza os preparativos de forma irrepreensível, encontrava-se já algo esbatida. Por ser nestas alturas que deixo para trás coisas importantes como as havaianas ou a escova de dentes, fiz a mala com o maior dos cuidados. Fechei-a, segura de faltar nada, e transportei-a em peso até à porta para não incomodar a chata da vizinha de baixo.
Enfiei o vestido pela cabeça, contorci-me para chegar ao fecho das costas, corri-o de uma só vez até ao pescoço com a prática das surfistas profissionais, e ajeitei-o ao espelho enquanto descontraía os braços do esforço. À excepção do fecho traseiro, o vestido é de facto uma peça descomplicada. Não é preciso entalar constantemente a camisa na saia de cada vez que se levantam os braços. Há quem a prenda nos collants para prevenir o incómodo, mas eu ainda não me rendi a essa solução, com a mesma convicção com que me recuso a usar touca de banho quando não quero molhar o cabelo: dá jeito, sim senhora, mas não há auto-estima que resista a qualquer uma das duas imagens. Enquanto não se proibirem os espelhos, ninguém me apanha com a camisa presa nas meias, ou com uma touca de banho de elástico franzido a vincar-me a testa. Naquele dia lavei o cabelo, substituí a camisa pelo vestido, e tive inclusivamente o cuidado de não arrastar as rodas da mala no soalho de pinho, para não aborrecer a Graça.
A Graça aborrece-se com facilidade, e não me custa nada facilitar-lhe um serão em paz, pelo menos enquanto a minha coluna colaborar. Para não lhe perturbar a telenovela, vagueei pela casa de vestido formal e chinelos de pêlo, enquanto tomava as últimas providências para que tudo ficasse tranquilo na minha ausência. Janelas e estores devidamente fechados para não entrar água, um breve aceno de perdão às bubanvílias do terraço por deixá-las entregues à sua própria sorte e ao mau humor do vento, luzes apagadas, televisão desligada no botão para poupar meia dúzia de cêntimos que não fazem diferença a ninguém mas que o planeta agradece, e tudo mais que me garanta as coisas no mesmo sítio quando voltar a casa. Talvez não as buganvílias.
Neste vai e vem de guardiã, mesmo de chinelos felpudos, é impossível evitar por completo o chiar da madeira. Sei bem onde mais lhe dói e evito lá pisar, mas o soalho está velho e já lhe sobram poucas zonas sem mágoa, pelo que o bem estar da minha vizinha de baixo não depende apenas da minha boa vontade, mas também da saúde do desgraçado de pinho.
Por sentir alguma agitação no andar de baixo, detive-me alguns momentos antes de sair a porta e dar início ao momento mais temível para a telenovela da Graça: descer três andares de escadas ínvias de madeira, com uma mala de doze quilos nas mãos, e sete centímetros de saltos nos pés. Ainda considerei a hipótese de descer as escadas descalça, e assim teria feito, não se desse o caso de ter as duas mãos ocupadas. Entre evitar o conflito com a vizinha, ou o ridículo de ser apanhada com os sapatos pendurados na boca, decidi-me por conservar a dignidade.
Com a mala pousada no chão e a porta ainda fechada, subi para os sapatos que me aguardavam à saída, chutando os chinelos para o lado num (dois, neste caso) trejeito(s) decidido(s), respirei fundo, levantei a cabeça e deitei a mão à chave. Abri a porta, em bicos de pés passei cuidadosamente a mala para o lado de fora, e dei três voltas à fechadura com os ombros encurvados na esperança vaga que a postura asfixiasse o barulho.
- Endireita as costas! Onde já se viu, uma rapariga da tua idade com medo de uma vizinha.
- Não é medo, é respeito.
(Tinha aprendido esta desculpa em pequena durante as férias de verão na Ericeira, e desde então usava-a sempre que me dava jeito, mesmo que não fizesse sentido nenhum)
Endireitei as costas, enchi novamente o peito de ar, e lancei-me às escadas num sapateado inevitável de quem usa sapatos dois números acima para prevenir o incómodo das dilatações próprias da altitude. Quem apenas me ouvisse, nunca diria que me esforçava por não fazer barulho, mas quem me pudesse ver, não teria qualquer dúvida. A carteira a tiracolo atirada para trás das costas, as duas mãos na pega da mala a tentar equilibrar doze quilos de bagagem sem arruinar o verniz dos degraus de madeira, nem romper os collants, as pontas esvoaçantes do lenço de seda a taparem-me os olhos,
(quem deixou a porta da rua aberta?)
e as passadas largas
(mais humilhantes que um par de sapatos na boca)
a desenharem círculos vagarosos no ar, para não falhar os degraus, nem deixar cair os sapatos.
Apesar do esforço, era inevitável que o salto batesse primeiro no degrau, e eu sabia muito bem que quarenta e cinco tacadas daquelas jamais poderiam passar impunes aos ouvidos da temível Graça.
(Engraçado ela chamar-se Graça)
Como sempre acontecia, lá por alturas da décima quarta chinelada, a respiração treinada cessava de conseguir controlar a ansiedade. O coração disparava, o mais pequeno ruído
(até mesmo o mais pequeno silêncio)
parecia-me o som da porta da vizinha a abrir e, a descida inicialmente pausada entrava em modo de aceleração descontrolada, que só por mero acaso nunca resultou em tragédia. Saltando os degraus aos pares, aterrei cá em baixo, desfeita. O rabo de cavalo pendurado de lado, o rímel desbotado pela pele humedecida de medo e, claro, as meia rasgadas.
No momento em que a porta da rua se abriu, dei-me conta de que nem sequer tinha posto o lenço naquele dia.
- Boa noite menina. Mais uma viagenzinha? Tem de ser, não é?
- Sim, tem de ser.
- Tenha cuidado, olhe que chove que Deus a dá.
- Obrigada Graça, até sexta. - Respondi com um enorme sorriso apavorado.
Tenha cuidado?
Tsst... Olha que esta!
Como se a chuva fosse coisa para me amedrontar...


[Treta originalmente publicada em Novembro de 2011 num blog já morto e ressuscitada aqui]

quinta-feira, 5 de julho de 2012

O tamanho das coisas

          O sacana grande brincava com o rapaz pequeno de manhã, e sacudia-o com força à noite. Algumas noites. Cada dia mais noites. O rapaz pequeno quase não existia, respirava apenas, para que o sacana grande pudesse brincar com ele de manhã, e sacudi-lo com força à noite. A mãe do rapaz também era pequena e também quase não existia, por isso o rapaz pequeno acreditava que era assim mesmo, que bastava respirar. Algumas manhãs o rapaz pequeno desejava vagamente existir, mas o dia acabava cedo, e a tasca do Sr Simões fechava tarde.
          Respirava apenas, então.
          A mãe pequena do rapaz pequeno existia mais um bocadinho, mas apenas o suficiente para conseguir ir às compras. Como castigo por não conseguir tratar do jantar sem ter de ir à rua, o sacana grande sacudia-a ainda mais violentamente.
          O rapaz pequeno cresceu, e acabou por descobrir o verdadeiro significado da expressão "anda cá que eu sacudo-te as moscas". Descobriu também que nenhuma mosca alguma vez sobreviveu à expressão. Felizmente o rapaz nem sequer existia, pelo que não podia ser uma mosca.
          Um dia, pela manhã, o rapaz pequeno agarrou numa faca grande, e com as mãos que tinha graças a não ser uma mosca, fatiou o sacana. O sacana ficou finalmente pequeno. Muitos bocadinhos pequenos.
          A mãe acabou de fazer a sopa, limpou as mãos encarnadas ao filho, arrumou as malas, e partiu com o rapaz para o lado de lá.
          A Rosa Maria e o Miguel viveram felizes para sempre numa casa cheia de moscas.
          O sacana grande, agora pequeno, nunca chegou a ter nome.
          Nem na lápide.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O fim das coisas

O fim devia vir sempre no meio.

Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e ele... doce... pôs...
Era simples, Miguel.
Parece contraditório, mas não é. Tu é que estavas cansado e baralhaste tudo.
O fim é uma coisa demasiado importante para acontecer apenas no final,
e assim sendo,
o fim devia vir sempre no meio.

O fim de um livro, por exemplo, jamais se devia deixar adivinhar pela mão direita vazia, três folhas apenas, fininhas, numa mão suada a ansiar o beijo demorado dos amantes que se desejaram durante demasiadas páginas para que acabem por não se beijar no final,
os amantes.

Uma mão vazia e suada porque sabe tão bem que o beijo dos amantes não cabe em três folhas apenas.
Uma mão suada a desesperar com o desespero dos amantes que não chegam a beijar-se,
ou a desesperar com os amantes suados quando o beijo chega.

Os amantes beijam-se sempre, mesmo que seja só no final. E também por isso,
o fim devia vir sempre no meio.

O fim dos livros, de alguns livros, daqueles em que se beijam os amantes, pelo menos,
devia vir sempre no meio.
O fim desse livro,
(é sempre o mesmo livro, independentemente dos nomes dos amantes)
devia acontecer com a mão direita ainda gorda de folhas,
mesmo que em branco, e fininhas,
desde que muitas.

Muitas folhas a não deixarem adivinhar que o fim se aproxima,
ou não deixarem temer que o beijo nunca chegue.
Bom, adivinhar ou temer, pouco importa. O importante é que se beijem,
os amantes.

Mas sem a mão gorda de folhas...
Sem a mão gorda de folhas o beijo não pode chegar, caramba!
O beijo dos amantes não cabe em três folhas, apenas.
Não, fininhas, assim.

Acho que não pedi demais. O homem vai à Lua, Miguel. O fim no meio não pode ser coisa complicada.

Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e ele... doce... pôs...
Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, mas esqueci-me de lhe dizer qual meio.
(Foda-se, como é que me fui esquecer de lhe dizer qual meio.)
(Era no meio do livro, Miguel.)
Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e o cabrão meteu-o no meio dele.
Eu pedi, e ele... doce... pôs...
mas enganou-se,
ou cansou-se.
Foi isso, o cabrão cansou-se e agora não há nada a fazer.
Não há mão gorda de páginas brancas que lhe resolva o corpo gelado.
A temperatura é coisa que não deixa dúvidas.
O fim já foi.
Logo o teu.
E bem no meio, Miguel.
Logo no meu.

O homem vai à Lua, caramba!
Até um sacana de um cão já foi à lua. Uma lassie, um cão de cabelo esticado, imagine-se.

O fim devia vir sempre no meio, sim.
Mas não no teu, Miguel.
Não no teu.
Ou pelo menos não no meu, caramba!
Logo eu, que estiquei o cabelo de propósito.
Logo eu, que queria tanto ir contigo à Lua.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

A minha irmã é às cores

Eu tenho uma irmã enorme.
Eu tenho uma irmã que consigo enfiar debaixo do  braço,
mas que anda sempre de saltos altos.
A minha irmã é a pessoa mais importante do mundo.

Uma vez uma pessoa disse-me que isso não era verdade,
que o meu mundo, não era o Mundo,
e que assim sendo a minha irmã era apenas a pessoa mais importante do meu mundo.

Mas o meu mundo pertence ao Mundo,
(escusam de me dizer que não parece)
e para aquilo que tenho para dizer,
o pronome não faz qualquer falta.

Neste caso o pronome nem sequer é possessivo,
já nasceu assim, a minha irmã,
minha.

A minha irmã é a pessoa mais importante da minha vida.
É quase tão importante como os meus pais.
Não é preciso dizer que os pais são a coisa mais importante do mundo.
Por isso, logo a seguir ao que não é preciso dizer,
vem aquilo que precisa de ser dito:
A minha irmã é a pessoa mais importante da minha vida.

A minha irmã tem sempre coisas sábias para me dizer quando eu não sei nada.
Quando éramos pequenas e eu tinha medo
(as irmãs mais velhas nunca têm medo)
A minha irmã dizia-me:
- Imagina que és uma princesa vestida de cor-de-rosa e que vives num mundo todo cor-de-rosa.
(Irra, que a miúda já sabia da vida naquela altura)
E eu adormecia às cores.

Agora, de cada vez que eu tenho medo
(as irmãs mais novas podem ter medo a vida inteira)
a minha irmã já não me vem com a tanga das princesas.
Agora, de cada vez que eu tenho medo,
a minha irmã diz-me:
- Deixa-te de merdas e faz-te à vida como um homenzinho.
E eu vou,
à vida,
como um homenzinho cor-de-rosa.

A minha irmã sabe bem que os homenzinhos e as princesas são tudo a mesma merda,
desde que coloridos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Afinal, quando nascer, também posso ser portuguesa

"Alguns homens são de tripas e escamas, depois de amanhados ficam um pouco que não chega e mal se vê. Há outros em que tudo se aproveita, homens com segredos nas entranhas e na pele, que contam histórias sem fim. São esses os homens bons e às vezes nem homens são, mas cães ou gatos, ou crianças que brincam umas com as outras." - in No meu peito não cabem pássaros, de Nuno Camarneiro

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O mar condicionado

- É noite e chove lá fora.
Bom, talvez não chova, talvez seja o mar.
Sim, é isso, é o mar.
Reformulando,
- É noite, não chove lá fora, e ouve-se o mar.

Também não neva e não dizes que não neva. Porque é que dizes que não chove?

Pois.
Reformulando,
- É noite e ouve-se o mar.
Não gosto assim. Falta-me o lá fora. O lá fora faz muita falta neste caso, porque é preciso dizer às pessoas que o mar não está cá dentro.

Mas isso toda a gente sabe.

Ainda assim, não quero que haja dúvida. Preciso do mar mesmo, mesmo, mesmo lá fora.

Tudo bem. Deixa que eu reformulo por ti,
- É noite e ouve-se o mar lá fora.
Gostas assim?

Melhorou, mas faz-me pena que o mar esteja lá fora sozinho, entendes? Prefiro que esteja acompanhado pela chuva mesmo que ela não caia.

Tu é que sabes,
- É noite, não chove lá fora, e ouve-se o mar.
Serve?

Não sei. Se calhar o melhor é deixar o mar na caixinha cá dentro, e desligo-o quando quiser. Assim como assim está tudo preto lá fora. Podemos lá pôr o que quisermos.

Mas aí dentro tens a luz acesa, e também aí meteste o que quiseste.

Sim, mas é uma luz fraquinha, quase escura, e o ar condicionado não se importa de fazer de mar.
É que tenho medo que chova lá fora.

Então e o lá fora fica sozinho?

O lá fora só existe se lá metermos coisas. Mas não te preocupes, pode ser que chova.

sábado, 12 de maio de 2012

...

Uma desculpa é geralmente uma mentira.
Ou pelo menos uma fuga.
E as outras, as que se pedem, são o quê?
Ou melhor,
e as outras, as que se podiam pedir, são o quê?
Não sabes?
Não faz mal, tenho uma ideia:
vens-me buscar, pedes-me desculpa e fugimos os dois.
É que assim fica o assunto resolvido.

Não podes?
Não faz mal, pede-me desculpa que eu fujo sozinha.

Também não podes?
E se eu chorar, pedes?
Também não serve?
E se eu chorar muito, pedes?

Não faz mal, não te preocupes, peço ao sr. da farmácia.
A sério, fica tranquilo, não lhe custa nada e sei que não vai dizer que não.
Depois passas lá um dia e agradeces-lhe.
O importante é que alguém me peça desculpa.

Descaradamente copiando ALA


          Esta é uma "coisa" que escrevi em 2010 e que se perdeu na blogosfera. Recupero-a hoje, aqui, para que não se perca nunca mais.

          Sempre ouvi dizer que um dos segredos para aprender a escrever é copiar muito. Copiar bom, copiar bem. Por falta de tempo ou de outra coisa qualquer, não faço muito isso.
          No outro dia vi-me obrigada a copiar uma crónica de António Lobo Antunes para publicar num blog. Alguém tinha de o fazer. Calhou-me a mim e ainda bem.
          Uma cópia é um desafio doloroso à minha quase inexistente capacidade de concentração. Copio letra a letra, em esforço, devagar, muito devagar. O olhar arrastado entre o ecrã e a revista Visão, distrai-me a cada balanço. Qualquer coisa serve: 
          uma formiga apressada; 
          uma auréola de café com leite ressequido que o rabo molhado da caneca imprimiu na mesa, castanho claro numa ponta, castanho escuro na outra, a lembrar as montanhas dos mapas de geografia do liceu; 
          a formiga a atravessar a fronteira de café com leite;
          a formiga sem parar na alfândega improvisada pelo pacote de açúcar amachucado, para mostrar a bagagem que transporta para o lado de lá de uma linha que, quando vier a D. Olívia na terça-feira deixará de dividir dois mundos que afinal nunca existiram; 
          a formiga cansada com um calhau de açúcar refinado às costas;
          (mas porque é que não pousas o calhau enquanto esperas, caramba?)
          e a colher que misturou a fronteira com  o açúcar, nos tempos em que a fronteira ainda estava dentro da caneca, a barrar o caminho à formiga cansada...
          Por conta das formigas e das canecas - e vendo bem, também por conta da D. Olívia que nunca vem a tempo de apagar distracções com a Villeda encardida - salto linhas, entronco (existe este verbo?) palavras, invento adjectivos, termino frases sem copiar nada....
          Faço com as cópias o que faço numa conversa de café. Sou daquelas chatas que abana sistematicamente que sim com a cabeça enquanto o outro fala. Há quem sacuda cabelos soltos ou restos de escalpe dos ombros de quem tem a palavra, eu prefiro - na realidade não consigo evitar - completar as frases dos outros.
          (E ele provavelmente a não querer que eu lhe complete as frases.)
          (E eles provavelmente a desejarem que eu pare de abanar a cabeça.)
          Digo sempre a última palavra. Quando não vou a tempo, substituo a que já foi dita por uma mais adequada, mais ilustrativa, ou que só eu acho mais adequada ou mais ilustrativa e que provavelmente não passa de ruído para o outro que deseja apenas quem lhe escute as coisas, sossegado e em silêncio.
          Se calhar termino sempre as frases dos outros numa urgência de mostrar atenção ou concordância,
          (mais concordância, acho)
          ou quem sabe num sobressalto de quem não aguenta mais discórdia. Assim, completando-lhe as frases, asseguro-me de que convergimos pelo menos no pensamento.
          (E eu a saber tão bem que nunca convergimos. Tocamo-nos aqui e ali, pontualmente, só isso)
          Esqueço o que sei e asseguro paz, fabricada por uma convergência absoluta, necessariamente fingida.
          Eu queria ter uma convergência absoluta com ALA, mas não tenho, ninguém tem. Limito-me então a copiar-lhe desajeitadamente as crónicas, e a sonhar que se alguém tivesse, seria eu.

Cansada de escrever no cinzento,

por isso aqui fica: preto no branco.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Recomeços e entretantos

          Só depois da poeira assentar novamente nas coisas se pode compreender que o único problema sem solução chega sempre tarde demais, pelo menos para o próprio. E quanto à morte, não há muito a fazer; quando chegar não teremos tempo sequer de lhe acenar com a mão. Para além do fim material - chamemos-lhe assim - , nenhum dos outros é permanente. Porque se todos durassem para sempre não existiria a palavra recomeçar. E recomeçar não é mais do que começar depois de um fim. E começar depois de um fim significa que alguma coisa aconteceu para que pudesse acabar. E se alguma coisa aconteceu, não há como virar a cara para o lado e simplesmente começar. Podemos virar a cara para o lado, sim, mas o que se segue é um recomeço - um começo do fim, mas para a frente e não a andar para trás. 
          Gostamos de dizer que vamos recomeçar do zero, mas não se pode recomeçar do zero. O zero ficou para trás e não há como lá voltar. Podemos até pegar numa lasca de tijolo e escrever um zero gigante onde quisermos - aviso desde já que esta forma arcaica de giz só escreve bem no alcatrão -, podemos até olhar para o lado a tentar obrigar o corpo a dar meia volta e seguir a ordem da cabeça  de volta ao zero. Mas o corpo é que manda, esteja lá a cabeça virada para onde estiver. Por isso, o melhor que temos a fazer com o pedaço de tijolo é desenhar um jogo da macaca e saltar ao pé coxinho para nos distrairmos no entretanto. 
          Mas atenção que o entretanto é um momento importante. Como o próprio nome indica é um momento entre muita coisa; antes houve tanta coisa, mas depois também vai haver. O entretanto é o momento entre tudo isso, logo é importante. 
          A cabeça nestas coisas reais não manda nada, o corpo segue em frente e a cabeça não tem outro remédio que não seja segui-lo. Podemos ficar o resto da vida a olhar para trás, mas se assim fizermos, o mais provável é esbarrarmos num poste de electricidade que nos relembra que é sempre melhor olharmos para o sítio onde vamos, e que se aproxima, em vez de ficar a olhar para o sítio de onde viemos, e que se afasta cada vez mais. 
          As pessoas com sorte esbarram com o poste suficientemente cedo, as outras vivem em cidades sem luz.

sábado, 28 de abril de 2012

Quando nascer quero ser mexicana...

... ou então escrever assim:

          "Evidentemente, há muitas mortes ao longo de uma vida. A maioria das pessoas não se dá conta. Julga que morre uma vez e já está. Mas basta prestar um pouco de atenção para se dar conta de que uma pessoa morre em cada momento. Não é um modo poético de falar. Não estou a dizer que a alma isto e a alma aquilo, mas sim que um dia uma pessoa atravessa uma rua e é atropelada por um carro; outro dia fica adormecida na banheira e já está; e outro cai pelas escada do seu prédio e parte a cabeça. A maioria das mortes não importa: o filme continua a decorrer. É só aí que tudo dá uma volta, embora seja imperceptível e os resultados nem sempre sejam imediatos.
          Eu comecei a morrer em Manhattan, no verão de 1928. Evidentemente, só eu me dava conta das minhas mortes - as pessoas estão demasiado ocupadas com a sua própria vida para repararem nas pequenas mortes dos outros. Eu dava-me conta porque depois de cada morte ficava com febre e perdia peso.
          Pesava-me todos os dias, para ver se no dia anterior tinha morrido. E embora não me acontecesse assim tão frequentemente, fui perdendo peso a uma velocidade alarmante (nunca soube quanto era em quilos). Não é que ficasse mais magro. Só perdia peso, como se me estivesse a esvaziar, mas o meu molde exterior permanecesse intacto. Agora, por exemplo sou um gordo mamalhudo e peso apenas três libras. Não sei se isso significa que me restam três mortes, como se fosse um gato em conta regressiva. Acho que não. Acho que a próxima é a boa." - in Rostos na multidão, de Valeria Luiselli

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Rabiscar conta?



- Escreves há muito tempo?
- Não. Quer dizer... rabiscar conta?
- Conta.
- Então não sei.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ámen

          A ideia era boa, quase óptima, viajar para o meio do nada e enchê-lo com aquilo que tenho de fazer; que quero fazer; que sou feliz a fazer. Encher apenas um bocadinho do nada enorme lá fora, e escrever. Precisa de respirar, a escrita; e eu também.
          Sentei-me num cantinho do nada - bem no cantinho para não o sufocar - e o nada que julgava meu, encheu-se com a vida do Sr. António - chamemos-lhe assim. O Sr. António tem uma serra eléctrica e lenha para cortar, pouco lhe importa que eu tenha lenha para limar. Costumo zangar-me quando o mundo me troca as voltas, mas hoje não sei como o fazer.
          Morreu Miguel Portas e o nada está irremediavelmente cheio. Não sobra sequer um cantinho onde me possa sentar, e mesmo que sobrasse, seria irrelevante se a escrita respira, quando ele já não.
          Não sobra sequer um cantinho onde eu possa respirar.
          Esperemos que respire por todos nós, o Sr. António.
          Ámen.
          Em nome da mãe, do irmão e da irmã.
          Amem.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Chichi cama

          O mundo apaga as luzes à noite para nos obrigar a descansar. Nós, teimosos, queremos tudo às claras, sempre. Mas as coisas não devem ser vistas às claras a toda a hora, porque se assim fosse para ser, a Terra não seria redonda. As coisas precisam de descansar, e com elas nós deveríamos aproveitar para descansar também.
          Raramente descanso, mas ontem, sem luz, descansei. Ainda assim, por falta de hábito, acendi a lanterna e li. O mundo não haveria de se zangar; que mal faz afinal um pequeno círculo de luz no meio do mundo preto, enorme? Tão preto. Tão enorme. Ao fundo uma vela sábia tremia na parede, provavelmente com medo de acordar o que o mundo ditara adormecido. Eu, teimosa, insisti em não obedecer.
          Sempre gostei de fazer as coisas certas, e por isso, apesar do frio na barriga de cada vez que
          - Vá, meninas, chichi cama.
          ia. Ia e apesar dos olhos fechados com força para não ver o escuro (para não ver o escuro, sua tonta?), tudo preto.
          Ontem o mundo - e os senhores da EDP - quiseram roubar a autoridade à mãe, mas eu, crescida, e já sem medo da noite, desobedeci; não lavei os dentes, nem fui para a cama, acendi a lanterna e li.
          Li com a coragem de quem pode fazer o que quer (posso?) e, por magia, o que eu queria saber apareceu feito (apareceu?). No silêncio escuro a lanterna pousada no ombro respirava nas folhas do livro aberto. Primeiro aflita, mas depois... ah mas depois devagar... muito devagar como é a respiração tranquila.
          Estou viva, mãe. Podes apagar a luz. Já fiz chichi e vou já para a cama.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ser inútil é,

"... Não há cidade mais triste do que o Rio à chuva. Talvez porque a tristeza das cidades alegres nos apanhe sempre desprevenidos. Como a tristeza das pessoas felizes..." José Eduardo Agualusa

Que penosa a tristeza das pessoas felizes.
Que ridícula a tristeza das pessoas felizes.
E que inútil a tristeza das pessoas felizes.
Que ridículas as inúteis pessoas felizes.

Mas que triste a tristeza das pessoas felizes,
se não podem chorar com vontade.
Que tristeza, afinal,
ser-se inútil de verdade.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Enforcou-se o amor


1

               A maior tragédia não aconteceu no dia em que ela morreu. A verdadeira tragédia aconteceu quando ela começou a deixar de existir. Começou no momento em que até a memória me traiu, e deixei de conseguir recordá-la com a nitidez que mantinha, até então, a minha desgraça suspensa. Aprendi a esperar tudo dos outros. Não estava preparado para não poder esperar nada de mim. E à minha memória, por ser minha, não lhe sei perdoar. Hoje, decorridos precisamente quatro anos, dois meses, cinco dias, nove horas e vinte e três minutos do momento da sua morte,
               (Precisamente? Existe precisão sem segundos? Claro que não. Como te pudeste esquecer dos segundos? Não sabes afinal precisamente nada. Sabes somente que apesar de nunca teres gostado da arrogância imprecisa daquele relógio de parede, com dois ponteiros apenas, nunca trataste de o substituir por um relógio de verdade; um relógio com ponteiros destemidos que não receiam a velocidade elegante do ponteiro dos segundos. São três os ponteiros necessários à precisão. És ainda mais cobarde do que as horas e os minutos. Sabes isso, apenas)
               consigo recordar essa manhã distante com a lucidez da véspera, que só a mais grave das dores pode explicar. A manhã em que depois de morta, ela começou a deixar de existir.
               Acordámos cedo como sempre fazíamos para aproveitar o sol baixinho de inverno - é sempre inverno agora que ela quase não está cá - que nos esperava na mesa da cozinha. Ela sentou-se à espera. A roupa ainda quente do entusiasmo da noite, o queixo apoiado na mão que segurava o olhar pousado lá fora, o cabelo apanhado ao acaso, e eu perdido no acaso do seu pescoço despido. Tomámos o pequeno almoço em silêncio, sorrindo ocasionalmente quase sem precisar de sorrir - tem destas coisas o amor, faz-se tudo sem ter de se fazer quase nada - e mais uma vez as suas torradas intactas. Perturbava-me que já não lhe agradassem as minhas torradas desde que talvez tivesse morrido. Recolhi os pratos, só o meu vazio. Fingi não me incomodar para não a afligir. Esforcei-me tanto para não a perturbar; juro que me esforcei; tenho quase a certeza que me esforcei. Talvez não me tenha esforçado; não me esforcei de facto. Sim, foi isso que aconteceu, só pode ter sido isso que aconteceu; esforcei-me pouco, quase nada e, ainda antes de pousar os pratos tão diferentes na bancada, olhei-a, e ela quase não estava lá. Um vulto apenas. A sua imagem ausente. O perfil desenhado em contraluz pelo sol de inverno que, mesmo baixinho, delineava uma silhueta vazia. Era ela, não tive dúvidas; conhecia-lhe os contornos com a sabedoria com que um cego chega a ler. Mas e a boca? E o olhar? E o acaso sem pescoço onde me pudesse perder? Estremeci. Olhei o relógio pendurado por cima da porta; marcava agora nove horas e quinze minutos exactos. Tão exactos quanto a linha do equador. Talvez até mais exactos que a linha do equador. Uma linha negra e soturna atravessava o relógio ridículo - como todos os relógios de cozinha. Talvez um pouco mais ridículo, este - dividindo-o em duas meias-luas, brancas, perfeitas, deitadas peito com peito uma em cima da outra. Por momentos temi que o traço negro das doze horas e trinta minutos aparecesse para atravessar o equador, e juntos atestarem com uma cruz negra sem pudor, o fim de Clara. Aguardei uns momentos - três minutos, acho - estático com dois pratos trémulos nas mãos, alternado o olhar aflito entre o relógio de parede e a imagem cada vez mais esbatida da minha Clara. E quando a sua silhueta quis fugir com a luz que entrava generosa pela janela, não pude esperar mais; sobressaltei-me na sua direcção; esqueci o relógio, os ponteiros, a lua, o equador negro. Esqueci os pratos, também, que caíram desgovernados no chão com a fúria do meu desespero. Abracei-a ao de leve para que não pudesse partir - não sem mim, pelo menos - e abri um sorriso tranquilo quando vi as torradas finalmente remexidas. O leque perfeito das três torradas que todas as manhãs lhe preparava, com pouca manteiga, distribuída com perícia como ela gostava - nem um milímetro esquecido a seco para que não se aborrecesse - desfeito no chão. É claro que ainda adorava as minhas torradas. Como fui tonto ao imaginar que podia já não gostar. Faltava-lhe o apetite nos últimos tempos, só isso.


2
             
               Não devia ter partido o relógio, bem sei, mas não era motivo para tanto. Disseram-me que não foi pelo relógio; parece que andava cansado, esgotado. Parece que fui de ambulância e que precisava de alguns comprimidos. Nada de especial, só para dormir melhor.
               - Estes todos só para dormir melhor?
               (Parece que sim)
               - E quando acordar posso ir para casa? Estou preocupado com a Clara.
               (Parece que não)
               - Pode ser.
               Mesmo depois de dormir, continuei sem compreender. Se a Clara morreu, como pude eu - logo eu - não saber? Como é que pode alguém - logo ela - morrer e voltar para casa em seguida?
               - É doloroso encarar a morte da pessoa que se ama. É um processo demorado. Um passo de cada vez - dizia o tipo sério vestido de branco.
               Geniais, todos eles. Todos de branco.
               Não é é disso que falo. Não era nada disso que tentava dizer. Deve ser duro, sim. Imagino que sim. Mas não há processo aqui, e é essa a questão. Já lhe pedi que desapareça de uma vez por todas. Que não me visite mais. Afinal foi ela que decidiu partir. Nunca a poderia ter impedido. Não se pára quem já foi. Mas é teimosa. Visitou-me ontem e anteontem. E antes de anteontem. Todos os dias. Conheço-a bem, não descansa enquanto não me tiver de volta a casa para pôr ordem no relógio. Não está segura sem mim, entende? Partiu, mas arrependeu-se; arrependeu-se logo de seguida; nem um minuto depois. E voltou. Bem vistas as coisas nem chegou a partiu; faltou-lhe o apetite, só isso.
               (Ninguém morre por falta de apetite. Não havias de ser tu a primeira. Logo tu. Logo eu)     
               Depois de dizerem que talvez tivesse morrido, desinteressou-se pela vida lá fora. Preferia ficar em casa sossegada. Pouco falava. Não me recordo, aliás, de ter voltado a falar. Não, nunca mais falou. Eu saía, voltava e nunca mais
               - És tu meu amor? - mal as chaves tocavam a fechadura.
               Nunca mais. Sempre sentada naquela cadeira de cozinha, com o olhar perdido num sitio qualquer; um sítio sem importância de maior para além da excessiva proximidade do maldito relógio; ansioso por lhe abençoar a morte.
               - Não chegou a tirar o relógio da parede? - Insistiu o tipo da bata branca.
               - O relógio? Claro que tirei; quase me levou a Clara, o sacana.
               (Quase me levou a Clara, o sacana. Desfaço-o em pedaços assim que voltar a casa)
               Eu entrava e beijava-a sempre; nunca me esqueci de a beijar. Ainda assim, na melhor das hipóteses: um sorriso, apenas. Compreendo-a. O tipo de bata branca dizia com razão: é duro enfrentar a morte. O que não lhe deve ter doído encarar a sua. Por isso a ajudei como soube; por isso a beijava sempre, sempre; nunca me esqueci de a beijar. E é por isso que vou desfazer o relógio em pedaços mal chegue a casa.
               Talvez seja melhor que a Clara fique por cá. Talvez haja algum tipo sério de bata branca que tome conta dela. Pode até nem ser sério, desde que tome conta dela. Não a posso deixar em casa sozinha, sem beijos, nem relógio, nem torradas; logo agora que lhe voltou o apetite. Nem sei como tem tido ânimo para me vir cá ver. Ela que depois de talvez ter morrido nunca mais saiu de casa.
               - Quanto tempo acha que falta para me poder ir embora? - Perguntei ao tipo da bata branca.
               - Depende da sua evolução, Guilherme. Não lhe posso dar uma data precisa.
               (Mando vir o relógio, então. Aquele relógio de cozinha impreciso, serve bem neste caso.)
               Pedi-lhe que trouxesse o relógio. Nunca o chegou a trazer. Talvez por isso me custe dormir ultimamente. Nem tanto por culpa do fulano da cama ao lado que geme terror a noite inteira. Na verdade o que me dói é acordar; morre-me todas as manhã outra vez.
               Quantas vezes pode morrer uma pessoa até morrer de vez?
               Acho que tantas quantas as vezes que a amamos.
               E quantas vezes pode alguém suportar essa dor, sem morrer também?
               Espero que tantas quantas as vezes que a amamos.
               Curioso, a minha desgraça é também a minha salvação: o amor. Sempre o cabrão do amor. Se a amares muito, morre-te muitas vezes. E se a amares muito aguentas-te as vezes que forem precisas sem morrer também. O segredo para a desgraça é amar muito. O segredo para a salvação, também. Curioso, no mínimo. Isto faz sentido para alguém? Talvez faça; talvez a salvação seja em si uma desgraça: aguentar; muito. Aguentar muito. Faz sentido, sim. Mas porque me há-de morrer todos os dias outra vez? Estava gelada que eu vi; dei dois passos atrás e pensei: a Clara não está aqui. Fui para casa e esperei. Voltou. Calada é certo, mas voltou.


3

               Meteram-me aqui, enfiaram-me comprimidos pela boca abaixo, e agora dizem que estou melhor porque já sei que a Clara morreu.
               Já sei. Já ouvi. Está morta. Sem vida. Por esta altura já nem carne; só ossos. Está morta com uma cruz em cima; preta. E não é o relógio. O relógio continua lá e também já sei que não foi ele que a levou. Foi a vida que a levou. Foi ela que quis pendurar a dor no chuveiro. Com o meu cinto. Com o meu cinto, Clara? Foda-se, Clara, com o meu cinto? Não sabias morrer sozinha? Não sabias não morrer?
               Onde querem que escreva que morreu? Que sei que morreu? Quantas vezes tenho de escrever, para me deixarem ir? Uma folha inteira cheia de
               Morreu-me a Clara.
               Morreu-me a Clara.
               Em letra miudinha para lá caberem muitas Claras:
                Morreu-me a Clara.
                   Morreu-me a Clara...
               Quantas vezes tenho de escrever para que me morra de vez?
               Agora que sei que a Clara morreu; agora que fiz tudo o que me mandaram fazer; agora que tomei banho com vinte tipos nus, vestidos apenas com a sua mais entranhada loucura;
               (Podem dar-lhes os banhos que quiserem. Por mais que os esfreguem, não sai)
               agora que tomei banho nu, no meio de vinte tipos entranhados de loucura, numa casa de banho enorme - para cabermos todos - forrada com azulejos partidos;
               (Todos partidos. Nem um quadradinho de ordem no meio de tanta loucura. Provavelmente nem um quadradinho de ordem por culpa de tanta loucura.)
               agora que já estou bom;
               - Despe-te. És o próximo.
               agora que já estou bom posso tomar banho sozinho?
               - Despe-te e mete-te na fila.
               Esfreguem-me à vontade. O máximo que consigo dizer é
               - Já sei que a Clara morreu.
               Não sonhem com um
               - Sim, a Clara morreu.
             

4

               Quem é que mete um maluco num sítio destes e espera que melhore? Quem é que mete malucos a tomar conta de malucos?
               - Já te disse que não podes andar com esse pijama. Tens de vestir o pijama do hospital.
               Eu não tenho o pijama do hospital. Ninguém me deu o pijama do hospital.
               - Veste o pijama do hospital!
               E eu a questionar-me
               - Estarei louco?
               E eu certo de que
               - Foda-se, estou louco. Onde meteste o pijama do hospital, seu louco?
               Eu nunca tive o pijama do hospital. Não podias ter parado para perguntar,
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Não podias ter parado para me ouvir dizer
               - Eu não tenho o pijama do hospital.
               Não podias ter parado para acreditar que um louco pode saber que não tem o pijama do hospital? Não podias ter parado para acreditar que um louco pode não ter o cabrão do pijama do hospital? E enquanto tentavas acreditar no que o louco te dizia, não podias ter pousado a tua mão no meu ombro e dizer baixinho
               - A Clara morreu, Guilherme. É mesmo verdade. Morreu.
               E se tu fingisses acreditar no pijama do louco, eu fingia acreditar que a tua Clara era a minha. E se isso tivesse acontecido, eu não precisava deste pijama verde-água com um carimbo desbotado - HJM -Hospital de Júlio de Matos - para acreditar que a Clara morreu. Mas precisei; e por isso roubei o pijama do fulano da cama ao lado. Desamarrei-lhes primeiro as mãos para tirar a parte de cima; depois desamarrei-lhe os pés e tirei-lhe as calças. Nada disto lhe faz falta. Aliás, nada lhe faz falta. Não vai sequer ouvir a outra dizer
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Provavelmente ninguém lhe vai sequer perguntar
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Talvez pela manhã, quando o desamarrarem para o banho, talvez aí lhe perguntem
               - O que é que fizeste ao teu pijama do hospital?
               Talvez lhe perguntem, sim, mas com a mesma convicção com que se pergunta a um perdigueiro
               - Vamos à rua?
               O fulano da cama ao lado vai entender e responder o mesmo que o perdigueiro: nada. Não vai sequer contorcer-se de felicidade como o perdigueiro. Que sorte a do perdigueiro. Por isso roubei-lhe o pijama. Eu preciso do pijama do hospital, porque mesmo agora que já sei que a Clara morreu, mesmo agora que já digo que sei muito bem que a Clara morreu, mesmo assim continuariam a não acreditar que não tivesse, que nunca tivesse tido um pijama do hospital. E assim agora tenho. E agora que tenho talvez acreditem que já sei que a Clara morreu.
               Acordamos sempre cedo. Deixamos a ala de dormir às sete da manhã e não podemos voltar a entrar antes da noite cair. Aqui a noite cai quando eles mandam, mesmo quando ainda há sol. Se algum dos doentes fica demasiado agitado, a noite cai para todos seja a que horas for. Hoje caiu depois do almoço. Não porque alguém se tivesse exaltado, mas porque houve reunião de médicos e enfermeiros. Não reclamei; arregacei a manga; estendi o braço; fechei os olhos e esperei que a noite chegasse.
               Há dias que venho fazendo tudo o que me pedem. Faço tudo sem reclamar, nem tão pouco dar opinião. Questionar é coisa de doidos. Despi-me quando me mandaram e não pedi para tomar duche sozinho - só um louco poderia achar possível deixarem-no tomar duche sozinho - deixei que me esfregassem sem protestar, tomei o pequeno-almoço sossegado, não falei com ninguém, nem sozinho - juro que não falei sozinho -, nem respondi aos que falavam sozinhos. Disse que sim várias vezes, tomei todos os comprimidos que me estenderam, abri a boca de seguida para comprovar a toma, antes mesmo de
               - Abre a boca! Deixa-me ver!
               Respondi tantas vezes sim, que estou certo que me vão deixar sair em breve. Aqui não se pode dizer não. O fulano da cama ao lado disse demasiadas vezes não, e agora está assim, amarrado e sem conseguir dizer nada. Disseram-me que em tempos só o amarravam - pernas atadas às pernas da poltrona e braços com os braços da poltrona - mas mesmo amarrado conseguiu esburacar a poltrona com as unhas. Deixou-lhe a espuma toda à vista, e por isso tiveram que o pôr assim, sem falar, para que também não pudesse esgravatar. E por isso eu agora digo sempre que sim.


5
             
               Hoje vem o médico. É hoje que vou para casa. Tenho feito tudo certo ultimamente. Tudo, sim. Até a Clara morta.
               - Sim, morreu doutor.
               Abriu-se-lhe um sorriso largo na cara, satisfeito pela minha recuperação. Talvez mais pela sua própria vitória. O louco já não estava louco. O louco compreendera finalmente que a Clara não existia mais. Que a última clara com que viveu já não era a Clara. Inchado de vaidade recostou-se na cadeira, passou as mãos pela barriga como se tivesse acabado de almoçar um porco - cheio de orgulho, cheio dele - e com o mesmo sorriso largo
               - Sim senhor, Guilherme. Gosto de ver. Você é um homem de força. Recuperou o tento com uma rapidez que eu nunca imaginei. Pelo menos depois da forma como o vi chegar. Você já não pertence aqui, homem. Vou mandá-lo para casa.
               Vai mandar-me para casa. Clara, ele vai mandar-me para casa. Não te preocupes, direi que sim até ao fim. Sempre sim até ao fim. Para que não mude de ideias. Fica tranquila, Clara, agora já sei o que fazem os não loucos, e vou fazer igual. Não tarda estou em casa. Quando deres conta estou a meter as chaves à porta, ansioso por ouvir
               - És tu meu amor?
               Sou eu, sim; abre a porta. Se puderes e não estiveres muito fraquinha, prepara o duche. O cinto está na primeira gaveta da cómoda. Fica tranquila, Clara. Não tarda nada estou em casa.

FIM