sábado, 21 de agosto de 2010

Constelação

- Uiii, tens uma constelação tramada! O Eremita e a Lua... Uiiii....
Ah... Então é isso, pensei. Menos mal. Saber a causa do que me acontece ajuda-me a lidar melhor com a situação.
Ah... Então é isso. E tudo na mesma, mas... Se é isso, menos mal.
É incrível a paz que encontro na explicação das coisas. Descansa-me saber que há uma explicação, mesmo quando não a entendo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quero

Hoje fiz o que faço há uns tempos, por não me apetecer fazer outra coisa: corro à frente dos dias, com o mesmo desespero com que em tempos corri à frente do joão que era o chato dos carolos lá do colégio. Levanto-me antes dele e ponho-me numa corrida desenfreada pelo mundo, na esperança que o dia não me apanhe. Canso-me enquanto há sol, e à noite adormeço com a serenidade de quem se safou ao teste de Matemática.
- Menos um!
Porém hoje, no meio desta correria disparatada de tempo perdido,
"Quer conhecê-lo?"
Largo os sacos no chão, sem jeito. Ouvem-se garrafas mas não importa. O que são umas garrafas barulhentas em comparação com um,
"Quer conhecê-lo?"
Levo as mãos à cara para não molhar a camisa e fico ali escondida uns segundos, a respirar em esforço. Afasto o indicador, espreito o mundo embaciado, tiro as mãos devagar e confirmo,
"Quer conhecê-lo?"
É mesmo verdade. Apanhou-me o dia.
E agora estou para aqui, a andar para trás e para a frente, com o extâse a arrumar as compras em sítios disparatados. Guardo a pasta de dentes no armário da mercearia. Pouso as garrafas no balcão, volto a pegar-lhes e pouso-as meio metro ao lado. Hei-de pousá-las em meia dúzia de sítios errados antes de as colocar no seu lugar, que o extâse pelos vistos desconhece. Vasculho os sacos à procura da pasta de dentes (queres ver que me esqueci da pasta de dentes). Encontro um pacote de esparguete. Abro o armário da mercearia. Pouso o esparguete e a pasta de dentes a rir-se para mim, encostada a um pacote de arroz carolino.
"Quer conhecê-lo?"
Dou graças a Deus (não sei muito bem porque passo a vida a dar graças a uma coisa em que não acredito) por ter um tornozelo defeituoso que não me deixou atingir uma velocidade inalcançável. Por momentos imagino a fatalidade de não me ter deixado apanhar e logo de seguida penso na fatalidade de ter sido apanhada. O que faço agora? Se o quero conhecer? Claro que sim. Mas e depois? Mas e durante? Durante é fácil. Quer dizer, é previsível: vou tropeçar, gaguejar, transpirar, dizer disparates impulsionados pelo desejo idiota de dizer coisas inteligentes, vou rir imenso (rio sempre). Rir resulta sempre, ou quase sempre. Rir é uma actividade imparcial, pode ser tudo, ou quase tudo. Quer dizer, não pode ser dor. Se calhar pode. Pode sim.
Nunca fui fã de nada até agora. Em tempos cheguei a forrar um dicionário de português com fotografias do Tom Cruise. Forrei-o com a mesma convicção com que bebia o leite todas as manhãs. Porque sim. Porque toda a gente forrava e porque toda a gente bebia.
E agora estou nisto, comovida porque,
"Quer conhecê-lo?"
e a imaginar que aquela pergunta pode querer dizer,
"Ele quer conhecê-la"
e a imaginar que se comoveu com os meus disparates. Está tudo trocado, é o que é.
Claro que o quero conhecer e claro que vou fazer todas aquelas figuras ridículas que não me apeteceu fazer nos tempos do Tom Cruise e da Madonna. E se me der na cabeça, forro um dicionário com fotografias dele. Porque agora que o dia me apanhou, vou passar a adormecer à noite com a serenidade de
- Mais um!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

tic-tac...

Preciso de escrever mas não sei o quê. Bato nas teclas à espera. Deixo-me me ir, embalada pelo som cadenciado da escrita, intercalado com o ritmo acelerado de quem apaga tudo, letra a letra. Não deixo que um dedo pousado no "delete" faça o trabalho tranquilamente por mim. Faço questão de apagar cada letra i-n-d-i-v-i-d-u-a-l-m-e-n-t-e.
tac-tac-tac-tac-tac-tac....
No seu fim, dou a cada letra a mesma importância que lhe dei quando a escrevi. Um momento:
tac.
Porque nem o tempo é corrido.
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
Escrevo porque não posso sair com a máquina fotográfica (na realidade posso, mas não me apetece) à procura sabe Deus do quê, por isso estou aqui à procura disso mesmo.
Desconfio que estas letras vão todas direitinhas para o lixo. Amachuco a folha
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
E o cesto do lixo sem bolas de papel dentro.
Quero dizer coisas bonitas e nada. Lembro-me dele e deixo a mão ir. Para onde?
Desconfio que para lado nenhum, hoje.
O relógio
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
e zero bolas de papel no cesto do lixo, apesar do
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Queria que a minha mão fosse como a dele. Uma mão que dá coisas lindas com a naturalidade com que as pereiras dão pêras (acho que foi a pêras e pereiras que ele se comparou um dia). Um dia vi muitas pereiras...
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Que disparates escreves aqui rapariga?
Pêras? Mãos? Que interessa isto?
Desconfio que vou dormir sem coisas lindas, hoje.
O tempo está a passar
tic-tac-tic-tac-tic-tac...
e as letras também
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Desconfio que a vida acontece aos bocadinhos entre tics e tacs. O segredo é não deixarmos que a cadência doce nos embale.
Teclo agora.
tic
Amanhã vou à praia.
tac
Venho da praia.
tic
Tomo um duche para tirar o sal do corpo (que bom é tirar o sal do corpo. Tiro-o, só para poder lá voltar amanhã).
tac
Amanhã volto à praia.
tic
E à noite outra vez
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
À noite não se vai à praia (não?), por isso
tac-tac-tac-tac-tac-tac...
Ando assim, entre águas doces e salgadas, a tirar coisas para as poder voltar a pôr, a juntar tics e tacs com letras e sal.
Porque ninguém vai à praia a estas horas da noite e porque me falta o sal a pesar-me nos olhos, improviso. Afinal não se chora só quando se está triste, pode-se chorar também quando se precisa.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Isto Não É Um Letreiro

Vou passar a andar com um bloco de post-it no bolso, e a culpa é dele.
(sim, eu sei, que obsessão, ele outra vez. Há-de passar. Ou não.)
Li o ajuste de contas* e no meio daquilo que me parecia apenas mais uma deliciosa crónica, levo um murro na barriga. É assim que me sinto de cada vez que me fazes aquilo.
"Isto Não É O Meu Pai" dizias às tantas.
Isto Não É O Teu Pai, António?
"Isto Não É Cinzeiro" já era bom, agora, "Isto Não É O Meu Pai"? Foda-se António. Só me ocorrem asneiras quando sou golpeada assim. Fico sem chão, desarmada, com uma vontade enorme de te dizer apenas
- Foda-se António.
Atiro um bloco de post-it para o fundo da mala e penso: da próxima vez que me servirem uma torrada com margarina, corro para a cozinha à procura do pacote de Becel, e espeto-lhe um letreiro em cima:
Isto Não É Manteiga.
E da próxima vez que me magoarem, outro letreiro:
Isto Não É Para Estragar.
E da próxima vez que a minha avó me desse um sucedânio, outro letreiro:
Isto Não É Chocolate.
(Avó, aquilo não era chocolate caramba)
"Da próxima vez que a minha avó me desse". Péssima gramática (é gramática isto? se calhar também aqui faz falta um letreiro). Com ou sem letreiro, assim se vive para além da morte. Ainda no outro dia, num acto falhado, perguntei à minha irmã
-Tens falado com a avó?
(Que tonta, rapariga)
O que eu gostava que um dia, daqui a muitos anos, quando não houver mais de mim cá em baixo, alguém perguntasse, ainda que num acto falhado
-Tens falado com a AC?
Ou que alguém me pusesse um letreiro
"Isto não é a AC"
Porque só se põe um letreiro a identificar o que não é, quando se sabe o que foi. Só se reconhece que não está lá, aquilo que nos faz falta.
A minha avó deve fazer-me falta, e o sucedânio de chocolate também.

*crónica publicada por António Lobo Antunes (Visão, 9 de Setembro de 2004)