sábado, 31 de dezembro de 2011

Géneros literários, ou lá o que é...

Tragédia:
- Tens medo da morte?
- Da minha não.

Comédia:
- Tens medo da morte?
- Da tua não.

Épico:
- Tens medo da morte?
- Não sei. Bora experimentar?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Carta ao Pai Natal (fora de horas, claro)

          Querido Pai Natal,

          Ando há dias com esta carta às voltas na cabeça, mas por culpa da urgência dos doces e dos salgados, só hoje a escrevo. Não é urgente, por isso pouco importa a data. As rabanadas eram para sábado, já o que te quero pedir é para quando puderes, sem pressa.
          Desconfio que não faz muito sentido escrever-te a ti, mas não encontrei destinatário adequado ao pedido, por isso abuso do espírito da quadra  para evitar ficar para aqui a falar sozinha.
          Podes-me ouvir?
          Se não te apetecer nem oiças, basta-me que acenes com a cabeça de vez em quando. Pode ser?
Sabes o que é Pai Natal, tenho uma dúvida há anos para a qual ainda não consegui encontrar resposta, e como estou prestes a completar trinta e cinco anos, começo a ter alguma vergonha de ainda não perceber nada disto.
          Diz-se por aí - numa conjugação reflexa do presente do indicativo, demasiado genérica para o meu gosto - que se deve amar com cuidado. Parece que o coração é matéria delicada e mais vale não abusar. Eu tenho abusado, é certo, mas mais por mera inabilidade do que por convicção.
          Depois dos trinta, altura em que nos damos conta de que as birras não valem a pena; de que ele não vai voltar a respirar se estiver já morto; de que um dia nem a tua mãe vai lá estar para te dar dois açoites no rabo e ordenar-te que pares, ou para convencer o pai a comprar o cubo mágico à menina; de que a mãe nem sequer vai lá estar para que lhe grites à vontade o que gostarias de gritar ao patife do defunto; de que um dia vamos olhar em frente e só veremos uma linha; a da frente, claro; enfim, depois de me dar conta de que a vida é mesmo a vida e não há birra cheia de baba que mude isso, achei que devia ser uma pessoa melhor. Depois de alguma investigação científica sobre essa vasta matéria que é "uma pessoa melhor", entendi por bem que devia observar antes de agir, decidir antes de agir e mesmo depois de tudo isso, devia respirar, depois respirar ainda um pouco mais, e só então agir.
          Tentei isso tudo o melhor que pude, mas infelizmente errei ao acreditar que podia ser uma pessoa que não sou. Já tinha errado à primeira quando não quis ver que a vida era a vida, e agora, estúpida, voltei a errar ao achar que podia ser outra que não esta. E esta, apesar de respirar já bastante melhor, não sabe viver feliz de outra maneira que não seja a esticar as mãozinhas em concha e dizer,
          - Toma, é teu, mas vê bem o que fazes com ele.
          Se for preciso ainda explica,
          - Vês, não há mistério nenhum: tem dois ventrículos que funcionam na perfeição, uma aurícula esquerda saudável quanto baste, uma aurícula direita melindrosa, e uma artéria aorta um bocadinho mimada.      
          Mas se o tratares com jeitinho, vive-te feliz até aos cem anos.
          E se mesmo assim não se conseguir fazer entender, vai buscar um bisturi afiado e faz um cortezinho suave, enquanto esclarece,
          - Espreita aqui com cuidado. Mas não toques! Estás a ver ali ao fundo aquela veiazinha minúscula? Ali não deves mexer, senão aborrece-se. Prometes?
          Depois pega numa agulha fininha, tão fininha que quase não se vê para não deixar marcas, e cose a incisão com a delicadeza das modistas de outros tempos. Uma compressa esterilizada só por precaução e,
          - Toma, é teu novamente, mas vê bem o que fazes com ele.
          É certo que esta que sou podia meter as mãos nos bolsos em vez de andar para aí com elas estendidas, e já agora podia guardar o coração no lugar dele. Mas para isso teria de prescindir de toda a parte boa de viver com o coração bem vivo. Teria de prescindir do deslumbramento das coisas bonitas, de se sentir inchada de felicidade por culpa do sol baixinho das manhãs de inverno, da felicidade imensa que chega com as coisas parvas, de te amar com a demência do último dia do Universo, da última hora do Universo, do último minuto do Universo, do último segundo do Universo...  Teria até de prescindir do rímel desbotado por causa do reclame tolo da Coca-Cola... Mas como isso está fora de questão, observou, decidiu, respirou, respirou ainda uma vez mais, e comprou um rímel à prova de água.

          Confuso, Pai Natal? Imagino que sim. Mas não te preocupes, se não conseguires trazer-me a segurança das coisas certas, traz-me ao menos o carro de praia das Barriguitas, para eu me distrair.

          Um beijo enorme,
          S.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Morrer em bom

          Apenas o líder de um regime autoritário consegue morrer de uma doença ilustre, que dá pelo nome pomposo de "cansaço físico e psicológico da sua dedicação à vida e ao povo". A mim cheira-me a uma subespécie primitiva da tuberculose ou do herpes labial, mas quiseram chamar-lhe assim, e quem sou eu para contestar.
          O comum dos mortais morre de cancro, de doença cardíaca, ou de cirrose. Já o incomum dos mortais, como felizmente é o caso, morre sem fraldas mijadas, nem tubos enfiados pela goela abaixo; morre barbeado, perfumado, bem vestido e, claro, delicadamente durante o sono. Líder tirânico que se preze nem às portas da morte põe em causa a dignidade e perpetuação do seu regime.
          Parabéns senhor Kim Jong-il!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ad scribendum

          Sei, desde sempre, que o meu pai estudou no seminário. Aliás, sempre julguei saber que o meu pai estudou no seminário. Ontem, porém, descobri que o meu pai estudou no seminário, e chorei.
          Tive sempre um enorme orgulho em ter um pai que sabia latim, que lia convictamente os escritos majestosos cravados nas fachadas de edifícios públicos importantes.
          -Estão a ver ali meninas: Domvs ivstitiae. Sabem o que quer dizer? - Inquiria num tom de voz tranquilo e sábio, de cada vez que passávamos à porta de um tribunal.  As meninas, inchadas de admiração, desencostavam-se prontamente do banco do carro, e esticando o pescoço num esforço hercúleo para a sua pequenez, acendiam as luzes do palco, abrindo-lhe as portas à vitória,
          - O quê? O quê? Onde?
          - Ali, na parede do tribunal. Significa palácio da justiça, e é o sítio onde se aplicam as leis. Está escrito em latim, uma língua antiga do tempo dos romanos. - Concluía, sorridente de vaidade. E as meninas, boquiabertas, retomavam serenas o encosto. Estávamos seguras, ao volante encontrava-se um homem que sabia coisas importantes e que por sorte nos calhara em pai.
          Era frequente exibirmos no colégio tamanha glória. Deleitávamo-nos a ostentar a grandiosidade do nosso pai, gigante, maior que todos os outros. Ainda que não soubéssemos ao certo a relevância de tal facto, parecia-nos quase sobre-humano que o nosso pai (que sorte, logo o nosso) conseguisse ler e entender letras enormes, todas elas maiúsculas, esculpidas em pedra na gravidade das fachadas imponentes, ou proferidas ao mundo inteiro por um ser superior vestido de branco.
          - Urbi et Orbi. À cidade e ao mundo - Repetia baixinho a saudação do Papa. E depois explicava,
- No latim os artigos integram os substantivos sob a forma de terminação. Ou seja, o "à" e o "ao" são substituídos pela terminação "i" em latim. Por isso, esta expressão jamais poderia significar "da cidade para o mundo" como estás a dizer, Sofia. Esta sabedoria de pacote de farinha33 quase me valeu o ódio de um professor de faculdade que um dia ousei corrigir.
          Para enorme desgosto da minha avó, que o elegeu entre onze irmãos para frequentar o seminário, o meu pai nunca foi um homem fé. Mas apesar de descrente na religião, tinha um amor inabalável  à escrita e à correcta utilização das palavras, que considerava sagradas. Eu e a minha irmã tivemos o privilégio de crescer a acreditar que saber escrever correctamente era imprescindível para qualquer ser humano.
          - Mesmo que queiram ser varredoras de rua quando crescerem, devem conhecer a vossa língua. Sem isso não vão a lado nenhum. - Apregoava frequentemente.
          Mesmo que na altura não encontrássemos relação pertinente entre uma vassoura e a Língua Portuguesa, lá fomos crescendo imbuídas num enorme respeito pelas letras. Porém, à época não fazíamos ideia do que estava por trás de tudo isto. Ríamos desbragadamente dos relatos que o meu pai fazia da sua primeira noite no seminário, do choro aflito no meio escuridão, e principalmente do colchão de palha que o salvou do embaraço de uma cama molhada pela manhã. O que as meninas riam, ignorantes, por saber que um dia o pai também fez chichi na cama, de palha.
          Tenho a certeza de que o meu pai me perdoa tamanha arrogância inconsequente, própria da idade. Já eu não estou certa de me conseguir ilibar tão cedo. Pelo menos não antes de conseguir processar o que li ontem.
          É fácil retirarmos gravidade à má sorte de um miúdo de seis anos, que agora vemos radiante, a gargalhar de si próprio enquanto delicia as meninas com histórias passadas. Mas quando essa mesma história nos chega de alguém que não sabemos se agora ri, repensamos tudo. Essa história chama-se "Manhã submersa" e chegou-me pela mão de VF, por quem, por estar morto, me posso declarar pública e irremediavelmente apaixonada. Não sei se sabia rir antes de morrer e acho que nunca saberei. Espero que sim. Prometo, contudo, não voltar a rir da foto do meu pai enfiado num fato preto dois números acima, e com os pés afundados num par de sapatos gigantes, com que lograria regressar do seminário,anos mais tarde, com os pés apertados. Mas porque gosto demasiado de rir, provavelmente não vou conseguir manter a promessa. E assim sendo, acho mais prudente prometer apenas que vou rir bem alto, sim, mas sempre com o olhar cúmplice, para ti, das coisas que eu agora também sei.

          (Peço desculpa ao meu pai, pelos erros que este texto provavelmente tem. Podemos rir-nos disso também.)