quarta-feira, 15 de junho de 2011

Nada, só coisas

Não era bem um gira-discos, porque ninguém recebe um gira-discos aos seis anos. Quis o destino, que desta feita se fez representar pelo desejo dos meus pais, que a minha avó me oferecesse um gira-discos no dia do meu sexto aniversário. Como a mim ninguém me perguntou nada, fiquei pregada ao chão, a olhar boquiaberta aquela caixa metálica, à procura do buraco por onde haveriam de sair bonecas com uma fita plástica atada à volta da cabeça para segurar o cabelo, ou pequenos carros de metal pintado destinados a alargar o parque automóvel da minha estação de serviço de dois andares (com elevador e tudo), ou qualquer outra coisa colorida capaz de animar o aniversário de um ser de apenas seis anos. Podiam até ser serpentinas, ou rebuçados pegajosos...Qualquer coisa... Mas nada! Tudo cinzento e estático. Eu e o meu novo gira-discos, frente a frente, incrédulos e indiferentes ao rebuliço infantil dos meus pais, que festejavam ruidosamente o presente que receberam sem precisarem de fazer anos.
- Boa A.C., que surpresa tão grande! Dá um beijinho doce à avó.
E eu a pensar
- Eu? Porquê?
Dei.
Não era aquele o presente que esperava receber no meu aniversário, e tenho a certeza que aquele desgraçado reluzente também não fazia grande questão de ter como dona, uma pirralha de dentes a abanar, que o mais certo servia dar-lhe cabo da agulha. Um gira-discos que se preze não toca discos de histórias infantis, ou músicas de Natal do coro de Santo Amaro de Oeiras. Mas ele ao menos tinha escolha. Os meus pais preenchiam seguramente os requisitos necessários, para satisfazer as necessidades básicas de um gira-discos de ouvido educado. Já eu, teria de me contentar com as camisolas interiores e os collants grossíssimos que as minhas tias haveriam de trazer, e rezar para que me trouxessem ao menos, meia dúzia de rebuçados para a tosse.
E assim foi. As tias chegaram, vestiram-me e despiram-me trinta e nove camisolas diferentes, mais uns tantos pares de collants quentinhos, numa verdadeira operação relâmpago que me deixou as orelhas a arder com tanto puxão, e o cabelo feito num fanico, por conta da electricidade estática.
- Ajuda A.C.! Por amor de Deus, já és crescidinha! - Diziam enquanto se acotovelavam para vestir a menina.
 Apesar do meu estado de desolação profunda, e com os tótós mais ou menos fora de sítio, aproveitava os breves intervalos entre um puxão e o outro, para ir deitando um olho vigilante ao meu novo brinquedo improvável.
De cada vez que a minha cabeça nascia a custo, por entre as golas justas e ásperas das inúmeras camisolas a prova, virava o pescoço à pressa, e pensava
- Pelo menos tem botões. E muitos.
Mais uma orelha quase arrancada, e
- Talvez melhore, se o pintar de cor-de-rosa.
Outro tótó assassinado, e
- Não vai poder ser com lápis...
Felizmente, lembrei-me a tempo da tragédia que foi lá em casa, quando decidi personalizar (vandalizar, nas palavras dos meus pais) as paredes recém-pintadas do meu quarto, com um marcador vermelho de ponta bem grossa. O gira-discos era meu, é certo. Mas o quarto também, e nem isso atenuou a minha pena na altura. Na dúvida, não arrisquei.
Resignada à fatalidade irremediável do meu dia de aniversário, passei o resto da tarde a comer quadradinhos de chocolate, embrulhados em pratas coloridas, que posteriormente alisava com a unha do polegar.
- Que estás a fazer A.C.?
- Nada. Coisas...
Porque raio me haveriam de perguntar agora fosse o que fosse, se se tinham esquecido de me fazer uma pergunta tão simples quanto
- Já pensaste o que queres para os teus anos?
Como é que eu ia explicar lá na escola que tinha recebido como presente... um gira-discos?
Deram-me uma coisa que eu não entendia, e agora era também isso que eu estava a fazer: coisas que eles não entendiam.
- Levanta-te A.C., vamos pôr o bolo na mesa para cantar os parabéns.
Bom, pelo menos havia bolo.
Como seria de esperar, o gira-discos passou a ser da casa e não meu, tal como o aspirador ou a máquina de lavar. Se pudesse levava-o debaixo do braço para todo o lado, mas os meus direitos sobre aquele objecto enorme e pesado, resumia-se a ter preferência na hora de colocar cuidadosamente a agulha sobre o disco já a rodar.
A raiva foi-se com o passar das semanas, e a certa altura dei por mim encantada a observar o balanço elegante do disco, sob a garra afiada da agulha. Pouco me interessava a música que dali saia, fascinava-me sim todo o processo envolvido. Punha e tirava discos consecutivamente, ordenava o girar com um simples movimento do braço da agulha, delirava com o avô da Heidi a gritar pela neta com uma voz esganiçada por conta das rotações trocadas... E quando o chão da sala estava coberto de rodelas pretas de núcleo colorido, aparecia a mãe os gritos a exigir arrumação. Entretinha-me então, horas a fio, a limpar o pó aos vinis. Era preciso muito cuidado. O meu dedo indicador minúsculo cabia na perfeição no buraco central do disco, e sobrava-me apenas uma mão para desenhar círculos perfeitos, com uma espécie de ferro-de-engomar minúsculo com base de veludo preto, certificando-me que nem uma poeira restava na superfície lustrosa onde se escondia a música. Quando não restavam dúvidas de que estava imaculada, guardava-o gentilmente no pedaço de cartão que lhe servia de capa.
Há dias, numa visita à casa de férias, dei com o gira-discos velho, cheio de pó e encostado a um canto. Tinham-lhe posto um naperon de crochê em cima, para lhe esconder as feridas. E perguntei-me:
Por que raio não está o gira-discos na casa dele?
ou seja
Por que raio não está o gira-discos em minha casa?
Não gostei de receber um gira-discos aos seis anos, é certo. Mas quase trinta anos depois, fiquei com um friozinho na barriga ao reencontrar o gira-discos que a minha avó me deu.
Desta vez fui eu que recebi um presente sem fazer anos.
E se na altura, do alto dos meus insignificantes seis anos, cheguei a sentir alguma piedade pela desadequação ignorante da tua escolha, hoje sinto absoluta piedade pela minha própria ignorância.
Tinhas razão. É que um gira-discos dura para sempre, e tu sabias disso muito bem