Não sei se já escrevi sobre o meu pai.
Se escrevi, devo ter deixado alguma coisa importante por dizer,
porque hoje,
acordei com uma enorme vontade de falar sobre ele.
(Não com ele. Com ele é fácil. Olá, estás bom? Claro que está. Está sempre bom. Com ele está sempre tudo bem, até mesmo quando não está.)
Mas mesmo que já tenha escrito sobre o meu pai, e que não tenha deixado nada por dizer,
no caso dele,
do meu pai,
nunca é demais repetir.
O meu pai é um pai e pêras.
Não porque me
(nos. Esqueço sempre que somos duas, de tão grande que é o meu pai. Suficientemente grande para ser dois pais; um para cada uma. Duas filhas únicas, irmãs.)
habituou mal no que respeita a fruta. Se assim fosse, teria de ser um pai e pêras,
e maçãs,
e pêssegos,
e até mangas, mesmo quando não havia muito dinheiro.
O meu pai é um pai e frutas.
Um pai e todas as frutas que as meninas gostavam, já descascadas.
Arrisco até dizer que o meu pai é uma melancia, gigante,
O coração, doce e sem pevides, sempre para as meninas.
No caso da melancia, éramos três, também chegava para a mãe. Ainda que no caso dela, com algumas pevides à mistura, como sempre são as melancias conjugais.
Pevides à parte, porque filhas somos só duas e foi disso que me propus falar hoje,
(vocês que são crescidos que se entendam com as pevides)
passemos ao que interessa.
Bom, mas com tanta conversa sobre fruta, já sei o que me esqueci de dizer sobre o meu pai.
Não foi bem esquecimento, não se pode esquecer o que ainda não aconteceu.
Por isso te pergunto, pai:
Lembras-te quando no outro dia te ralhei
(os filhos fazem muito isso; crescem um bocadinho e acham que sabem tudo, até mais que os pais)
porque foste demasiado frouxo,
ou indolente,
ou benevolente,
ou educado
(é isso mesmo, demasiado educado)
com a senhora do Banco?
Lembras-te quando te disse que às vezes eras um bocadinho irresoluto, e que isso dava espaço aos outros (no caso a tipa do Banco) para resolverem por ti?
Lembras-te da vozinha trémula, quase apagada,
- Pois...
com que ficaste?
E lembras-te também quando, dias depois, te pedi para tratares do pneu do carro que eu tinha rebentado?
(Não furado; rebentado. Um pneu furado qualquer um resolve. Um pneu rebentado, só os maiores sabem resolver, por isso te chamei a ti.)
Pois eu lembro-me disso tudo, e lembro-me também da tua voz segura, ensaiada com certeza, a tentar compensar a fraqueza para com a senhora do Banco, e a repor o meu orgulho em ti.
- Pronto, Sofia, está tratado! Não tinham um pneu igual, só vem em Dezembro. Até lá andas com este que o Sr.Dinis emprestou.
- Emprestou? Então e quanto foi?
(Os teus empréstimos custam-te sempre qualquer coisa que eu sei.)
- Olha, nada...
(Que nada tão grande. Um nada cheio de coragem, determinado. Determinado a impressionar-me.)
- Nada como, pai?
(Eu sei que tu nunca recebes coisas sem pagar nada. Mesmo que essas coisas valham coisa nenhuma. Não gostas, é uma questão de feitio. De seriedade, talvez.)
- Nada. Zero. Sou sempre o parvo que insiste: vá lá, diga quanto... Desta vez aceitei o "fazemos contas em Dezembro". Por que os tempos não estão para recusas irrecusáveis...
Não estão de facto, pai, não depois da cena com a tipa do Banco e da tua vozinha quase apagada,
- Pois, Sofia... Tens razão, devia ser mais firme.
Mas sabes uma coisa, pai, visto agora à distância, quem tinha razão eras tu.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para isso tudo que tu és, e que estupidamente me pareceu errado.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para seriedade lá do fundo, como a tua.
Não daquela à superfície para os outros verem. Não daquela seriedade que se consegue com fatos caros e gravatas de seda. Agora reformado já não usas fato todos os dias, não precisas. Bem vistas as coisas nunca precisaste. Podias ter ido trabalhar a vida inteira de fato-de-treino, porque usas sempre integridade da seda mais pura.
A parte boa sabes qual é, pai?
A parte boa é que agora, sem fatos nem gravatas delicadas para camuflar a verdade,
(camuflar não é só para as coisas más, no teu caso é para as boas. No teu caso o fato só servia para camuflar a moral genuína. Podia induzir em dúvida: será apenas do fato?)
não há que enganar.
Por isso, o que tinha para te dizer é: estiveste sempre certo e eu fui uma estúpida em te deixar a vozinha quase apagada.
- Pois, Sofia...
Pois nada.
Pois uma bofetada na cara, era o que eu merecia.
Pois digo eu, quase sem voz.
Pois é, pai, és um pai do caraças.
Que não passe de hoje, por favor, vais falar com o Sr. Dinis e perguntar-lhe quanto é, que nestas coisas da vida, não dá para afrouxar.
Se quiseres vai de chinelos de quarto. No teu caso não há que enganar.
Se escrevi, devo ter deixado alguma coisa importante por dizer,
porque hoje,
acordei com uma enorme vontade de falar sobre ele.
(Não com ele. Com ele é fácil. Olá, estás bom? Claro que está. Está sempre bom. Com ele está sempre tudo bem, até mesmo quando não está.)
Mas mesmo que já tenha escrito sobre o meu pai, e que não tenha deixado nada por dizer,
no caso dele,
do meu pai,
nunca é demais repetir.
O meu pai é um pai e pêras.
Não porque me
(nos. Esqueço sempre que somos duas, de tão grande que é o meu pai. Suficientemente grande para ser dois pais; um para cada uma. Duas filhas únicas, irmãs.)
habituou mal no que respeita a fruta. Se assim fosse, teria de ser um pai e pêras,
e maçãs,
e pêssegos,
e até mangas, mesmo quando não havia muito dinheiro.
O meu pai é um pai e frutas.
Um pai e todas as frutas que as meninas gostavam, já descascadas.
Arrisco até dizer que o meu pai é uma melancia, gigante,
O coração, doce e sem pevides, sempre para as meninas.
No caso da melancia, éramos três, também chegava para a mãe. Ainda que no caso dela, com algumas pevides à mistura, como sempre são as melancias conjugais.
Pevides à parte, porque filhas somos só duas e foi disso que me propus falar hoje,
(vocês que são crescidos que se entendam com as pevides)
passemos ao que interessa.
Bom, mas com tanta conversa sobre fruta, já sei o que me esqueci de dizer sobre o meu pai.
Não foi bem esquecimento, não se pode esquecer o que ainda não aconteceu.
Por isso te pergunto, pai:
Lembras-te quando no outro dia te ralhei
(os filhos fazem muito isso; crescem um bocadinho e acham que sabem tudo, até mais que os pais)
porque foste demasiado frouxo,
ou indolente,
ou benevolente,
ou educado
(é isso mesmo, demasiado educado)
com a senhora do Banco?
Lembras-te quando te disse que às vezes eras um bocadinho irresoluto, e que isso dava espaço aos outros (no caso a tipa do Banco) para resolverem por ti?
Lembras-te da vozinha trémula, quase apagada,
- Pois...
com que ficaste?
E lembras-te também quando, dias depois, te pedi para tratares do pneu do carro que eu tinha rebentado?
(Não furado; rebentado. Um pneu furado qualquer um resolve. Um pneu rebentado, só os maiores sabem resolver, por isso te chamei a ti.)
Pois eu lembro-me disso tudo, e lembro-me também da tua voz segura, ensaiada com certeza, a tentar compensar a fraqueza para com a senhora do Banco, e a repor o meu orgulho em ti.
- Pronto, Sofia, está tratado! Não tinham um pneu igual, só vem em Dezembro. Até lá andas com este que o Sr.Dinis emprestou.
- Emprestou? Então e quanto foi?
(Os teus empréstimos custam-te sempre qualquer coisa que eu sei.)
- Olha, nada...
(Que nada tão grande. Um nada cheio de coragem, determinado. Determinado a impressionar-me.)
- Nada como, pai?
(Eu sei que tu nunca recebes coisas sem pagar nada. Mesmo que essas coisas valham coisa nenhuma. Não gostas, é uma questão de feitio. De seriedade, talvez.)
- Nada. Zero. Sou sempre o parvo que insiste: vá lá, diga quanto... Desta vez aceitei o "fazemos contas em Dezembro". Por que os tempos não estão para recusas irrecusáveis...
Não estão de facto, pai, não depois da cena com a tipa do Banco e da tua vozinha quase apagada,
- Pois, Sofia... Tens razão, devia ser mais firme.
Mas sabes uma coisa, pai, visto agora à distância, quem tinha razão eras tu.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para isso tudo que tu és, e que estupidamente me pareceu errado.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para seriedade lá do fundo, como a tua.
Não daquela à superfície para os outros verem. Não daquela seriedade que se consegue com fatos caros e gravatas de seda. Agora reformado já não usas fato todos os dias, não precisas. Bem vistas as coisas nunca precisaste. Podias ter ido trabalhar a vida inteira de fato-de-treino, porque usas sempre integridade da seda mais pura.
A parte boa sabes qual é, pai?
A parte boa é que agora, sem fatos nem gravatas delicadas para camuflar a verdade,
(camuflar não é só para as coisas más, no teu caso é para as boas. No teu caso o fato só servia para camuflar a moral genuína. Podia induzir em dúvida: será apenas do fato?)
não há que enganar.
Por isso, o que tinha para te dizer é: estiveste sempre certo e eu fui uma estúpida em te deixar a vozinha quase apagada.
- Pois, Sofia...
Pois nada.
Pois uma bofetada na cara, era o que eu merecia.
Pois digo eu, quase sem voz.
Pois é, pai, és um pai do caraças.
Que não passe de hoje, por favor, vais falar com o Sr. Dinis e perguntar-lhe quanto é, que nestas coisas da vida, não dá para afrouxar.
Se quiseres vai de chinelos de quarto. No teu caso não há que enganar.