quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Um pai e pêras

Não sei se já escrevi sobre o meu pai.
Se escrevi, devo ter deixado alguma coisa importante por dizer,
porque hoje,
acordei com uma enorme vontade de falar sobre ele.
(Não com ele. Com ele é fácil. Olá, estás bom? Claro que está. Está sempre bom. Com ele está sempre tudo bem, até mesmo quando não está.)
Mas mesmo que já tenha escrito sobre o meu pai, e que não tenha deixado nada por dizer,
no caso dele,
do meu pai,
nunca é demais repetir.
O meu pai é um pai e pêras.
Não porque me
(nos. Esqueço sempre que somos duas, de tão grande que é o meu pai. Suficientemente grande para ser dois pais; um para cada uma. Duas filhas únicas, irmãs.)
habituou mal no que respeita a fruta. Se assim fosse, teria de ser um pai e pêras,
e maçãs,
e pêssegos,
e até mangas, mesmo quando não havia muito dinheiro.
O meu pai é um pai e frutas.
Um pai e todas as frutas que as meninas gostavam, já descascadas.
Arrisco até dizer que o meu pai é uma melancia, gigante,
O coração, doce e sem pevides, sempre para as meninas.
No caso da melancia, éramos três, também chegava para a mãe. Ainda que no caso dela, com algumas pevides à mistura, como sempre são as melancias conjugais.
Pevides à parte, porque filhas somos só duas e foi disso que me propus falar hoje,
(vocês que são crescidos que se entendam com as pevides)
passemos ao que interessa.
Bom, mas com tanta conversa sobre fruta, já sei o que me esqueci de dizer sobre o meu pai.
Não foi bem esquecimento, não se pode esquecer o que ainda não aconteceu.
Por isso te pergunto, pai:
Lembras-te quando no outro dia te ralhei
(os filhos fazem muito isso; crescem um bocadinho e acham que sabem tudo, até mais que os pais)
porque foste demasiado frouxo,
ou indolente,
ou benevolente,
ou educado
(é isso mesmo, demasiado educado)
com a senhora do Banco?
Lembras-te quando te disse que às vezes eras um bocadinho irresoluto, e que isso dava espaço aos outros (no caso a tipa do Banco) para resolverem por ti?
Lembras-te  da vozinha trémula, quase apagada,
- Pois...
com que ficaste?
E lembras-te também quando, dias depois, te pedi para tratares do pneu do carro que eu tinha rebentado?
(Não furado; rebentado. Um pneu furado qualquer um resolve. Um pneu rebentado, só os maiores sabem resolver, por isso te chamei a ti.)
Pois eu lembro-me disso tudo, e lembro-me também da tua voz segura, ensaiada com certeza, a tentar compensar a fraqueza para com a senhora do Banco, e a repor o meu orgulho em ti.
- Pronto, Sofia, está tratado! Não tinham um pneu igual, só vem em Dezembro. Até lá andas com este que o Sr.Dinis emprestou.
- Emprestou? Então e quanto foi?
(Os teus empréstimos custam-te sempre qualquer coisa que eu sei.)
- Olha, nada...
(Que nada tão grande. Um nada cheio de coragem, determinado. Determinado a impressionar-me.)
- Nada como, pai?
(Eu sei que tu nunca recebes coisas sem pagar nada. Mesmo que essas coisas valham coisa nenhuma. Não gostas, é uma questão de feitio. De seriedade, talvez.)
- Nada. Zero. Sou sempre o parvo que insiste: vá lá, diga quanto... Desta vez aceitei o "fazemos contas em Dezembro". Por que os tempos não estão para recusas irrecusáveis...
Não estão de facto, pai, não depois da cena com a tipa do Banco e da tua vozinha quase apagada,
- Pois, Sofia... Tens razão, devia ser mais firme.
Mas sabes uma coisa, pai, visto agora à distância, quem tinha razão eras tu.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para isso tudo que tu és, e que estupidamente me pareceu errado.
Os tempos estão, como sempre deviam estar, para seriedade lá do fundo, como a tua.
Não daquela à superfície para os outros verem. Não daquela seriedade que se consegue com fatos caros e gravatas de seda. Agora reformado já não usas fato todos os dias, não precisas. Bem vistas as coisas nunca precisaste. Podias ter ido trabalhar a vida inteira de fato-de-treino, porque usas sempre integridade da seda mais pura.
A parte boa sabes qual é, pai?
A parte boa é que agora, sem fatos nem gravatas delicadas para camuflar a verdade,
(camuflar não é só para as coisas más, no teu caso é para as boas. No teu caso o fato só servia para camuflar a moral genuína. Podia induzir em dúvida: será apenas do fato?)
não há que enganar.
Por isso, o que tinha para te dizer é: estiveste sempre certo e eu fui uma estúpida em te deixar a vozinha quase apagada.
- Pois, Sofia...
Pois nada.
Pois uma bofetada na cara, era o que eu merecia.
Pois digo eu, quase sem voz.
Pois é, pai, és um pai do caraças.
Que não passe de hoje, por favor, vais falar com o Sr. Dinis e perguntar-lhe quanto é, que nestas coisas da vida, não dá para afrouxar.
Se quiseres vai de chinelos de quarto. No teu caso não há que enganar.

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