domingo, 28 de outubro de 2012

A hora da sorte

O telemóvel agarrado ao acaso marcava 22:22 exactas.
Nem mais, nem menos.
Uma fila de números demasiado parecidos uns com os outros para passarem por entre as gotas da chuva, especialmente se essas gotas forem grossas e se essa chuva for densa, como sempre eram as gotas e a chuva da vida de Susana. À quarta vez que, na mesma semana, tal semelhança lhe calhou nas mãos, acabou por concluir que eram, na realidade, iguais. Uma parecença extrema que só podia configurar uma identidade única.
Quando perante o seu olhar incrédulo o último 2 lhe explodiu num 3,
(Plof)
sem qualquer compaixão pelo raciocínio vagaroso de Susana, que ainda não tinha conseguido amassar a informação num bolo alimentar capaz de lhe chegar ao estômago nas devidas condições, encolheu os ombros e deixou cair o telemóvel pela boca da mala que lhe saía debaixo do braço.
Quatro números iguais, independentemente do número de vezes por semana, não deixam de ser isso mesmo: iguais. A igualdade não é mais do que o estádio máximo da semelhança, ou talvez uma palavra inventada para descrever o que o olho humano não consegue distinguir: iguais, portanto.
Simples.
Susana nunca foi uma  mulher de sorte, nem tão pouco de azar. A vida não lhe corria bem, mas nem por isso lhe corria mal. Bem vistas as coisas talvez nem lhe corresse; caminhava, apenas. A sua vida caminhava pausadamente para o final, com o sossego característico de quem não tem pressas. Não é preciso pressa para ir  a lado nenhum - costumava pensar. A pressa precisa de motivação para acontecer. Ali, acontecia apenas que Susana não tinha, até aquele dia, nenhuma das duas.
Enquanto caminhava decidida, mais por hábito do que por convicção - fazia aquele percurso diariamente -, até à cafetaria da estação de serviço junto à estrada principal, ia envolvendo em saliva o que lhe sucedera antes de sair de casa. Não que tivesse problemas de estômago, nada disso, tinha apenas tempo de sobra para deixar que todos os processos, até os digestivos, decorressem como dizem as regras que devem decorrer.
Sentada na mesa do costume, junto ao canto, de frente para a pequena sala sempre vazia àquela hora, sorveu com delicadeza o galão morno que lhe empurrou definitivamente a capicua para o sítio certo. Digerida esta coisa da semelhança ou da igualdade, caçou o telemóvel de antepenúltima geração por entre as inutilidades que carregava na mala, e olhou o pequeno visor cinzento à procura de confirmação.
A confirmação não chegou.
22:37, marcava agora.
Que tolice, pensou. Ainda assim, tola, pousou o aparelho de barriga para cima na mesa e continuou a bebericar o galão. De quando em quando passava-lhe o olhar desinteressado por cima, uma lambidela apenas, é impossível não olhar para o que está mesmo à nossa frente, verdade? Não acreditava em superstições, claro que não, essas coisas da sorte são para os outros, olhava o telemóvel da mesma maneira que olhava a lata dos guardanapos, ou as costas do condutor que se sentara na mesa à sua frente.
Gordo, o tipo.
Tantos lugares vazios e havia logo de se sentar ali, a tapar-lhe o caminho do olhar para a sua telenovela diária. Nos últimos tempos Susana quase não saía de casa durante o dia, mas não dispensava um serão tardio no bar da estação de serviço onde podia ver vida acontecer sem ser reconhecida. Os clientes estavam sempre apenas de passagem e os empregados também. Estes últimos sucediam-se com rapidez suficiente para que nenhum alguma vez lhe perguntasse se queria o do costume. Os seus costumes, neste caso o seu galão nocturno, eram só dela e não queria ter de os partilhar com mais ninguém. Porque de um galão às onze da noite, ou de qualquer outra rotina menos convencional, nascem sempre conjecturas que não estava disposta a tolerar na sua vida.
- Coitada, aquilo são insónias, seguramente.
- Solteira, só pode.
- Trabalha à noite, é certo.
Eram poucas as coisas que não tolerava por isso sentia-se no direito de não querer "seguramentes" ou "só podes" ou "é certos" perto de si. Aliás, nem este telemóvel perto de mim, agora. Chega de parvoíces. E assim que o telemóvel aterrou de costas na escuridão da mala pousada na cadeira ao lado,
23:32
Dois números aos pares a rirem, luminosos.
E perante o seu olhar incrédulo
Plof
23:33
Plof sem qualquer compaixão pelo raciocínio vagaroso de Susana, que ainda não tinha conseguido amassar a informação num bolo alimentar capaz de lhe chegar ao estômago nas devidas condições. Plof, enfiaram-lhe outra colherada na boca, sem  qualquer espécie de piedade pela sua mastigação lenta, como fazem os pais apressados aos bebés preguiçosos.
Pediu mais um galão.
Os costumes estavam, naquela noite, por repetição, dispostos a vencer o ritmo de rotatividade dos empregados da casa, pelo que seria de esperar que não tardassem a chegar os  "seguramentes", os "só podes" e os "é certos".
Que se lixem os empregados. Nunca mais cá volto e pronto. Resolve-se assim.  - Pensou enquanto segurava o olhar no visor à espera de ver quem piscaria primeiro.
Plof, piscou o telemóvel:
23:34
E ganhou, o telemóvel.
33:33 nem sequer existe, Susana. Que tolice e que perda de tempo esperar o que não é expectável.
Não era de todo uma tolice, na sua opinião tolice seria esperar aquilo que se sabe poder acontecer. Se vai acontecer deixa-se ali e pronto, da próxima vez que olharmos terá seguramente acontecido. Que perda de tempo, isso sim, parar o nosso tempo para olhar o tempo natural das coisas fazer o seu percurso ao encontro do que se sabe certo. Se é para parar o tempo, que seja pelo improvável.
O improvável não se decidiu a acontecer naquela noite, nem mesmo depois de cinco galões e um serão inteirinho de angústia, com o telemóvel a oscilar consoante a disposição de Susana; ora refastelado de barriga para o ar em cima da mesa, ora jogado nas profundezas da mala de mão. Em ambos os casos sempre vigiado, entre galões, pelo olhar inquieto de Susana.
Plof
23:44
Plof
23:47
Plof
23:52
- Uiiiii... Tolinha de todo, aquela...
E pronto, em menos de nada, uma distraçãozinha apenas, e os seus costumes estavam expostos, ainda que deturpados, acelerados pela ansiedade da noite. Cinco galões pedidos ao mesmo empregado tinham-lhe deixado o esqueleto à vista. Os costumes que, quis o destino, nem sequer fossem os dela - jamais tomara cinco galões numa só noite - tinham-na deixado vulnerável à presunção certa de um empregado de bar. Nada havia a fazer, agora. Não podia ir ter com o universitário ensebado e dizer-lhe olhe que eu nunca tomo cinco galões numa noite, tomo um apenas. Não havia maneira de falar dos costumes que não eram seus sem referir aqueles de que era legítima proprietária. De uma maneira ou de outra estaria sempre à mercê do julgamento daquele indivíduo de barba rala e borbulhas na cara.
Pagou determinada a não voltar mais. Não se lembrou sequer de que os seus costumes eram indiferentes para a sua tomada de decisão. Podia voltar à vontade, o mais provável era o jovem empregado não durar mais do que a semana que duraram os anteriores e nessa medida o número de galões por noite era absolutamente irrelevante. Naquele momento estava demasiado preocupada com a sua imprudência imaginária - por existir apenas na sua imaginação e não por ser imaginável - para se preocupar com a realidade factual. Não voltaria mais, estava decidido.
Já à porta da estação de serviço, antes de se meter a caminho, olhou uma vez mais o telemóvel, desta vez para ver as horas e não para ver a sorte.
00:00, marcava.
Quatro zeros. Gordos. Vazios. Tão vazios que só podiam ser horas. A sorte, todos sabem, está sempre cheia de coisas.
Claro que são as horas, Susana, só as horas.
Círculos, quanto muito. O melhor que tens a fazer é acordar cedo, amanhã, pegar na secção de emprego dos jornais que tens empilhados lá em casa e fazer muitos círculos gigantes à volta dos pedidos de enfermeiras. Depois, quem sabe se as horas não viram sorte.
Nada de novo, Susana, o costume: as horas são as horas, e a sorte... A sorte não existe, Susana. A sorte é outra coisa qualquer.

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