sábado, 28 de abril de 2012

Quando nascer quero ser mexicana...

... ou então escrever assim:

          "Evidentemente, há muitas mortes ao longo de uma vida. A maioria das pessoas não se dá conta. Julga que morre uma vez e já está. Mas basta prestar um pouco de atenção para se dar conta de que uma pessoa morre em cada momento. Não é um modo poético de falar. Não estou a dizer que a alma isto e a alma aquilo, mas sim que um dia uma pessoa atravessa uma rua e é atropelada por um carro; outro dia fica adormecida na banheira e já está; e outro cai pelas escada do seu prédio e parte a cabeça. A maioria das mortes não importa: o filme continua a decorrer. É só aí que tudo dá uma volta, embora seja imperceptível e os resultados nem sempre sejam imediatos.
          Eu comecei a morrer em Manhattan, no verão de 1928. Evidentemente, só eu me dava conta das minhas mortes - as pessoas estão demasiado ocupadas com a sua própria vida para repararem nas pequenas mortes dos outros. Eu dava-me conta porque depois de cada morte ficava com febre e perdia peso.
          Pesava-me todos os dias, para ver se no dia anterior tinha morrido. E embora não me acontecesse assim tão frequentemente, fui perdendo peso a uma velocidade alarmante (nunca soube quanto era em quilos). Não é que ficasse mais magro. Só perdia peso, como se me estivesse a esvaziar, mas o meu molde exterior permanecesse intacto. Agora, por exemplo sou um gordo mamalhudo e peso apenas três libras. Não sei se isso significa que me restam três mortes, como se fosse um gato em conta regressiva. Acho que não. Acho que a próxima é a boa." - in Rostos na multidão, de Valeria Luiselli

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Rabiscar conta?



- Escreves há muito tempo?
- Não. Quer dizer... rabiscar conta?
- Conta.
- Então não sei.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ámen

          A ideia era boa, quase óptima, viajar para o meio do nada e enchê-lo com aquilo que tenho de fazer; que quero fazer; que sou feliz a fazer. Encher apenas um bocadinho do nada enorme lá fora, e escrever. Precisa de respirar, a escrita; e eu também.
          Sentei-me num cantinho do nada - bem no cantinho para não o sufocar - e o nada que julgava meu, encheu-se com a vida do Sr. António - chamemos-lhe assim. O Sr. António tem uma serra eléctrica e lenha para cortar, pouco lhe importa que eu tenha lenha para limar. Costumo zangar-me quando o mundo me troca as voltas, mas hoje não sei como o fazer.
          Morreu Miguel Portas e o nada está irremediavelmente cheio. Não sobra sequer um cantinho onde me possa sentar, e mesmo que sobrasse, seria irrelevante se a escrita respira, quando ele já não.
          Não sobra sequer um cantinho onde eu possa respirar.
          Esperemos que respire por todos nós, o Sr. António.
          Ámen.
          Em nome da mãe, do irmão e da irmã.
          Amem.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Chichi cama

          O mundo apaga as luzes à noite para nos obrigar a descansar. Nós, teimosos, queremos tudo às claras, sempre. Mas as coisas não devem ser vistas às claras a toda a hora, porque se assim fosse para ser, a Terra não seria redonda. As coisas precisam de descansar, e com elas nós deveríamos aproveitar para descansar também.
          Raramente descanso, mas ontem, sem luz, descansei. Ainda assim, por falta de hábito, acendi a lanterna e li. O mundo não haveria de se zangar; que mal faz afinal um pequeno círculo de luz no meio do mundo preto, enorme? Tão preto. Tão enorme. Ao fundo uma vela sábia tremia na parede, provavelmente com medo de acordar o que o mundo ditara adormecido. Eu, teimosa, insisti em não obedecer.
          Sempre gostei de fazer as coisas certas, e por isso, apesar do frio na barriga de cada vez que
          - Vá, meninas, chichi cama.
          ia. Ia e apesar dos olhos fechados com força para não ver o escuro (para não ver o escuro, sua tonta?), tudo preto.
          Ontem o mundo - e os senhores da EDP - quiseram roubar a autoridade à mãe, mas eu, crescida, e já sem medo da noite, desobedeci; não lavei os dentes, nem fui para a cama, acendi a lanterna e li.
          Li com a coragem de quem pode fazer o que quer (posso?) e, por magia, o que eu queria saber apareceu feito (apareceu?). No silêncio escuro a lanterna pousada no ombro respirava nas folhas do livro aberto. Primeiro aflita, mas depois... ah mas depois devagar... muito devagar como é a respiração tranquila.
          Estou viva, mãe. Podes apagar a luz. Já fiz chichi e vou já para a cama.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ser inútil é,

"... Não há cidade mais triste do que o Rio à chuva. Talvez porque a tristeza das cidades alegres nos apanhe sempre desprevenidos. Como a tristeza das pessoas felizes..." José Eduardo Agualusa

Que penosa a tristeza das pessoas felizes.
Que ridícula a tristeza das pessoas felizes.
E que inútil a tristeza das pessoas felizes.
Que ridículas as inúteis pessoas felizes.

Mas que triste a tristeza das pessoas felizes,
se não podem chorar com vontade.
Que tristeza, afinal,
ser-se inútil de verdade.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Enforcou-se o amor


1

               A maior tragédia não aconteceu no dia em que ela morreu. A verdadeira tragédia aconteceu quando ela começou a deixar de existir. Começou no momento em que até a memória me traiu, e deixei de conseguir recordá-la com a nitidez que mantinha, até então, a minha desgraça suspensa. Aprendi a esperar tudo dos outros. Não estava preparado para não poder esperar nada de mim. E à minha memória, por ser minha, não lhe sei perdoar. Hoje, decorridos precisamente quatro anos, dois meses, cinco dias, nove horas e vinte e três minutos do momento da sua morte,
               (Precisamente? Existe precisão sem segundos? Claro que não. Como te pudeste esquecer dos segundos? Não sabes afinal precisamente nada. Sabes somente que apesar de nunca teres gostado da arrogância imprecisa daquele relógio de parede, com dois ponteiros apenas, nunca trataste de o substituir por um relógio de verdade; um relógio com ponteiros destemidos que não receiam a velocidade elegante do ponteiro dos segundos. São três os ponteiros necessários à precisão. És ainda mais cobarde do que as horas e os minutos. Sabes isso, apenas)
               consigo recordar essa manhã distante com a lucidez da véspera, que só a mais grave das dores pode explicar. A manhã em que depois de morta, ela começou a deixar de existir.
               Acordámos cedo como sempre fazíamos para aproveitar o sol baixinho de inverno - é sempre inverno agora que ela quase não está cá - que nos esperava na mesa da cozinha. Ela sentou-se à espera. A roupa ainda quente do entusiasmo da noite, o queixo apoiado na mão que segurava o olhar pousado lá fora, o cabelo apanhado ao acaso, e eu perdido no acaso do seu pescoço despido. Tomámos o pequeno almoço em silêncio, sorrindo ocasionalmente quase sem precisar de sorrir - tem destas coisas o amor, faz-se tudo sem ter de se fazer quase nada - e mais uma vez as suas torradas intactas. Perturbava-me que já não lhe agradassem as minhas torradas desde que talvez tivesse morrido. Recolhi os pratos, só o meu vazio. Fingi não me incomodar para não a afligir. Esforcei-me tanto para não a perturbar; juro que me esforcei; tenho quase a certeza que me esforcei. Talvez não me tenha esforçado; não me esforcei de facto. Sim, foi isso que aconteceu, só pode ter sido isso que aconteceu; esforcei-me pouco, quase nada e, ainda antes de pousar os pratos tão diferentes na bancada, olhei-a, e ela quase não estava lá. Um vulto apenas. A sua imagem ausente. O perfil desenhado em contraluz pelo sol de inverno que, mesmo baixinho, delineava uma silhueta vazia. Era ela, não tive dúvidas; conhecia-lhe os contornos com a sabedoria com que um cego chega a ler. Mas e a boca? E o olhar? E o acaso sem pescoço onde me pudesse perder? Estremeci. Olhei o relógio pendurado por cima da porta; marcava agora nove horas e quinze minutos exactos. Tão exactos quanto a linha do equador. Talvez até mais exactos que a linha do equador. Uma linha negra e soturna atravessava o relógio ridículo - como todos os relógios de cozinha. Talvez um pouco mais ridículo, este - dividindo-o em duas meias-luas, brancas, perfeitas, deitadas peito com peito uma em cima da outra. Por momentos temi que o traço negro das doze horas e trinta minutos aparecesse para atravessar o equador, e juntos atestarem com uma cruz negra sem pudor, o fim de Clara. Aguardei uns momentos - três minutos, acho - estático com dois pratos trémulos nas mãos, alternado o olhar aflito entre o relógio de parede e a imagem cada vez mais esbatida da minha Clara. E quando a sua silhueta quis fugir com a luz que entrava generosa pela janela, não pude esperar mais; sobressaltei-me na sua direcção; esqueci o relógio, os ponteiros, a lua, o equador negro. Esqueci os pratos, também, que caíram desgovernados no chão com a fúria do meu desespero. Abracei-a ao de leve para que não pudesse partir - não sem mim, pelo menos - e abri um sorriso tranquilo quando vi as torradas finalmente remexidas. O leque perfeito das três torradas que todas as manhãs lhe preparava, com pouca manteiga, distribuída com perícia como ela gostava - nem um milímetro esquecido a seco para que não se aborrecesse - desfeito no chão. É claro que ainda adorava as minhas torradas. Como fui tonto ao imaginar que podia já não gostar. Faltava-lhe o apetite nos últimos tempos, só isso.


2
             
               Não devia ter partido o relógio, bem sei, mas não era motivo para tanto. Disseram-me que não foi pelo relógio; parece que andava cansado, esgotado. Parece que fui de ambulância e que precisava de alguns comprimidos. Nada de especial, só para dormir melhor.
               - Estes todos só para dormir melhor?
               (Parece que sim)
               - E quando acordar posso ir para casa? Estou preocupado com a Clara.
               (Parece que não)
               - Pode ser.
               Mesmo depois de dormir, continuei sem compreender. Se a Clara morreu, como pude eu - logo eu - não saber? Como é que pode alguém - logo ela - morrer e voltar para casa em seguida?
               - É doloroso encarar a morte da pessoa que se ama. É um processo demorado. Um passo de cada vez - dizia o tipo sério vestido de branco.
               Geniais, todos eles. Todos de branco.
               Não é é disso que falo. Não era nada disso que tentava dizer. Deve ser duro, sim. Imagino que sim. Mas não há processo aqui, e é essa a questão. Já lhe pedi que desapareça de uma vez por todas. Que não me visite mais. Afinal foi ela que decidiu partir. Nunca a poderia ter impedido. Não se pára quem já foi. Mas é teimosa. Visitou-me ontem e anteontem. E antes de anteontem. Todos os dias. Conheço-a bem, não descansa enquanto não me tiver de volta a casa para pôr ordem no relógio. Não está segura sem mim, entende? Partiu, mas arrependeu-se; arrependeu-se logo de seguida; nem um minuto depois. E voltou. Bem vistas as coisas nem chegou a partiu; faltou-lhe o apetite, só isso.
               (Ninguém morre por falta de apetite. Não havias de ser tu a primeira. Logo tu. Logo eu)     
               Depois de dizerem que talvez tivesse morrido, desinteressou-se pela vida lá fora. Preferia ficar em casa sossegada. Pouco falava. Não me recordo, aliás, de ter voltado a falar. Não, nunca mais falou. Eu saía, voltava e nunca mais
               - És tu meu amor? - mal as chaves tocavam a fechadura.
               Nunca mais. Sempre sentada naquela cadeira de cozinha, com o olhar perdido num sitio qualquer; um sítio sem importância de maior para além da excessiva proximidade do maldito relógio; ansioso por lhe abençoar a morte.
               - Não chegou a tirar o relógio da parede? - Insistiu o tipo da bata branca.
               - O relógio? Claro que tirei; quase me levou a Clara, o sacana.
               (Quase me levou a Clara, o sacana. Desfaço-o em pedaços assim que voltar a casa)
               Eu entrava e beijava-a sempre; nunca me esqueci de a beijar. Ainda assim, na melhor das hipóteses: um sorriso, apenas. Compreendo-a. O tipo de bata branca dizia com razão: é duro enfrentar a morte. O que não lhe deve ter doído encarar a sua. Por isso a ajudei como soube; por isso a beijava sempre, sempre; nunca me esqueci de a beijar. E é por isso que vou desfazer o relógio em pedaços mal chegue a casa.
               Talvez seja melhor que a Clara fique por cá. Talvez haja algum tipo sério de bata branca que tome conta dela. Pode até nem ser sério, desde que tome conta dela. Não a posso deixar em casa sozinha, sem beijos, nem relógio, nem torradas; logo agora que lhe voltou o apetite. Nem sei como tem tido ânimo para me vir cá ver. Ela que depois de talvez ter morrido nunca mais saiu de casa.
               - Quanto tempo acha que falta para me poder ir embora? - Perguntei ao tipo da bata branca.
               - Depende da sua evolução, Guilherme. Não lhe posso dar uma data precisa.
               (Mando vir o relógio, então. Aquele relógio de cozinha impreciso, serve bem neste caso.)
               Pedi-lhe que trouxesse o relógio. Nunca o chegou a trazer. Talvez por isso me custe dormir ultimamente. Nem tanto por culpa do fulano da cama ao lado que geme terror a noite inteira. Na verdade o que me dói é acordar; morre-me todas as manhã outra vez.
               Quantas vezes pode morrer uma pessoa até morrer de vez?
               Acho que tantas quantas as vezes que a amamos.
               E quantas vezes pode alguém suportar essa dor, sem morrer também?
               Espero que tantas quantas as vezes que a amamos.
               Curioso, a minha desgraça é também a minha salvação: o amor. Sempre o cabrão do amor. Se a amares muito, morre-te muitas vezes. E se a amares muito aguentas-te as vezes que forem precisas sem morrer também. O segredo para a desgraça é amar muito. O segredo para a salvação, também. Curioso, no mínimo. Isto faz sentido para alguém? Talvez faça; talvez a salvação seja em si uma desgraça: aguentar; muito. Aguentar muito. Faz sentido, sim. Mas porque me há-de morrer todos os dias outra vez? Estava gelada que eu vi; dei dois passos atrás e pensei: a Clara não está aqui. Fui para casa e esperei. Voltou. Calada é certo, mas voltou.


3

               Meteram-me aqui, enfiaram-me comprimidos pela boca abaixo, e agora dizem que estou melhor porque já sei que a Clara morreu.
               Já sei. Já ouvi. Está morta. Sem vida. Por esta altura já nem carne; só ossos. Está morta com uma cruz em cima; preta. E não é o relógio. O relógio continua lá e também já sei que não foi ele que a levou. Foi a vida que a levou. Foi ela que quis pendurar a dor no chuveiro. Com o meu cinto. Com o meu cinto, Clara? Foda-se, Clara, com o meu cinto? Não sabias morrer sozinha? Não sabias não morrer?
               Onde querem que escreva que morreu? Que sei que morreu? Quantas vezes tenho de escrever, para me deixarem ir? Uma folha inteira cheia de
               Morreu-me a Clara.
               Morreu-me a Clara.
               Em letra miudinha para lá caberem muitas Claras:
                Morreu-me a Clara.
                   Morreu-me a Clara...
               Quantas vezes tenho de escrever para que me morra de vez?
               Agora que sei que a Clara morreu; agora que fiz tudo o que me mandaram fazer; agora que tomei banho com vinte tipos nus, vestidos apenas com a sua mais entranhada loucura;
               (Podem dar-lhes os banhos que quiserem. Por mais que os esfreguem, não sai)
               agora que tomei banho nu, no meio de vinte tipos entranhados de loucura, numa casa de banho enorme - para cabermos todos - forrada com azulejos partidos;
               (Todos partidos. Nem um quadradinho de ordem no meio de tanta loucura. Provavelmente nem um quadradinho de ordem por culpa de tanta loucura.)
               agora que já estou bom;
               - Despe-te. És o próximo.
               agora que já estou bom posso tomar banho sozinho?
               - Despe-te e mete-te na fila.
               Esfreguem-me à vontade. O máximo que consigo dizer é
               - Já sei que a Clara morreu.
               Não sonhem com um
               - Sim, a Clara morreu.
             

4

               Quem é que mete um maluco num sítio destes e espera que melhore? Quem é que mete malucos a tomar conta de malucos?
               - Já te disse que não podes andar com esse pijama. Tens de vestir o pijama do hospital.
               Eu não tenho o pijama do hospital. Ninguém me deu o pijama do hospital.
               - Veste o pijama do hospital!
               E eu a questionar-me
               - Estarei louco?
               E eu certo de que
               - Foda-se, estou louco. Onde meteste o pijama do hospital, seu louco?
               Eu nunca tive o pijama do hospital. Não podias ter parado para perguntar,
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Não podias ter parado para me ouvir dizer
               - Eu não tenho o pijama do hospital.
               Não podias ter parado para acreditar que um louco pode saber que não tem o pijama do hospital? Não podias ter parado para acreditar que um louco pode não ter o cabrão do pijama do hospital? E enquanto tentavas acreditar no que o louco te dizia, não podias ter pousado a tua mão no meu ombro e dizer baixinho
               - A Clara morreu, Guilherme. É mesmo verdade. Morreu.
               E se tu fingisses acreditar no pijama do louco, eu fingia acreditar que a tua Clara era a minha. E se isso tivesse acontecido, eu não precisava deste pijama verde-água com um carimbo desbotado - HJM -Hospital de Júlio de Matos - para acreditar que a Clara morreu. Mas precisei; e por isso roubei o pijama do fulano da cama ao lado. Desamarrei-lhes primeiro as mãos para tirar a parte de cima; depois desamarrei-lhe os pés e tirei-lhe as calças. Nada disto lhe faz falta. Aliás, nada lhe faz falta. Não vai sequer ouvir a outra dizer
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Provavelmente ninguém lhe vai sequer perguntar
               - Onde está o teu pijama do hospital?
               Talvez pela manhã, quando o desamarrarem para o banho, talvez aí lhe perguntem
               - O que é que fizeste ao teu pijama do hospital?
               Talvez lhe perguntem, sim, mas com a mesma convicção com que se pergunta a um perdigueiro
               - Vamos à rua?
               O fulano da cama ao lado vai entender e responder o mesmo que o perdigueiro: nada. Não vai sequer contorcer-se de felicidade como o perdigueiro. Que sorte a do perdigueiro. Por isso roubei-lhe o pijama. Eu preciso do pijama do hospital, porque mesmo agora que já sei que a Clara morreu, mesmo agora que já digo que sei muito bem que a Clara morreu, mesmo assim continuariam a não acreditar que não tivesse, que nunca tivesse tido um pijama do hospital. E assim agora tenho. E agora que tenho talvez acreditem que já sei que a Clara morreu.
               Acordamos sempre cedo. Deixamos a ala de dormir às sete da manhã e não podemos voltar a entrar antes da noite cair. Aqui a noite cai quando eles mandam, mesmo quando ainda há sol. Se algum dos doentes fica demasiado agitado, a noite cai para todos seja a que horas for. Hoje caiu depois do almoço. Não porque alguém se tivesse exaltado, mas porque houve reunião de médicos e enfermeiros. Não reclamei; arregacei a manga; estendi o braço; fechei os olhos e esperei que a noite chegasse.
               Há dias que venho fazendo tudo o que me pedem. Faço tudo sem reclamar, nem tão pouco dar opinião. Questionar é coisa de doidos. Despi-me quando me mandaram e não pedi para tomar duche sozinho - só um louco poderia achar possível deixarem-no tomar duche sozinho - deixei que me esfregassem sem protestar, tomei o pequeno-almoço sossegado, não falei com ninguém, nem sozinho - juro que não falei sozinho -, nem respondi aos que falavam sozinhos. Disse que sim várias vezes, tomei todos os comprimidos que me estenderam, abri a boca de seguida para comprovar a toma, antes mesmo de
               - Abre a boca! Deixa-me ver!
               Respondi tantas vezes sim, que estou certo que me vão deixar sair em breve. Aqui não se pode dizer não. O fulano da cama ao lado disse demasiadas vezes não, e agora está assim, amarrado e sem conseguir dizer nada. Disseram-me que em tempos só o amarravam - pernas atadas às pernas da poltrona e braços com os braços da poltrona - mas mesmo amarrado conseguiu esburacar a poltrona com as unhas. Deixou-lhe a espuma toda à vista, e por isso tiveram que o pôr assim, sem falar, para que também não pudesse esgravatar. E por isso eu agora digo sempre que sim.


5
             
               Hoje vem o médico. É hoje que vou para casa. Tenho feito tudo certo ultimamente. Tudo, sim. Até a Clara morta.
               - Sim, morreu doutor.
               Abriu-se-lhe um sorriso largo na cara, satisfeito pela minha recuperação. Talvez mais pela sua própria vitória. O louco já não estava louco. O louco compreendera finalmente que a Clara não existia mais. Que a última clara com que viveu já não era a Clara. Inchado de vaidade recostou-se na cadeira, passou as mãos pela barriga como se tivesse acabado de almoçar um porco - cheio de orgulho, cheio dele - e com o mesmo sorriso largo
               - Sim senhor, Guilherme. Gosto de ver. Você é um homem de força. Recuperou o tento com uma rapidez que eu nunca imaginei. Pelo menos depois da forma como o vi chegar. Você já não pertence aqui, homem. Vou mandá-lo para casa.
               Vai mandar-me para casa. Clara, ele vai mandar-me para casa. Não te preocupes, direi que sim até ao fim. Sempre sim até ao fim. Para que não mude de ideias. Fica tranquila, Clara, agora já sei o que fazem os não loucos, e vou fazer igual. Não tarda estou em casa. Quando deres conta estou a meter as chaves à porta, ansioso por ouvir
               - És tu meu amor?
               Sou eu, sim; abre a porta. Se puderes e não estiveres muito fraquinha, prepara o duche. O cinto está na primeira gaveta da cómoda. Fica tranquila, Clara. Não tarda nada estou em casa.

FIM


quarta-feira, 18 de abril de 2012

terça-feira, 17 de abril de 2012







O vazio é uma coisa que nos enche.
O vazio é uma coisa enorme que nos enche.
O vazio é uma coisa enorme que nos enche por completo.
O vazio é uma coisa enorme que nos enche sem deixar espaço para mais nada.
No vazio só há espaço para o vazio.
O vazio tem apenas o espaço necessário para conseguir ficar cheio; de vazio.
É confuso.
Não sei se estou cheia ou vazia.

O vazio é uma bóia furada que ainda flutua; para lado nenhum.