segunda-feira, 28 de maio de 2012

A minha irmã é às cores

Eu tenho uma irmã enorme.
Eu tenho uma irmã que consigo enfiar debaixo do  braço,
mas que anda sempre de saltos altos.
A minha irmã é a pessoa mais importante do mundo.

Uma vez uma pessoa disse-me que isso não era verdade,
que o meu mundo, não era o Mundo,
e que assim sendo a minha irmã era apenas a pessoa mais importante do meu mundo.

Mas o meu mundo pertence ao Mundo,
(escusam de me dizer que não parece)
e para aquilo que tenho para dizer,
o pronome não faz qualquer falta.

Neste caso o pronome nem sequer é possessivo,
já nasceu assim, a minha irmã,
minha.

A minha irmã é a pessoa mais importante da minha vida.
É quase tão importante como os meus pais.
Não é preciso dizer que os pais são a coisa mais importante do mundo.
Por isso, logo a seguir ao que não é preciso dizer,
vem aquilo que precisa de ser dito:
A minha irmã é a pessoa mais importante da minha vida.

A minha irmã tem sempre coisas sábias para me dizer quando eu não sei nada.
Quando éramos pequenas e eu tinha medo
(as irmãs mais velhas nunca têm medo)
A minha irmã dizia-me:
- Imagina que és uma princesa vestida de cor-de-rosa e que vives num mundo todo cor-de-rosa.
(Irra, que a miúda já sabia da vida naquela altura)
E eu adormecia às cores.

Agora, de cada vez que eu tenho medo
(as irmãs mais novas podem ter medo a vida inteira)
a minha irmã já não me vem com a tanga das princesas.
Agora, de cada vez que eu tenho medo,
a minha irmã diz-me:
- Deixa-te de merdas e faz-te à vida como um homenzinho.
E eu vou,
à vida,
como um homenzinho cor-de-rosa.

A minha irmã sabe bem que os homenzinhos e as princesas são tudo a mesma merda,
desde que coloridos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Afinal, quando nascer, também posso ser portuguesa

"Alguns homens são de tripas e escamas, depois de amanhados ficam um pouco que não chega e mal se vê. Há outros em que tudo se aproveita, homens com segredos nas entranhas e na pele, que contam histórias sem fim. São esses os homens bons e às vezes nem homens são, mas cães ou gatos, ou crianças que brincam umas com as outras." - in No meu peito não cabem pássaros, de Nuno Camarneiro

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O mar condicionado

- É noite e chove lá fora.
Bom, talvez não chova, talvez seja o mar.
Sim, é isso, é o mar.
Reformulando,
- É noite, não chove lá fora, e ouve-se o mar.

Também não neva e não dizes que não neva. Porque é que dizes que não chove?

Pois.
Reformulando,
- É noite e ouve-se o mar.
Não gosto assim. Falta-me o lá fora. O lá fora faz muita falta neste caso, porque é preciso dizer às pessoas que o mar não está cá dentro.

Mas isso toda a gente sabe.

Ainda assim, não quero que haja dúvida. Preciso do mar mesmo, mesmo, mesmo lá fora.

Tudo bem. Deixa que eu reformulo por ti,
- É noite e ouve-se o mar lá fora.
Gostas assim?

Melhorou, mas faz-me pena que o mar esteja lá fora sozinho, entendes? Prefiro que esteja acompanhado pela chuva mesmo que ela não caia.

Tu é que sabes,
- É noite, não chove lá fora, e ouve-se o mar.
Serve?

Não sei. Se calhar o melhor é deixar o mar na caixinha cá dentro, e desligo-o quando quiser. Assim como assim está tudo preto lá fora. Podemos lá pôr o que quisermos.

Mas aí dentro tens a luz acesa, e também aí meteste o que quiseste.

Sim, mas é uma luz fraquinha, quase escura, e o ar condicionado não se importa de fazer de mar.
É que tenho medo que chova lá fora.

Então e o lá fora fica sozinho?

O lá fora só existe se lá metermos coisas. Mas não te preocupes, pode ser que chova.

sábado, 12 de maio de 2012

...

Uma desculpa é geralmente uma mentira.
Ou pelo menos uma fuga.
E as outras, as que se pedem, são o quê?
Ou melhor,
e as outras, as que se podiam pedir, são o quê?
Não sabes?
Não faz mal, tenho uma ideia:
vens-me buscar, pedes-me desculpa e fugimos os dois.
É que assim fica o assunto resolvido.

Não podes?
Não faz mal, pede-me desculpa que eu fujo sozinha.

Também não podes?
E se eu chorar, pedes?
Também não serve?
E se eu chorar muito, pedes?

Não faz mal, não te preocupes, peço ao sr. da farmácia.
A sério, fica tranquilo, não lhe custa nada e sei que não vai dizer que não.
Depois passas lá um dia e agradeces-lhe.
O importante é que alguém me peça desculpa.

Descaradamente copiando ALA


          Esta é uma "coisa" que escrevi em 2010 e que se perdeu na blogosfera. Recupero-a hoje, aqui, para que não se perca nunca mais.

          Sempre ouvi dizer que um dos segredos para aprender a escrever é copiar muito. Copiar bom, copiar bem. Por falta de tempo ou de outra coisa qualquer, não faço muito isso.
          No outro dia vi-me obrigada a copiar uma crónica de António Lobo Antunes para publicar num blog. Alguém tinha de o fazer. Calhou-me a mim e ainda bem.
          Uma cópia é um desafio doloroso à minha quase inexistente capacidade de concentração. Copio letra a letra, em esforço, devagar, muito devagar. O olhar arrastado entre o ecrã e a revista Visão, distrai-me a cada balanço. Qualquer coisa serve: 
          uma formiga apressada; 
          uma auréola de café com leite ressequido que o rabo molhado da caneca imprimiu na mesa, castanho claro numa ponta, castanho escuro na outra, a lembrar as montanhas dos mapas de geografia do liceu; 
          a formiga a atravessar a fronteira de café com leite;
          a formiga sem parar na alfândega improvisada pelo pacote de açúcar amachucado, para mostrar a bagagem que transporta para o lado de lá de uma linha que, quando vier a D. Olívia na terça-feira deixará de dividir dois mundos que afinal nunca existiram; 
          a formiga cansada com um calhau de açúcar refinado às costas;
          (mas porque é que não pousas o calhau enquanto esperas, caramba?)
          e a colher que misturou a fronteira com  o açúcar, nos tempos em que a fronteira ainda estava dentro da caneca, a barrar o caminho à formiga cansada...
          Por conta das formigas e das canecas - e vendo bem, também por conta da D. Olívia que nunca vem a tempo de apagar distracções com a Villeda encardida - salto linhas, entronco (existe este verbo?) palavras, invento adjectivos, termino frases sem copiar nada....
          Faço com as cópias o que faço numa conversa de café. Sou daquelas chatas que abana sistematicamente que sim com a cabeça enquanto o outro fala. Há quem sacuda cabelos soltos ou restos de escalpe dos ombros de quem tem a palavra, eu prefiro - na realidade não consigo evitar - completar as frases dos outros.
          (E ele provavelmente a não querer que eu lhe complete as frases.)
          (E eles provavelmente a desejarem que eu pare de abanar a cabeça.)
          Digo sempre a última palavra. Quando não vou a tempo, substituo a que já foi dita por uma mais adequada, mais ilustrativa, ou que só eu acho mais adequada ou mais ilustrativa e que provavelmente não passa de ruído para o outro que deseja apenas quem lhe escute as coisas, sossegado e em silêncio.
          Se calhar termino sempre as frases dos outros numa urgência de mostrar atenção ou concordância,
          (mais concordância, acho)
          ou quem sabe num sobressalto de quem não aguenta mais discórdia. Assim, completando-lhe as frases, asseguro-me de que convergimos pelo menos no pensamento.
          (E eu a saber tão bem que nunca convergimos. Tocamo-nos aqui e ali, pontualmente, só isso)
          Esqueço o que sei e asseguro paz, fabricada por uma convergência absoluta, necessariamente fingida.
          Eu queria ter uma convergência absoluta com ALA, mas não tenho, ninguém tem. Limito-me então a copiar-lhe desajeitadamente as crónicas, e a sonhar que se alguém tivesse, seria eu.

Cansada de escrever no cinzento,

por isso aqui fica: preto no branco.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Recomeços e entretantos

          Só depois da poeira assentar novamente nas coisas se pode compreender que o único problema sem solução chega sempre tarde demais, pelo menos para o próprio. E quanto à morte, não há muito a fazer; quando chegar não teremos tempo sequer de lhe acenar com a mão. Para além do fim material - chamemos-lhe assim - , nenhum dos outros é permanente. Porque se todos durassem para sempre não existiria a palavra recomeçar. E recomeçar não é mais do que começar depois de um fim. E começar depois de um fim significa que alguma coisa aconteceu para que pudesse acabar. E se alguma coisa aconteceu, não há como virar a cara para o lado e simplesmente começar. Podemos virar a cara para o lado, sim, mas o que se segue é um recomeço - um começo do fim, mas para a frente e não a andar para trás. 
          Gostamos de dizer que vamos recomeçar do zero, mas não se pode recomeçar do zero. O zero ficou para trás e não há como lá voltar. Podemos até pegar numa lasca de tijolo e escrever um zero gigante onde quisermos - aviso desde já que esta forma arcaica de giz só escreve bem no alcatrão -, podemos até olhar para o lado a tentar obrigar o corpo a dar meia volta e seguir a ordem da cabeça  de volta ao zero. Mas o corpo é que manda, esteja lá a cabeça virada para onde estiver. Por isso, o melhor que temos a fazer com o pedaço de tijolo é desenhar um jogo da macaca e saltar ao pé coxinho para nos distrairmos no entretanto. 
          Mas atenção que o entretanto é um momento importante. Como o próprio nome indica é um momento entre muita coisa; antes houve tanta coisa, mas depois também vai haver. O entretanto é o momento entre tudo isso, logo é importante. 
          A cabeça nestas coisas reais não manda nada, o corpo segue em frente e a cabeça não tem outro remédio que não seja segui-lo. Podemos ficar o resto da vida a olhar para trás, mas se assim fizermos, o mais provável é esbarrarmos num poste de electricidade que nos relembra que é sempre melhor olharmos para o sítio onde vamos, e que se aproxima, em vez de ficar a olhar para o sítio de onde viemos, e que se afasta cada vez mais. 
          As pessoas com sorte esbarram com o poste suficientemente cedo, as outras vivem em cidades sem luz.