terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Monólogo de amor

E nisto uma vontade fatal de te escrever
de te ter em linhas que não chegarás a ler
de te poder comigo como só eu te sei crer
de seres meu e eu tão tua sem ninguém o saber.
Nem tu
só eu.
Tudo meu
tu e eu.
Resta-me escrever, escrever...
Tocar-te sem temer
que não me queiras 
que não te possa
que algum dia saibas ler
mentiras toscas se te digo
desconsidere, sou louca, não sei se está a ver...
Se te imploro
Como queira, embale-me se lhe convier...
Sou louca, garanto, não tem o que temer.
O amor que anuncio vem todo do coração
sem propósito
ou indícios de razão.
Por isso perdão, doutor, perdão!
O amor que anuncio
na verdade é só paixão.

domingo, 24 de novembro de 2013

O gato que há em mim

Mesmo não sendo admiradora de felinos domésticos, sinto que há um gato em mim. 
Não no sentido literal, naturalmente. Vai longe o tempo em que me parecia perfeitamente razoável,  que uma cobra engolisse um elefante inteiro, que mais tarde alguém usaria como chapéu. Ainda assim, lembro-me, com exatidão suficiente para ficar desde já horrorizada, das noites passadas a engendrar como haveria de me safar às ordens da mãe
- Põe o chapéu, Sofia!
Não há mãe que não se aflija com a cabecinha da sua cria ao sol. Para as proteger, espetam-lhes uma cobra com um elefante inteiro na barriga, em cima da cabeça. Bem pensado, de facto. Só os cuidados extremosos de uma mãe são capazes de parir tal ideia. Nada daquilo me fazia sentido, ainda mais por não ver nenhuma mãe, com animais selvagens na cabeça.
Os chapéus são coisas para crianças e agora que já não uso disso, deu-me para isto; 
para me achar contentora de um gato. 
Bem vistas as coisas, há evolução no meu processo mental. Seria pior, e bastante mais indigesto, se me achasse contentora de uma girafa, ou de outro animal exótico qualquer. Tal ideia jamais me passaria pela cabeça, é do conhecimento geral que não se engolem chapéus.
Quer o sol brilhe ou não, quer a mãe queira ou não, o que há em mim não é um chapéu, mas sim um gato.
Tenho um talento bestial para ser feliz estendida numa cadeira do meu terraço, a lamber enganos e pecados para fora de mim, durante um dia inteirinho. Quero chegar à noite toda emendada, por isso não faço intervalos para refeições nem nada. Não preciso de alimento para me deixar estar, sossegada, a crescer. A respiração reduzida ao essencial para que não me morra o corpo, e poupo anos de vida, penso. Que satisfação. O que não respirei agora, respirarei mais tarde, contigo. Nunca se sabe quando nos fará falta tempo extra, dias extra, horas extra, minutos extra, ou, no teu caso, um segundo extra que seja. Poupo para ti. Exalto-me por momentos ao pensar no nosso assunto, mas depressa retorno à sobrevivência da espera. Dez pulsações por minuto. Chega perfeitamente para o que vim aqui fazer; cuidar da higiene do passado e rezar-te no futuro. Não rezo com rezas ou assim, não me interessam orações. Rezar a sério é só pensar e querer com muita fprça. Rezar não é dizer palavras cadenciadas e desenhar uma cruz na testa ou no peito no final. Não. Rezar é cair, levantar, acreditar e fazer; tropeçar, continuar, acreditar e fazer... E assim sucessivamente até se cair de vez, ou até te encontrar de vez. 
- Tanta merda para chegares à brilhante conclusão que rezar é acreditar e fazer, Sofia! 
Rezar é um verbo, e um verbo pressupõe uma acção, qualquer professora primária pode confirmar isso mesmo. É um verbo falacioso, é certo, tal como esperar ou amar. A pessoa pensa que é só estar ali, sem fazer nada, e depois trama-se.
- Então e o gato, Sofia?
O gato ficou com o pêlo lindo, brilhante que nem dava para acreditar. Quem o visse parecia um gato novo, mas diz a vizinha de baixo que quando deixou o terraço, andou a noite inteira às voltas, engasgado. Pensava-se que morria, o desgraçado. Mas não, assim que me consegui livrar da bola de pêlo, pus-me a rezar.
Agora é só amar e esperar. Esperar e amar...


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Morgado

Em Fevereiro de 2012, durante o Curso de Escrita Literária da Restart, a minha querida professora Margarida Fonseca Santos, fez-nos escrever um conto infantil. Eu, que nunca me tinha imaginado nesse papel, escrevi. E pior, gostei. O Morgado ficou este tempo todo guardado na gaveta, sem desejo de ir a lado nenhum. Porém, o desafio de ler uma história aos alunos da sala da minha (sobrinha) do meio, a Joaninha, fê-lo sair. E agora é que vão ser elas. É que deixá-lo aqui para os graúdos, é uma coisa, mas lê-lo, ao vivo e sem as cores das ilustrações, a miúdos de sete anos, é um desafio muito maior.

***

O Morgado era um cão especial. Não só por ser da mais pura das raças, mas também por conseguir farejar uma lebre a quilómetros de distância. Tinha o faro mais apurado que o caçador alguma vez tinha visto. Era o cão de uma vida e por isso era tratado com exceção. Não se misturava com os restantes rafeiros.

Não! Nem pensar!

O Morgado era o príncipe da casa. Comia na sala junto à mesa dos donos, dormia numa banqueta forrada a pura lã de ovelha e usava uma coleira de couro verdadeiro, com uma medalha de bronze, onde se podia ler o seu nome e a morada do caçador. Nunca se poderia perder, o Morgado.

Não! Nem pensar!

Das poucas vezes que saía de casa, parava um momento à porta, levantava a cauda bem alto, enchia o peito com a enorme soberba de um cão de linhagem e, só então, com o nariz empinado caminhava altivo por entre os dezassete cães rafeiros, sem coleiras nem medalhas. Sua excelência, o Morgado ia só arejar. Olhava com desdém as brincadeiras empoeiradas dos rafeiros e seguia o seu caminho, em bicos de pés, para não se sujar. Não estava ali para brincar com cães de pêlo cerdoso e patas cheias de lama.

Não! Nem pensar!

Aos domingos de caça os dezassete rafeiros de perna curta viajavam amontoados num atrelado velho e ferrugento, enquanto o Morgado seguia viagem, magnificamente instalado, numa manta felpuda colocada traseira do carro, onde dormia tranquilo durante a longa viagem até à floresta onde moravam quase todas as lebres do Universo. Só raras vezes levantava ligeiramente a cabeça e espreitava, arrogante, a balbúrdia que ia no interior do atrelado. Jamais se poderia ali imaginar.

Não! Nem pensar!

Durante a caçada seguia confiante na frente da matilha, de cabeça baixa, focinho rasteiro, e numa linha recta que só o Morgado, cão de raça pura e faro delicado, sabia desenhar. Os dezassete rafeiros seguiam-no em Ss desastrados, com a cabeça no ar e sempre a espiar o mestre que os havia de comandar. Os rafeiros não precisavam de farejar.

Não! Nem pensar!
O ilustre Morgado sabia muito bem para onde os levar.

Um dia, porém, aconteceu o que ninguém podia imaginar. O distinto Morgado deixou de conseguir cheirar, e o caçador furioso queria-o mandar matar. Mas a mulher ofendida, com tão monstruosa ideia, gritou de imediato:

- Não! Nem pensar!

O caçador, contrariado, obedeceu à mulher, mas nesse mesmo dia, tratou de o castigar. Arrancou-lhe a coleira com um puxão e atirou-o para a rua, dizendo:

- Aqui em casa, não! Nem pensar!

Os primeiros tempos não foram nada fáceis para o ilustre Morgado. Foram até de grande desgraça, o pobre Morgado levou tempo até se acostumar. Dormir ao relento não tem graça nenhuma, e é muito triste não ter com quem conversar. Os rafeiros, toda a gente sabe, são cães que só sabem ladrar. Mas o pior chegou no domingo seguinte em que foram caçar. Ia o ilustre Morgado trepar para o banco traseiro, quando o caçador gritou:

- Sai daí malandro! Esse já não é o teu lugar!
e chamou outro cão, dez anos mais novo e acabadinho de chegar:
- Anda daí, rapaz, o teu reinado está só a começar.

O Morgado teve de se convencer que era no atrelado que teria de se enfiar. Meteu o rabo entre as pernas e, ajeitou-se a um canto, com as beiças cheias de baba de um rafeiro a taparem-lhe o olhar. Desgraçado da vida o ex-magnífico Morgado, estava triste que doía, e quando viu o outro cão, todo aprumado, abrir um enorme bocejo do alto do seu ex-lugar, partiu-se-lhe o coração e desmanchou-se a chorar. Então e não é que um dos rafeiros, que o Morgado suspeitava só saber ladrar, de pronto lhe disse:

- Deixa-te disso! Queres brincar?

O Morgado não fazia ideia o que isso era. Em casa do caçador costumava passar o dia inteiro a relaxar. Mas disse logo que sim, afinal não custa experimentar. Aquilo é que foi um reboliço no atrelado. Os rafeiros estavam loucos de felicidade por terem o mestre Morgado junto deles. Pouco lhes importava se conseguia cheirar, ou se não conseguia cheirar. Mordiam-lhe as orelhas, puxavam-lhe o rabo, tudo com jeitinho para não o magoar.

Não! Nem pensar!

O atrelado fez o caminho num verdadeiro virote, a balançar para lá e para cá. Foi uma sorte não se virar. De início o Morgado não sabia o que pensar. Não era mau de todo aquilo da brincadeira, mas o mau hálito dos rafeiros era difícil de suportar. Enjoou um pouco ao princípio, mas estava tão entretido com a galhofa, que pouco tempo depois já não dava por nada. Aliás, a meio do caminho lembrou-se, que já nem sabia cheirar. O mau cheiro que sentia só podia ser obra da sua imaginação. Quem é que disse que os rafeiros cheiram mal? Deve ter sido o caçador que nem sabe farejar.
Assim que chegaram à floresta saltaram todos cá para fora num reboliço que só visto. Aquilo é que foi correr sem parar. Tinham quase todas as lebres do Universo para caçar e tinham que se despachar. Os rafeiros corriam que nem tontos de um lado para o outro como de costume e o Morgado seguia-os para os tentar imitar. No fim da caçada, com as patas enlameadas e as beiças cheias de baba de tanto brincar, o Morgado deitou-se na relva, ao sol, de papo para o ar.

A caçada tinha sido uma desgraça. Nem uma lebre para amostra. O cão novo, coitado, não estava habituado a caçar. Apesar de um faro bestial, faltava-lhe experiência para se saber desenrascar. O caçador furioso com o seu novo cão de caça que afinal não sabia caçar, chamou o Morgado para a traseira do carro:

- Anda velhote, sempre dás para remediar! Este desgraçado caríssimo não serve nem para....

O ex-ilustre Morgado nem o deixou terminar. Fugiu para o atrelado e gritou

- Essa agora... Nem pensar!

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Das gordas

Há palavras e palavras.
Há as que nos sossegam, as que nos exaltam, as que nos inspiram, há também as que respiram baixinho
- Já dormes?
Há palavras para todos os gostos e estados de alma. Até aqui nada de novo. Aliás, para mim, até hoje, nada de novo.
Procurava eu a definição de paladim num dicionário on-line quando, segundos depois de pressionar a tecla "enter", surge a seco no ecrã:

s.m.
o mesmo que paladino 

A rapidez da internet compreende-se, uma vez que não havia grande coisa para descarregar: duas letras, dois pontos finais e quatro palavras; uma a negrito e sublinhada - gorda de si mesma, com link directo para ela própria, enquanto a outra cujo significado é igual ao da gorda, continuava pendurada e infeliz, no topo da página branca, quase vazia, onde se banhava a gorda à vontade, fazendo-se acompanhar apenas dos respectivos cicerones que sempre tratam de anunciar personalidades importantes.
Não me debruçando sequer sobre o tema, porque é que paladim há-de ser o ovo e paladino a galinha, ou paladino o ovo e paladim a galinha - por mim estrelava-os aos dois - o que me surpreende é que, uma vez mais, a actualidade não soube adaptar-se à actualidade. Ou seja, nos tempos dos dicionários em papel, fazia sentido que estas remissões existissem, numa perspectiva de economia de recursos, ou simplesmente para evitar que a avó matasse o avô, arremessando-lhe o vellho Lello à cabeça. Nos tempos que correm, ninguém assassina ninguém com Bytes - não arremessando-os, pelo menos - por isso me custa compreender este anacronismo - palavra que, com um bocadinho de sorte, também há-de ser o mesmo que outra gorda qualquer a banhar-se no vazio.
Estas reflexões geniais acontecem-me geralmente durante o breve momento diário que dedico a cuidar da pele do rosto, e nada mais me ocupa a cabeça para além de "o creme de olhos aplica-se sempre no sentido da sobrancelha". Uma gorda está lá sempre, a olhar-me a partir do espelho, inquiridora. Eu não faço ideia qual o sentido da sobrancelha, mas sei a regra, sempre no sentido da sobrancelha, e isso devia contar para alguma coisa. Aliás, para não errar completamente, alterno gestos hesitantes em ambos os sentidos, e assim estou certa de acertar em, pelo menos, metade dos movimentos circulares. Mas não, a gorda é muito gorda, obesa mesmo, e quer mais, muito mais, quer tudo; quer que eu saiba a regra e que a saiba aplicar.
- Algumas pessoas são melhores com a práctica e menos boas com a teoria. - Murmura uma voz sumida - Já dormes?
Ou
- Algumas pessoas são melhores com a práctica e piores com a teoria. - Murmura uma voz sumida - Não dormes nada... Vá lá...
(Ou vice-versa em relação às habilidades teóricas e prácticas, que não consigo escrever tudo outra vez mas ao contrário, com esta gorda a olhar para mim.)
Hoje, para acalmar a gorda, disse-lhe baixinho com os lábios junto ao espelho
- Sossega, sou o mesmo que tu, vai lá buscar os cicerones e deixa-me em paz que eu tenho mais que fazer.  

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

...

Devolvo-te intacto o bem e o mal.
O bem que fizeste e o mal que nunca soubeste.
- Alto lá!
Parei-os à porta.
Não entraram.
Não lhes toquei.
Nem perdi,
nem ganhei.
Bem vistas as coisas, nem sequer gostei.

Devolvo-te intacto o amor que disseste, ser o nada que pudeste.
Segue inteiro,
sem selo, nem morada.
Sem destinatário ou hora marcada.
Há-de chegar.
Assim o leve o carteiro que desconhece, o peso que arrasta na calçada.
- Bom dia D. Otília.
- Como vai Sr. Manel?
- Com licença, meu senhores, vai andar o carrocel!

Devolvo-te intacto o bem e o mal.
sem princípio,
nem fim,
nem meio.
Segue tal como veio,
tudo de empreitada,
Segue tudo,
e afinal não segue nada.

sábado, 21 de setembro de 2013

Está aí alguém?

A vida não é amanhã dizia correndo sala fora à procura de ontem.
A vida não foi ontem dizia correndo sala fora à procura de hoje.
A vida também não é hoje dizia correndo porta fora à procura de agora.
Estás aí?
E já agora, está aí alguém? perguntava gritando porta fora sem poder ver ninguém.
Nem o pai
nem sequer a mãe.
Sem medo desarvorou rua fora à procura sabe Deus de quem.
Não perguntou.
Desarvorou.
Desarvorou gritando rua fora ninguém ninguém.
Desarvorou gritando beco dentro ninguém ninguém.
Sossegou gemendo beco escuro enlaçada em alguém.
Desenlaçou gritando beco fora ninguém ninguém.
A vida não é, pensou.
Se ainda fosse, havia de se deixar encontrar aqui ou além
Já foi, concluiu.
Desesperada correu vida fora gritando alguém alguém.
Exausta murmurou
Nem que seja um menino,
em Belém.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Só tu

Não tenho dúvidas, és tu.
Porque só tu para me fazeres rir das coisas sem graça, para além das que nos juntam em ilhas remotas de quatro patas no canto do café. 
Só tu.
- Já escolheram?
Quão remota pode ser uma ilha de quatro patas num café?
Tão remota, a nossa ilha.
Só tu para me arrastares em devaneios náufragos. 
Só tu para me levares onde for. 
Só tu para me apartares assim.
- E então, já escolheram?
Quão remoto se pode naufragar onde for?
Longe, muito longe.
Só tu para me conseguires assim, completa.
Já nem o empregado pergunta. Claro que escolhemos. Está bom de se ver que o pedido foi feito. 
A tua boca distante, inteirinha nos meus olhos. Os lábios mudos a escreverem encantos no ar, contos fantásticos, tesouros a dois, ilhas pernetas para que não se possam mexer... 
Tudo quieto depois de lá chegarmos. Âncora ao fundo e o mundo inteiro para nós.
Quão remota é a ilha onde se pode ancorar o mundo inteiro?
Demasiado remota para que se chegue com vida.
Só tu.

Diz-me, quantos tus para cá chegares?



terça-feira, 18 de junho de 2013

...

Hoje não quero mudanças.
Quero tudo como está, onde conheço que fica.
Quero coisas pesadas, de ferro ou de outras.
A mesa junto à janela aberta
A tesoura sobre a mesa
                                   debaixo da cartolina vermelha
Quatro caixas de lápis sem cor, uma em cada canto
                                   para que não lhe mexa o vento,
                                   na cartolina.
Quatro vezes trinta e seis cores de lápis, todas à janela
                                   para que as leve o vento
                                   ou o tempo.
Hoje quero coisas quietas do peso de mim.
Quero a tesoura onde a encontre
numa ordem pesada
numa leveza soprada
só lá mais para o fim.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

E o ouro vai para...

Sobrava-lhe tudo.
Satisfeita, um pouco feliz, estendeu o corpo no sofá. 
Quase todos os músculos relaxados, à excepção do braço esquerdo hirto, a amparar a cerveja pousada na barriga para que não se entornasse
A mãe costumava dizer-lhe que o cérebro também é um músculo, Há que treiná-lo se o queremos em forma. O cérebro é de facto um músculo. Soube-o com certeza no momento em que lhe saltou da cabeça a ideia de que, se lhe sobrava tudo, só podia ser por não lhe faltar nada. Só pode ter sido o cérebro a atirar aquela ideia cá para fora, ainda dentro da cabeça. O fora e o dentro é uma questão muito confusa pelo que prefiro não me alongar sobre essa matéria. Fique-se com a ideia de que não lhe saltou nada da cabeça para fora. Saltou-lhe apenas uma ideia de dentro para um dentro que é um bocadinho fora de algum lado, para que a rapariga pudesse sabê-la. Só pode ter sido o cérebro a tratar desse assunto, uma vez que todos os músculos estavam relaxados, e o que não estava, tratava de conservar a cerveja dentro da garrafa, que para um braço, ainda para mais o esquerdo, é tarefa mais do que suficiente para absorver a atenção por completo.
Está bom de se ver que a rapariga era dextra. E ainda bem. Se assim não fosse, se a rapariga fosse canhota, surgiriam dúvidas. Uma mão inábil não pode segurar uma coisa na vertical e acumular a responsabilidade de atirar cá para fora, que ainda para mais é um bocadinho dentro, uma coisa tão importante como uma ideia.
Aquela ideia não era boa, mas era importante. Duas características accionadas pelo mesmo motor: o desassossego. A ideia não era boa porque lhe roubara o sossego, e a ideia era importante porque lhe roubara o sossego.
Depois de provada a resposabilidade do cérebro no que respeita ao arremesso de ideias de dentro para dentro, e a sabedoria da mãe, restava-lhe o motor para a atormentar.
Desassossegada, saltavam-lhe ideias da cabeça para fora. Para fora mesmo, desta vez. Daquelas que se podem ler nos corpos agitados. A camisola até aos joelhos a tapar agora pouco mais do que a linha do umbigo, a cerveja entornada no tapete de um século antigo, e as ideias, atléticas, cada vez mais longe, cada vez mais improváveis na medida alcançada. Porém, nenhuma que desse o menor sentido à incoerência,
Sobrava-lhe tudo mas nem por isso não lhe faltava nada. 
Sobravam-lhe coisas que não sabia onde pôr, talvez num caderno, ou num silêncio - mas os silêncios dos próximos três meses já todos ocupados por coisas sem lugar -, e coisa nenhuma dentro dela. Só o vazio onde pairar uma ou outra ideia perdida, que o cérebro não chegou a conseguir atirar cá para fora, por apanhar a rapariga distraída.
A rapariga raramente se conseguia distrair naturalmente, por isso lhe custou tanto ver o tapete estragado, tão distraído, o sortudo. Mas o cérebro é um atleta olímpico, e para chegar a esse nível só com muita persistência. Mais cerveja menos cerveja, mais dia menos dia, acaba sempre por conseguir o que quer: milhares de ideias espalhadas por todo o lado e finalmente uma capaz de acalmar a rapariga sem roupa, nem tapete, nem cerveja. Uma marca memorável. Longe, longe. Quase nem era uma ideia de tão remota.

Ainda assim, jogo é jogo, por isso: medalha de ouro para a rapariga, o lugar mais alto do pódio só para si, e uma bandeira escura - qual vermelha, qual verde, qual armilar, ou amarela, qualquer coisa com "a" "m" e "r". Escura. -, içada no alto e vaiada por todos.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Isto não é para mim

          Perdoem-me mas definitivamente não nasci para isto.
          Para a vida, quero eu dizer.
          Agradeço do fundo do coração a oportunidade que me foi dada,
(prefiro falar na terceira pessoa, porque se me ponho a falar na primeira e na segunda, este texto acaba aqui mesmo. Não se pode não nascer para uma coisa que nos foi dada pelo pai e pela mãe.)
a sério que agradeço. Esta coisa do esqueleto, dos músculos e da gordura, dos aparelhinhos a bombar sangue e oxigénio para todo o lado, deve ter dado um trabalho do caraças. Acreditem que agradeço e, tendo em conta o vosso empenho e dedicação, até me esforcei, mas,definitivamente,
isto da vida não é para mim.
           Talvez tenha fracassado. Está bem, admito, fracassei, ou fraquejei, seja o que for, mas as pessoas fazem isso a toda a hora e não vem daí mal de maior ao mundo. Não se hão-de desalinhar os planetas apenas porque uma pessoa, que me calhou a mim ser eu, admitir, honestamente, que
isto da vida não é para mim.
           Ainda no outro dia o Carlos disse ao chefe que afinal aquilo de Inspector Geral não era para ele, e o mundo não descarrilou. Bem pelo contrário, emergiram de imediato variadíssimas forças vigorosas, de trás de variadíssimas secretárias bafientas, que passaram a tratar o Chefe nas palminhas e às palmadinhas, enquanto o novo Inspector Geral não foi nomeado. O Chefe ficou um bocadinho desapontado com o Carlos, é certo. E o Carlos ficou vagamente desapontado com o Carlos, é certo. Mas foi coisa que passou rápido. Velocidade essa que não teria sucedido caso ninguém se tivesse desapontado.
          E é por isto da velocidade e do desapontamento que digo, enquanto é tempo,
          Perdoem-me,
mas isto da vida não é para mim.
          Não digo que seja só defeitos, nem por sombras, já não tenho idade para intransigências. Tem coisas engraçadas, boas até, mas quando o turbilhão de néons diários se apaga, e se acende a escuridão da noite, quando as mãos buscam, trémulas, e não encontram nada, nem outra, quando o frio na barriga gela de perguntas, aí é que tudo faz sentido.
          Mas o sentido desistiu há muito, meus caros. Gritou para quem o quis ouvir que isto não era para ele, e ninguém se ralou. Por isso agora sou eu que digo,
perdoem-me mas isto da vida não é para mim.
          E não admito que se indignem, não vou sequer tolerar que o frio vos gele na barriga, ou na minha, de tantas perguntas.
          Mas quais perguntas?
          Na verdade, quais perguntas, rapariga?
          Conta-me cá, se o sentido voltasse, com o rabinho entre as pernas, e te dissesse baixinho,
          - Pergunta à vontade que eu respondo.
          O que é que fazias? Que sumptuosa pergunta terias para lhe fazer, rapariga?
          Nenhuma.
          A treta é essa; nenhuma. Nem uma.
          Tenho de admitir que assim é. Se o sentido voltasse, arrependido, agora mesmo, no preciso momento em que escrevo este queixume medíocre, não teria nada, nadinha, para lhe perguntar. O que me gela na barriga não são perguntas. Se o que me gela na barriga fosse,
- Como se divide afinal o átomo?
- Porque é que chove aqui  e não ali?
- Porque é que os leões hão-de ser carnívoros e não vegetarianos?
- Porque é que o Sol gira à volta da Lua, ou lá o que é? (Está bom de se ver que o que me gela não são perguntas)
estaria rica e seria o maior orgulho da segunda e da terceira pessoa. Porque quem se pergunta compulsivamente seja o que for, acaba por encontrar uma resposta.
          Se não tenho respostas, é porque não me pergunto.
          E assim sendo, o que me gela na barriga é um vazio imenso, é o roncar da vida a moer em seco.
          Por isso, agora que dei o flanco e admiti que isto da vida não é para mim, alguém pode perguntar ao sentido como é que o vazio chega a gelar? 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ouvia... via...via...

Daquela janela nada se ouvia.
E se ela gritava, oh se gritava
o mais que podia.
Pouco ou nada podia, a desgraçada.
Naquele beco, nem o gato fugia.
Sereno
surdo talvez
remexia, remexia
o lixo que por ali havia.

Daquela janela também nada se via.
Nem o beco
nem o gato
nem o lixo.
Por isso pouco interessava
o que em quem remexia.
Naquele beco para ela pouco ou nada existia.

Porque gritava então?
Se o mais que podia não se ouvia
e o mais que ela via era o nada que a perseguia?

Gritava porque só isso podia.
Queria lá saber se o gato
que talvez até fosse um sapato
não imaginava o que por ali se sentia.

O eco, esse sim, existia.
Oh se existia
oh se gritava gato sapato
no beco de uma alma cega
e vazia.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Três vivas ao Valium

          Eu já devia saber que uma pessoa deve estar preparada para tudo. Seja onde for, com quem for, ou em que circunstâncias for, eu já devia saber que qualquer coisa improvável pode sempre acontecer. A mim, quero acreditar que especialmente, acontece-me muito, essa coisa do improvável. Eu até gosto. Tanto de acontecimentos quanto de especialidades. E notem - antigamente usava reparem, mas a minha irmã usa notem com tal elegância, que não resisto a copiá-la no estilo - que não sou esquisita em sede de particularidades. Basta-me ser especial no que respeita a acontecimentos improváveis para ser feliz.
          Bom, mas dizia eu, que com esta idade já devia saber que se deve esperar tudo, mesmo tudo, de qualquer situação. Mas distraí-me e dei com os burros na água. Descurei o facto de que ir comprar cigarros à bomba a altas horas da noite, é uma situação, e o improvável aconteceu; fui apanhada de surpresa por uma operação stop de polícias sérios, daqueles altos e espadaúdos, sem bigodes nem braçadeiras vermelhas das brigadas de trânsito.
          - Boa noite senhora condutora, os seus documentos por favor.
          Teria sido bem mais inteligente da parte do senhor agente pedir-me um cigarro, porque isso eu tinha. Mas não, o tipo era demasiado atlético para fumar, por isso nem ofereci. Em vez disso, rasguei o sorriso mais amarelo que consegui, e constatei
          - Nesse caso temos aqui um problema.
          De imediato corrigi
          - Bom, na verdade quem tem um problema sou eu, bem sei. É que não os tenho comigo. Vim só comprar cigarros à bomba e deixei tudo em casa que é mesmo aqui ao lado.
          - Pois é senhora condutora, tem de facto um problema. Diga-me, em que ano tirou a carta?
          E é aqui que entra o meu torcicolo, mais especificamente o relaxante muscular que tinha tomado para o torcicolo, que começava por aquela altura a dar sinais claros da sua eficácia. É que os relaxantes musculares são uns bandalhos, relaxam tudo o que apanham pelo caminho, e não apenas os músculos que se pretende relaxar. Com a língua entaramelada, e a minha dificuldade genética para o pensamento matemático, balbuciei
          - Ora... três vezes três quinze e vai um... Não, não, espere, e vão dois... e assim sendo...1995, acho.
          - Senhora condutora, assim fica difícil.
          (O que me tira do sério que me esfreguem o óbvio na cara. Que está difícil sei eu. Já estava difícil em casa sem cigarros, quanto mais agora. É claro que estava difícil, caramba, e com tendência a piorar para o final da noite)
          - Lembra-se pelo menos de quantas perguntas lhe fizeram no exame de código?
          (Aquela pergunta matou-me. Especialmente por ter sido feita com a segurança de uma pergunta de rotina, daquelas que se fazem regularmente em situações idênticas à minha. Se me lembro de quantas perguntas tinha o meu exame de código? Estaria ele a gozar? Mais números? Quantas perguntas? Seria a resposta um número de tal forma memorável  que todos os condutores deveriam lembrar-se da resposta? Sei lá, um número tipo três perguntas e meia, ou sete perguntas e dois terços?)
          Graças a Deus consegui guardar este pensamento para mim. Duvidei por momentos das minhas habilitações para conduzir, e, trémula de receio e relaxamento químico, respondi
          - Francamente não faço ideia.
          O senhor agente, indignado por eu não saber a resposta a tão ilustre pergunta, abanou a cabeça em sinal de reprovação e disse
          - Isto assim está mau, senhora condutora. Que categoria de licença para conduzir é que tem?
          Tenho de lhe fazer justiça, esta era uma pergunta razoável. Qualquer condutor, em condições normais, deveria saber responder sem hesitação. O problema é que as minhas condições eram tudo menos normais. Eu era naquele momento uma condutora muscularmente relaxada - por indicação médica, note-se - e acolchoada por um fato de treino coçado, por cima de um pijama de inverno. A parte boa é que tínhamos passado dos números às letras. Tanto quanto o meu cérebro distendido pelos fármacos podia recordar, as categorias da carta de condução eram letras. E maiúsculas.
          - Categoria? Sim, claro, categoria. Ora... A?
          - ...
          - L?
          -... + ... + ...
          Vá lá, senhor agente, deixe-se de contas. Está bom de se ver que não sei que porra de letra hei-de pronunciar. Só sei que é maiúscula. Nisso acertei. Já é qualquer coisa. É a dos carros, caramba! O que é que este veículo lhe parece? Um triciclo? Não é um topo de gama, é certo, mas está bom de se ver que é um carro, não? Sejamos sérios, senhor agente!
          Uma vez mais consegui refrear a fúria a tempo, e dei o peito às balas
          - Tenho de ser honesta. Não faço ideia que letra é. Mas sei que a carta é cor-de-rosa. Para uma mulher não está mau, certo?
          Infelizmente o tipo não tinha ponta de humor e dei por mim solitária, acompanhada apenas pelas minhas gracinhas sem piada nenhuma, enfiada num único carro minúsculo, rodeado por vários carros enormes fortificados, e por vários agentes mascarados de ninja. Temi passar a noite na esquadra, torturada com sacos cheios de laranjas, até esgotar o alfabeto e acertar finalmente na letra correcta. Rendida, deixei cair a cabeça para a frente - ou ela caiu de relaxamento, não me recordo - e com a testa apoiada no volante  dei de caras com os meus sapatos ténis a vomitarem refegos das meias grossas de andar por casa. De tão descontraída - já nem o pescoço me doía - só consegui preocupar-me com o insignificante: não acredito que vou dentro nesta figura.
          Para grande surpresa minha, o senhor ninja mandou-me seguir. Não tinha humor, é certo, mas tinha um coração enorme. Ou isso, ou um torcicolo do caraças.

terça-feira, 21 de maio de 2013

A rapariga, a lebre e a tartaruga.

Tempos houve em que a rapariga desejou ser única.
Depois disso,
tempos houve em que acreditou ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que foi, de facto, única.
Ainda depois, 
tempos houve em que voltou a desejar ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que deixou de acreditar ser única.
Ainda mais depois, 
tempos houve em que voltou a acreditar ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que foi uma profunda idiota, que é como quem diz, 
imagine-se, 
tempos houve em que foi uma profunda idiota.
Mas a rapariga, apesar de profundamente idiota, até era esperta
e decidiu nunca mais desejar ser única
e nunca mais acreditar ser única.
Lamentavelmente continuou a ser única.
A única idiota inconformada do mundo inteiro.

Moral da história: 
A lebre é única e esperta. 
A tartaruga e a rapariga também, que é como quem diz, 
somos todos iguais, a merda é a meta.

terça-feira, 14 de maio de 2013

E eu sei lá que raio de título esta coisa há-de ter.

Os post-its têm-se revelado uma fonte inesgotável de inspiração, ou lá o que é, na minha vida. 

Ainda no outro dia estava eu para ali sem nada para fazer intrigado com o nada que não me cabe na cabeça não se faça sozinho e vai daí lembrei-me dos post-its sem conseguir estabelecer um encadeamento lógico de raciocínios pensamentos ou delírios que me pudessem ter levado aos quadradinhos amarelos que no meu caso ultimamente têm sido mais rectângulos cor-de-laranja ou azuis ou cor-de-rosa porque são os que se vendem no chinês mas que para o caso servem tão bem como os outros pelo que dizia eu estava ali sem nada para fazer e o nada sem maneira de me entrar na cabeça que precise de ser feito que não se consiga fazer sozinho e vai na volta post-its.

Foi assim mesmo. Sem avisar. De um momento para o outro vem-me à cabeça o desperdício que é um post-it.

Não é preciso pensar muito para concluir o desperdício de cola e de papel que para ali vai num quadradinho ou rectângulo tão pequenino num bocadinho tão reduzido de papel que impressiona possa conter em si tanta negligência daquilo que são afinal os recursos de todos e não apenas dos chineses portugueses ou marqueses que os vendem e decidem que um quadradinho ou rectângulo de papel que alguém vai querer colar nalgum lado para deixar algum recado se pode fabricar com uma quantidade tão pequena de papel e uma quantidade tão pequena de cola que afinal não servem para colar nem para deixar recados seja em que lugar for ou que tipo de recados venham a ser que afinal não são mais do que confetis para se atirarem ao ar em festas chinesas portuguesas ou marquesas regadas com o melhor champanhe comprado com o dinheiro de quem levou para casa uma coisa sem saber que estava a comprar coisa nenhuma porque afinal a cola não cola como deve e o papel não papela como deve porque se devesse ficaria colado e não fica e os recados a meio e a voar e a mãe sem saber que o pai não vai chegar e o pai a achar que a mãe sabe e o pai sem sequer imaginar que a mãe chora por não saber onde anda o papel ou onde anda o raio do homem que não deixou recado e se deixou seguramente o fez num papelinho rectangular que a esta hora está com certeza  a levar o recado onde o vento o levou e não ali no banco da cozinha onde a mãe não se cala de desgosto.

Se o pai não soubesse que os post-its não são de confiança não o teria deixado ali, com medo que a mãe soubesse a verdade e chorasse. Se o pai não soubesse que os post-its não são de confiança, teria deixado recado nenhum na porta do frigorífico, para que a mãe chorasse por culpa de outra pessoa que não ele. Os pais têm uma inteligência do caraças. 

Infelizmente a mãe não faz ideia do desperdício que pode conter um minúsculo pedaço de papel apesar de um dia eu a ter avisado mas isso foi na altura em que nem eu sabia o perigo que é usar uma coisa que desperdiça tantas outras e só por isso a avisei naquele papelinho que por esta altura está com certeza  a avisar as pessoas que moram onde o vento levou o papel e se ao menos não houvesse vento não seria a minha mãe chorar não é justo que a família para onde sopra o vento tenha tudo tenha um papelinho a avisar que o papelinho é uma desperdício e tenha outro papelinho que é um desperdício a avisar que o pai não vai voltar hoje nem nunca e a outra mãe da outra família desconfiada porque se o marido sabe que o papelinho não é de confiaça porque como já vimos não se pode confiar numa coisa que desperdiça tantas outras então por que raio havia de lhe deixar um papelinho daqueles a dizer que não vai voltar mais e por aí adiante até onde o vento levar papelinhos.

Enquanto houver vento todas as famílias hão-de andar num alvoroço por conta dos post-its que mais parecem confetis.

E por culpa de tanto alvoroço estava eu para ali deitado sem nada para fazer louco de curiosidade para saber porque raio o nada há-de insistir em ter quem o faça quando afinal basta ficar quietinho para que apareça feito basta ficar quietinho para que todas as mães chorem desalmadamente e para que todos os pais corram deslamadamente não há alma em coisas que não são o que dizem ser para longe do choro que afinal não é culpa sua porque o pai sabia muito bem que os papelinhos não são de confiança e a mãe é que não prestou atenção quando o filho lhe disse que os papelinhos não prestam a mãe é que não quis ouvir o que o filho lhe disse por isso no fundo a mãe até merece ficar para ali desvairada a bramir como uma cabra tresmalhada enquanto eu ali deitado quieto sem nada para fazer lixado da vida por me ter esquecido de perguntar ao pai como é que se faz o nada afinal. 



 

sábado, 27 de abril de 2013

Esplanada

Ao Nuno e ao gin

Um pombo arrulhava uma fêmea a escapar
a fêmea dançava com o pombo a arrulhar
parecia fugir
mas aquilo era dançar
e o pombo inchado seguia a cantar

É garganta, coitado, disse o doutor
não senhor
repare bem no estupor
está bom de se ver
que aquilo é só amor

A senhora mandou pôr um bife a grelhar
o empregado perguntou como o ia desejar
bem passado, com certeza
respondeu a olhar
a dança do pombo
no chão a chamar
a fêmea que corria
sem sossegar
e o pombo a inchar, a inchar...

Enervada
a senhora mandou pôr os pombos a andar
o empregado perguntou se a estavam a incomodar
sim, com certeza
disse quase a soluçar
não tanto pelos pombos
pobres criaturas
o que a estava de facto a maçar
era aquela dança toda
inteira só de um par

Chegou um cavalheiro
e sentou-se a almoçar
estendeu-lhe um lenço branco
pra que se pudesse assoar

Arrulhada
a senhora conseguiu sossegar
não tanto pelos pombos
pobres criaturas
que seguiam a amar
naquele caso
para sempre o mesmo par

terça-feira, 23 de abril de 2013

...

Não tenho medo da morte,
só do escuro.
Não tenho medo da morte,
só do fim.
A morte é escura?
E é no fim?
Não tenho medo da morte,
só do medo,
e do escuro,
e do fim.
Se eu jurar ter medo da morte,
acendes a luz no final, por favor?

Vida selvagem

Era uma vez um leão medricas
que caçava,
e búfalos.
Era uma vez uma andorinha sem asas
que voltava,
e na Primavera.
Era uma vez um falcão cegueta
que mergulhava
a pique,
e sem medo.
Era uma vez um tubarão sem dentes
que recusava comer anémonas,
ou mexilhão.
Morreu de fome, mas morreu tubarão.
Era uma vez um homem com tudo
que não caçava
nem voava
nem voltava.
Era uma vez um homem com tudo
que tinha medo
de .alturas
     alturas
     alturas
     alturas
     alturas
Era uma vez um homem com tudo
que não pôde morrer de fome.
Veio um tubarão sem dentes,
e comeu-o.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

...


Que absurda esta ideia serena de não precisar
Que serena esta ideia absurda de me bastar
Não esperar
ir e chegar
Não perguntar
saber e achar
Rir, rir, rir
rir sem parar,
nem para chorar

Que serena esta ideia absurda de me bastar.
Absurdo não é um cavalo alado
é um pardal a voar
Absurdos são os dias,
a passar

Absurda,
devaneio para longe num cavalo alado
nunca num pardal a voar
Nunca num pardal pequenino que me rasa a assobiar
e eu desperta, a olhar
Ninguém devaneia só a olhar

Diz-me pardal, querias andar?
Que absurdo, claro que não
O pardal só quer voar
qual andar?

Diz-me pardal, querias sonhar?
Que absurdo, claro que não
O pardal só quer dormir
e acordar
Dormir
e acordar

Que absurda esta ideia serena de não precisar
Que serena esta ideia absurda de me bastar
Absurdo é o ar
Tudo ar
Até esta ideia absurda de ser só começar.

Diz-me pardal, querias ser só começar?
Que absurdo, claro que não
O pardal começou, e agora, naturalmente,
quer acabar

Devaneio para longe num pelicano
Nem acordada nem a sonhar
Nem cavalo alado nem pardal a voar
Absurdo é um pelicano sem graça
todo bico e ossos, todo triangular
conseguir sequer planar

Que serena esta ideia absurda de não acabar
Vês mãe, é só abrir os braços e planaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar

terça-feira, 2 de abril de 2013

da gravidade

Uma força maior segura o Universo
Nada cai 
tudo se atrai 
Tudo se acha no lugar certo
onde a força esmorece 
e se abandona
ao equilíbrio necessário das coisas.

Uma força grave atrai os corpos
numa dança constante, de embalar
A Lua encanta o mar
e ele vai 
e vem
eternamente, sem parar

Soubesse eu nadar
Ia e vinha
eternamente, sem me cansar
Acredita, nenhum corpo se cansa
Repara ao fundo
até Plutão dança

Soubesse eu dançar

Descansa
Uma força maior segura o Universo
Nada cai 
tudo se atrai 
Tudo se acha no lugar certo
onde a força esmorece 
e se abandona
ao equilíbrio necessário das coisas

Eu aqui
tu aí
Não me ampares
nada cai
Descansa
tudo se atrai
O que entra
e o que sai
Tudo se equilibra
Tudo se harmoniza
Por isso peço-te, vai.

Descansa
Uma força maior segura o Universo
Chamam-lhe gravidade 
mas acredita, não é verdade
O que enche e vaza a maré
é a dança eterna
que eu dançava
se ao menos soubesse nadar
se ao menos aqui houvesse pé


segunda-feira, 1 de abril de 2013

A mentira pequenina


A mentira pequenina,
mesmo a mais magra e franzina,
é a mais pura ilusão.
medida de ponta a ponta,
dá sempre a mesma conta,
demais para o meu coração.

Se o meu coração não chega,
se em tamanho se nega
não te rales por favor.
Não há milímetro falhado
grande pequeno ou errado
que me afaste deste amor

Mesmo sabendo que mentes,
pouco importa o que sentes,
se o fizeres a meu lado.
Mentira é verdade doce
verdade que se assim não fosse
já nos teria acabado.

A mentira pequenina
Loira ruiva ou moreninha
não é pecado mortal
medida de ponta  a ponta
dá sempre a mesma conta.
E a conta vale o que vale

quinta-feira, 28 de março de 2013

Bacteriano, ano, ano...

Abaixo os caucasianos os negros e os marcianos
Abaixo os hispanos e os açorianos
Abaixo os humanos
Promíscuos ou puritanos
sensatos ou levianos
Abaixo fulano e sicrano 
Decapite-se beltrano.

Abaixo o pensamento freudiano
o idealismo kantiano
o estilo camoniano
Descarte-se o cartesiano
qualquer raciocínio humano
melhor ainda
descarte-se tudo quanto é humano
até o Ser
Não há questão
É tudo um engano
Um engano
gano
gano...
Um engano galopante
Bacteriano
ano
ano...

Abaixo o engano e o desengano
Não
abaixo apenas o desengano
Abaixo o pobre bichano
mas... mas...
Abaixo tudo, até o pobre bichano!

Abaixo o canto gregoriano
(só o canto)
Abaixo o sagrado 
Abaixo o profano
Abaixo o feixe hertziano
Abaixo o Polo Norte
e o Sul
Expluda-se o Meridiano
e de caminho
o comboio interurbano.

Aparem-se as pernas ao gigante
ofereça-se um banco ao  liliputiano
Ponha-se tudo mediano
Mediano
ano
ano...
Engano
Pequeno, grande, mediano
tudo um engano
bacteriano
o quotidiano
ano
ano
ano...

Ressuscite-se Fleming
ou então
Desça-se o pano, desça-se o pano.
Risque-se um fósforo
e ligue-se o gás butano.


sábado, 23 de março de 2013

Soi-vivant

- Voullez-vous, Monsieur Camus, épouser Mademoiselle Cunha?

Ele, por estar, soi-disant, morto, não respondeu.
Eu, por estar, soi-disant, viva, disse sim.
Permiti-me a ousadia por estar quase certa de que, se estivesse, soi-disant, vivo, diria o mesmo que o Estrangeiro disse a Marie:  que não lhe fazia diferença e que poderíamos fazê-lo se eu quisesse.

Casámos e, soi-disant, vivemos, soi-disant, felizes para sempre.


domingo, 17 de março de 2013

Domingo

Uma pessoa sabe que é domingo quando
Uma pessoa sabe que é domingo quando
(Quando a Graça leva o cão a passear às dez e não às sete?)
Uma pessoa sabe que é domingo quando a Graça leva o cão a passear às dez e não às sete.
Que dia é?
Que horas são?
Uma pessoa sabe que é domingo quando
Uma pessoa sabe que é domingo quando
(Quando o teu pé levezinho no meu levezinho às dez e não às sete?)
Uma pessoa sabe que é domingo quando o teu pé levezinho no meu levezinho às dez e não às sete.
Que dia és?
Que horas tens?
Quantas gramas* o teu pé?
Pouquinhas.
Uma pessoa sabe que é domingo
Uma pessoa sabe que é domingo
Ah foda-se, uma pessoa só sabe que foi domingo quando já é segunda.
Ou
Ah foda-se, uma pessoa sabe que é domingo quando ontem foi sábado
e o cão da Graça já morreu ó pé de chumbo.

* Relembrou-me um amigo, e bem, que grama é masculino. Vá-se lá saber porquê, este é um erro meu recorrente. Mesmo sabendo que é homem, grama sai-me sempre mulher. Obrigada, Carlos, corrige-me sempre sem constrangimentos.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Cancelamento

Decidi hoje, agora.
Vou parar de respirar.
Sem circos nem foguetões
cordas, quedas, camiões
comprimidos empapados
em álcool,
desgraçados.
Não quero cá depressões
nem tão pouco embriões
de aflições.
Vou limitar-me a parar,
de respirar.
Sente-se a senhora do canto
o senhor aqui da frente
e sente-se o menino também.
Prendam os cãezinhos na trela,
e já agora,
alguém segure a minha mãe.
Perdoem-me se compraram bilhete
o espectáculo prometia, bem sei.
Mas não estou pra confusões,
desordens ou multidões.
Assobiem se quiserem
estão no vosso direito, senhores.
Ainda assim,
já não vai haver quem ria
nem chore.
Já não vai haver magia
ou folclore.
Gritem bravo se entenderem
não é caso para menos, senhores.
Porque assim,
já não vai haver quem via
as cores
com eu as sabia
todas pretas, de cor.

quinta-feira, 7 de março de 2013

...

Era todo ele redondinho.
Visto ao longe
perfeito
pequenino, pequenino.
Parecia um berlinde malhado
de uma só cor
um azul meio encarnado.
Mergulhei a pique.
Quis enfiá-lo no bolso.
Era afinal um colosso
nem direitinho nem azulado.
O mundo ao perto
não me cabe no peito
não assim de uma só cor
branco escuro
imperfeito.

segunda-feira, 4 de março de 2013

A ferida

Tinha uma ferida
que só ela sabia
existia.
Lá dentro
como doía
a ferida
vazia.
De tanto que doía
crescia, crescia, crescia.
Assim tão grande
jamais podia
ser apenas o nada
que ele lhe dizia
se via.
Cresceu tanto a ferida
que às tantas
já não lhe servia.
Quase nem doía.

sábado, 2 de março de 2013

Tudo é amor (remasterizado)

Estou zangada com o Mundo, e acho que é recíproco.
Tenho razões de sobra para acreditar, que também ele está zangado comigo.
Não o culpo.
Na realidade sempre preferi a Lua.
O Mundo, ciumento, ressentiu-se, claro.

Posso pedir-te desculpa por gostar mais da Lua, mas não posso deixar de gostar mais da Lua, entendes?
Posso dar-te tudo aquilo que está ao meu alcance, mas não te posso dar aquilo que não me pertence.
E isso, é dar-te Tudo, compreendes?

Espero que me ames de volta, mesmo dando-me apenas tudo aquilo que tens para me dar. E que aproveito para te dizer, caro Mundo, andas a distribuir mal os presentes.

Ainda assim, se é tudo, agradeço-te.

Entretanto, 
enquanto espero que o teu tudo cresça,
vou continuando a preferir a Lua, e a dar-me eu tudo a mim.
Porque esse tudo, é o único que posso fazer crescer.
No fim da linha, esse meu tudo que tenho para me dar, é o único em que posso confiar.

E mesmo sabendo que fazer um tudo TUDO
(ainda que tratando-se do tudo de mim para mim)
é difícil,
esse, pelo menos, eu posso engordar.
Os outros, dependem, lá está, dos outros.
E os outros, têm outros tudos para alimentar.

Por isso, por amor de Deus, pára de te queixar!
Estou despida, não vês? Vazia, não sobrou nada...
Nem uma tanguinha para me tapar as vergonhas.
Está um frio do caraças e dei-te tudo o que tinha.
E dar-te Tudo, é amor.

Por isso, cala-te e aguenta-te com esta:
Amo-te, mas gosto mais da Lua.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A dúvida

Não sei se é talento ou desalento
esta coisa que me sobra cá dentro.
Na dúvida, não me sento.
Porque se me sento, rebento.

Não faço ideia se é uma coisa ou outra
mas mais do que o medo do desalento,
ou o pavor do talento,
o que me consome é a dúvida,
cá dentro.
E eu deixo.

Deixo porque enquanto me consome a dúvida
não me destrói o talento,
ou o desalento.
- Ai como dói o desalento de uma tão grande falta de talento.
Ou
- Ai como dói este enorme talento, para o desalento.

É isso.
Bom, talvez seja isso, não sei.
E reparem que não perguntei.
Afirmei.
Não sei se é talento ou desalento.
Ponto final.

Enquanto a dúvida permanece, não é uma coisa nem outra.
E é na dúvida eterna que encontro o meu sustento.
Mas a dúvida só cresce se a alimento...
Por isso reparem na dúvida que afirmei:
não sei se é talento ou desalento.

- As dúvidas não se afirmam, perguntam-se.
Diz logo alguém.
(Há sempre quem responda ao que não se perguntou)

Mas será que falo para ninguém?
Diz-me, eu perguntei? 
Não perguntei.
Afirmei.
Não sei se é talento ou desalento.

Na dúvida nem tento.
Com sorte não é uma coisa nem outra
é apenas isso mesmo,
uma crosta que cresce cá dentro.

E quem foi que a deixou aqui
bem ao centro?
Quem foi que a deixou neste lugar maldito
onde as feridas se alimentam
imagine-se,
a fermento.

Eu não fui com certeza.
Eu que nem me aguento,

Aguento, aguento...
Claro que aguento.
Vou aguentando o tempo.
Até o alimento.
Porque sei que esta crosta, este cinzento
há-de finar-se comigo cá dentro.
E sem sustento,
sem a dúvida que me dá alento
aí sim,
juro que não aguento.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Aforismo obeso

Visitar uma feira de arte é assustadoramente semelhante a uma ida ao McDonald's. Nunca temos a certeza absoluta de estarmos , de facto, a comer um hamburguer

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Juro


Juro.
Não fui eu.
Eu nem sequer era eu
no dia em que ele morreu.
Eu nem sequer era eu
na hora que ele escolheu.
Eu nem sequer era eu
quando ele se perdeu.
Juro.
Eu era tão pouco eu
que quase me sucedeu.
Eu era tão toda sua
e ele era tão pouco meu
que por certo nem morreu.
E se morreu,
Não fui eu.
Porque eu nem sequer era eu
Quando tudo aconteceu.
Aliás,
Eu nem sequer era eu
sempre que me apeteceu.
Juro.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

As lavadeiras não choram

Era uma coisa urgente
tão elegante e premente
que ninguém a quis deixar.

Era tão eternamente
que a coisa elegantemente
se deixou anunciar.

A eternidade é frouxa
é coisa doente em trouxa
que se acaba por lavar.

A elegância já era
se é que foi nalguma terra
coisa que se pudesse chorar.

A tempo veio a lavadeira
de Caneças à boleia
até mim a assobiar.

Assobia minha linda
que esta coisa urgente ainda
te há-de pôr chorar.

Não houve cá choradinho
viu o tanque tão cheiinho
que pensou:
chega e sobra prá lavar.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Higiene oral

O que fazer com a realidade?
Uns recusam, outros abusam, eu mastigo.
Tenho uma dentição do caraças.
Já em miúda, sempre que ia ao dentista, o meu marfim, ou lá o que é, era generosamente elogiado, e a minha mãe também.
- Sim, senhora, isto é que é uma boca bem cuidada.
Obrigada, mãe, por todas as palmadas que me infligiste quando não queria lavar os dentes. Talvez abra uma excepção para o dia em que fui apanhada a fingir a escovagem, batendo violentamente com a escova no copo.
Tinha-te custado alguma coisa acreditar que aquilo era o som de uma piralha furiosa a lavar os dentes?
Não ouviste o que disse o dentista, mãe? Tenho uma dentição do caraças!
Era preciso abrires a porta da casa de banho num repente, e surpreenderes-me na mentira com uma palmada sonora na bochecha desnuda?
Aquilo doeu, caramba. Na nádega, e na alma.
Custava-te muito teres-me deixado acreditar que era muito espertinha?
Achas bonito destruir assim a crença de superioridade de uma miúdeca?
Não achas que a vida viria a ensinar-me isso mais tarde? Seguramente muito a tempo.
Tinhas de ser tu, minha mãe, a fazê-lo?
Mas tudo bem... Eu aguento.
Expurgado o meu trauma no que respeita  a descobertas precoces, a verdade é que tenho uma dentição do caraças e antes dos 90 ninguém ma tira. Depois não faz mal, não são precisos dentes para comer Cerélac.
Até aos 90 vou continuar a mastigar a verdade com a magnífica dentição que a sorte me deu, e que a minha mãe soube preservar. Bifes da parte da cabeça? Venham eles, desde que sejam bifes. Pastilhas Gorila (ninguém me tira da ideia que também são da cabeça. Duras de dar dó)? Chutem. Acabo com elas num ápice, até se desfazerem na boca numa consistência de pasta dentífrica.
- Mãããããããe... mmm m mm, mmm... (isto sou eu a pedir um lenço de papel à mãe para cuspir a pastilha)
Agora a sério, mandem vir tudo, do mais rijo, que eu mastigo. Mastigo, mastigo, mastigo... Junto mais um bocadinho de saliva e mastigo, mastigo, mastigo... Até ficar molinho, bem molinho. Só tem de ser verdade.
Cada um tem as suas manias, e eu gosto de uma laranja que saiba a laranja, mesmo não sendo fã de citrinos. Mas não me venham com essas modernices de carapaus que sabem a sardinhas. A sério, não acreditem na ingenuidade dos carapaus. São tramados, os tipos. Um momento de distracção e ali estão eles, elegantemente deitados na banca de mármore, os olhinhos semicerrados, tão pequenos como os das sardinhas, a barriga encolhida e os joelhos flectidos para o tamanho não levantar suspeitas. Tão matreiros que num instante
- Dois quilos, por favor.
Dois quilos que quando desensacados em casa, parecem quatro. Os malandros de barriga espraiada novamente, e um monte de olhos, enormes, a rirem-se da nossa imprudência.
Têm sorte estes carapaus. Se tivessem tido uma mãe como a minha, apanhavam uma palmada na hora.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O grau lógico da dificuldade

Alguma coisa está muito errada nisto tudo, e eu acho que é bem capaz de ser a vida.
Nem sequer a morte. A vida.
Se assim não fosse os consultórios de psicoterapia (para os mais valentes) ou de coaching (para os mais tímidos) não estariam inundados de pessoas aflitas, nem o mercado farmacêutico prosperaria como prospera.
Depois de alguns anos de reflexão solitária, outros tantos de psicoterapia (nunca fui uma rapariga tímida) e mais recentemente aliando a primeira à segunda, chego à brilhante conclusão de que muito provavelmente estoirei dinheiro a mais na resolução da consequência em vez de me concentrar na resolução do problema.
Não é fácil  chegar à meia idade e ter como única conclusão provável:
- O problema é a vida, caraças.
Tantas horas perdidas no divã, tantas noites usadas em camas erradas, tantas noites passadas na cama certa, e ainda assim, em claro. Tanto tempo desperdiçado à procura de uma solução para a consequência.
Reitero aqui o que já tantas vezes disse anteriormente: a matemática não é o meu forte, e talvez por isso, nem os problemas, ou tão pouco as soluções.
Jamais poderei esquecer a tarde em que se desenhou, a caneta de feltro, de modo definitivo, portanto, a prova irrefutável da minha inabilidade matemática. Era já de si uma tarde penosa. corriam os tempos da adolescência (e como corriam, graças a Deus, para bem longe da não idade) e a tarde era igual a todas as outras desses tempos: uma corrida desenfreada não se sabe muito bem para onde, dois passos à frente de uma multidão de inquietações, dúvidas, algumas certezas... Talvez até certezas a mais. Todas erradas. Tão erradas como dois mais dois não serem cinco. Dizia eu: corria mais uma dessas tardes extenuantes, enquanto aguardávamos, encostados à parede, a chegada da professora de matemática que haveria de trazer a chave da sala, e pior que isso: as notas dos testes. Só eu sorria, só eu. Sempre fui óptima a sorrir enquanto corria, desesperada, mas naquela tarde, imagine-se, sorria de contentamento. Não mais do que isso, não se é feliz na adolescência, não me venham com tretas. Mas dentro das limitações impostas pelos tempos, sorria, de contentamento. Sorria porque estava certa de que o teste de face, pousado no braço da professora, seria o meu, com um vinte redondo, a vermelho, no canto superior direito.
Talvez tenha exagerado quando falei da possibilidade de contentamento na adolescência. A certeza do exagero tive-a quando a minha nota miserável chegou no meio de todas as outras notas igualmente miseráveis. Um sete, sobre vinte. Nem sequer um sete sobre vinte no princípio ou no fim da entrega dos testes. Nem sequer um sete sobre vinte acompanhado de alguma consideração (podia nem ter sido elogiosa, desde que fosse consideração) da professora. Um: Ana Sofia sete sobre vinte ponto final. Levantei-me, numa dificuldade de gnu acabado de nascer: as pernas enormes e estreitas, os joelhos a tentarem descobrir a forma de assegurar o enfiamento correcto da parte de cima com a parte de baixo das pernas, um miúdo irritante a pressionar a mola na parte de baixo do boneco, e o boneco, sem alternativa, ajoelhado perante o poder incontornável do polegar do sacana do miúdo. Corri para a vida o mais rápido que pude, arranquei o teste das mãos da professora que já olhava o teste seguinte e se preparava para chamar a próxima vítima, e saí porta fora num pranto descabido para o entendimento do resto da turma..
O problema não era o Ana Sofia sete sobre vinte ponto final, o problema era o Ana Sofia absolutamente convencida de que não tinha falhado nem uma única pergunta no teste de Lógica, e afinal falhou quase todas. E mesmo as poucas que acertou, só podiam ser fruto da sorte. É tramado dar-mo-nos conta de que a lógica que julgávamos certa, é afinal, errada, mesmo que essa lógica seja a matemática. Uma conta de somar errada pode ser explicada até se conseguir certa, mas uma lógica errada é difícil remediar, senão impossível, de desmontar. E eu estava tão certa daquela lógica, tudo fazia um sentido desmedido, o chapelinho que é "e", o chapelinho de pernas para o ar que é "ou"... Que lógica tão certa teria eu conseguido enfiar na cabeça, para ser, afinal, errada. Ou antes: que cabeça era essa em que tinha cabido uma lógica absurda aos olhos dos restantes 13 valores que me faltaram para ter a lógica certa na cabeça certa?
Nunca recuperei daquela tarde, mas também nunca me esforcei por tentar compreender outra lógica. Aquela servia-me perfeitamente, ainda que não para a nota desejada.
Toda esta conversa para vos fazer acreditar na minha real e comprovada incapacidade para lidar com conceitos matemáticos, na esperança de que daí advenha alguma compaixão pelo meu foco na coisa errada.
Tendo em conta as minhas características talvez a meia idade não seja demasiado tarde para chegar à conclusão de que
- O problema é a vida, caraças.
O problema não é ser difícil aceitar que as coisas são como devem ser, não é aceitar que se queremos amar alguém, por exemplo, devemos deixá-lo ir e esperar que volte. Se é difícil, mesmo na certeza de que voltará, é porque está errado. Não é suposto ser difícil. Se vou experimentar um sapato e custa a entrar, é porque é o sapato errado, do tamanho errado, ou do pé errado, ou do modelo errado. A solução não é enfiar o pé a todo o custo, esfolar o dedo mindinho, amputar o dedão. A solução é procurar outro sapato. Ou comprar um par de ténis.
A merda é que nestas coisas da vida só há a morte, ou seja: a vida sem sapatos.
O que é difícil, está errado, essa é pelo menos a minha lógica.
E como agora que estou mais velha (ou feliz. Talvez seja isso, feliz) já não vejo grande romantismo na morte ou em pés descalços, vou andando, contrariada, é certo, com os sapatos nos pés trocados, até que alguém invente uma porra duns ténis para resolver o problema.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Variações em dor maior

Amor, diz o doutor,
sem pudor.
Amo, mas não posso, senhor.
Replica,
com rubor.
Amor, amor... Grita o doutor,
como grita
por favor
de pavor
o doutor.
(Ai o amor, o amor...)
Amor-te, doutor.
Só isso posso,
esse fervor defensor,
assim sem cor.
Amor-te, senhor.
Quem se há-de opor?
A morte, senhor,
por favor,
sem dor.

Ai o amor, o amor...
Nem um doutor,
curou a Leonor.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Run, Forrest, run...


Sempre que faço anos - a começar este ano - regresso a esta foto. Não por me apetecer um banho de rio em Janeiro, mas por ser uma imagem de fé e, modéstia à parte, de coragem. Acreditem meus caros, precisei tanto de uma como de outra em doses generosas, para confiar o corpo inábil a uma bola vermelha.
Escusas tu, minha irmã, de vir com a teoria da tanga de que naquele pedaço do rio dos avós a água nos dava apenas pela cintura. Sabes bem que naqueles tempos a minha cintura era coisa rasteira, pelo menos no que à natação dizia respeito. Naqueles tempos, água pelos tornozelos era, para mim, motivo mais do que suficiente para alerta vermelho de perigo de afogamento; assim acontece quando se tem a cintura abaixo das canelas.
Serve esta estranha constatação anatómica para sublinhar que, naquele dia, mesmo com o corpo deformado pela cabeça, me lancei ao Rio (caramba, que Rio tão grande) sem hesitar. Gostava de acreditar que foi a minha valentia a fazer todo o trabalho, mas não. Vistas as coisas agora à distância, não me restam dúvidas de que a responsabilidade é do pai e da mãe que, entre incentivos histriónicos e muita ansiedade ao verem a menina da cintura descaída mergulhar nas profundezas de um rio pelas canelas, conseguiram ainda fotografar o acontecimento. O resto fui eu que fiz, e foi fácil, muito fácil mesmo: boca fechada para não entrar água, respiração suspensa - mas também quem é que precisa de respirar no molhado quando tem os pais a respirarem por nós no seco da margem? - unhas cravadas na bola e os pés a chapinharem em uníssono com a euforia aflita dos progenitores.
Chegada sã e salva às pedras escorregadias da beira-rio, foi só celebrar. Celebrar a valentia da miúda culpa da fé dos pais, fé essa que, é hoje bastante claro para mim, só pode ter sido fingida - acreditem, eu, dentro de água, era em mim mesma um atentado à minha integridade física.
Gostava por isso de agradecer a fé e o fingimento ao pai e à mãe; garantir-lhes que tenho usado a bola vermelha variadíssimas vezes ao longo destes 36 anos e a coisa não me tem corrido mal (desses casos não se conhecem fotos). Por último deixo apenas um alerta aos pais: não se atrevam a misturar fé e fingimento em frente à tia Micas. Eu fiz isso uma vez e levei uma bofetada em frente ao Padre. Parece que só pessoas de fé em Deus podem provar a hóstia, e as tias freiras levam essas coisas muito a sério.
Um dia com calma, e muita paciência, falo à tia da minha bola vermelha. Nessa altura tenho a certeza que não vai ter outro remédio que não seja abrir a boca e dizer:
Ámen

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Grão de bico

Se eu pudesse ser um grão
ou outra coisa que não
este corpo assim parado...

Se eu me livrasse do chão
um palmo que fosse para não
morrer aqui encostado...

Talvez chame um passarinho
que bique com força o menino
e o leve a todo o lado.

Um grão no bucho é em vão
mas o que é o vão senão
o sossego assim chamado?