quinta-feira, 31 de julho de 2014

Tempo de praia

Há muito que não tenho tempo a perder com essa história de ter frio na praia. 
E é pena, porque, tanto quanto me lembro, era bom. Bem bom, até.
A idade faz de nós especialistas à força. Deixamos de ter tempo para gostar da praia em geral e passamos a ter tempo apenas para gostar da praia de determinada maneira. Se vamos à praia e não encontramos as condições específicas que procuramos, nem paramos para pensar, seguimos caminho para a esplanada, ou para o campo, ou para o cinema. Seguimos caminho para onde aquelas exactas condições possam fazer um brilharete. 
Tenho saudades de gostar da praia e das coisas de qualquer maneira, 
de as desejar perfeitas
e de as receber como são.
Pelo meio,
breves momentos de frustração
um ralhete do pai
um pontapé à mana
a mão larga da mãe
e pumba! o rabo no chão
- Não te levantas enquanto não pedires desculpa à tua irmã.
Tenho saudades de ter tempo para esperar,
chorar 
digerir a irritação 
pedir desculpa à mana
vestir a camisola
e depois brincar.
Quando se tem tempo não importa se chove, se faz sol
se vem a caminho um furacão. 
Podemos só ficar
a olhar.
No entretanto, 
aproveita para me dares a mão.
  

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um galhinho com pouca manteiga para a mesa do canto

          Se  alguém tiver um galhinho que me atire, agradeço. 
          Desde que flutue, serve. 
          Só preciso que alguma coisa se mantenha à tona. Reparem que não disse "me mantenha à tona". Disso já desisti. Não desisti de viver, nem nada que se pareça. Mas de andar à tona, sim. Não por cepticismo, entenda-se. Bom, talvez por cepticismo, entenda-se. A disposição para duvidar de tudo nasceu comigo, e a realidade confirma que nasceu muito bem. Por isso, Basta-me saber que alguma coisa anda à superfície, para viver mergulhada em paz. E pode ser só um galhinho. A superfície das coisas é tão boa como o seu fundo, e a diversidade é benéfica para a humanidade, dizem.
          Não quero com isto dizer que não dê aos pés e aos bracinhos para, pelo menos de vez em quando, vir cá acima respirar. Sou uma espécie de golfinho, só que bastante menos elegante. Mamífero, sim senhor, mas chega-me uma lufada de ar fresco aqui e ali, para viver feliz lá em baixo.
          Li algures que investigadores americanos chegaram à conclusão que uma noite de sono ideal deve ter, não as oito horas que sempre acreditámos, mas sim sete. A magnífica margem de uma única hora deixa-me a pensar: começamos a contar quando? quando vamos para a cama? Quando adormecemos? E quem é que conta? O qtipo que está a dormir? Parece-me pouco fiável...  E os mentirosos? Têm a certeza de que não há mentirosos no estudo? E os delirantes? Alguém ficou à sua mesinha de cabeceira, ou limitaram-se acreditaram nas respostas dadas? Eu não sou de intrigas, mas um em cada quatro indivíduos (ou lá o que é) sofre de algum tipo de perturbação mental... Estou só a dizer...
          Esta conclusão, por si só, choca-me bastante. Mas isto piora, acreditem. Ao que parece, num universo de milhares de doentes de cancro participantes no estudo, os que afirmaram dormir entre 6,5 e 7,4 horas por noite, tinham uma taxa de mortalidade inferior aos restantes. Outros estudos houve, com conclusões semelhantes, em que a precisão de horas de sono carece de vírgulas para se viver saudável, em que dormir seis hora e meia é mais saudável do que dormir sete ou oito, em que se morre mais de cancro por se dormir umas agradáveis onze horas por noite. A sério? Quem morre de cancro, morre de cancro, caramba! Não é uma hora a mais ou a menos que o vai atirar para o abismo. É mesmo o cancro! 
          Bem sei que o que escrevo é tão disparatado e impreciso quanto a notícia que li. Ainda assim, isto é um blog. Nem quero com isto dizer que não se devem fazer estudos sobre tudo e mais um par de botas, especialmente sobre o sono que é uma actividade maravilhosa, que se deve fazer bem feita. Aliás, temos de nos ocupar. Se assim não fosse a vida seria, para além de uma treta, um enorme tédio. Ocupamo-nos em nome do dinheiro para pagar as contas no final do mês, mas é do tédio que fugimos. Uns limpam escadas, outros vendem figos, outros fazem estudos... Até aí tudo certo. O que já não me parece tão correcto é que se agitem pergaminhos no ar com resultados tão pouco significativos. Não sei qual é a margem que torna um resultado relevante, mas não acredito que seja meia-hora, principalmente se falamos de doentes de cancro.
          A precisão não existe e ponto final. Quem inventou o relógio devia ser pendurado num plátano pelos pés, até ficar roxo. Não de um roxo qualquer. Havíamos de nos reunir frente ao plátano e debater durante longas horas o RAL desse roxo. O roxo ideal, preciso. Porque agora que já se inventou o fogo e a roda, a malta tem que se entreter com qualquer coisa. 
          - Tirem-me daqui, por favor!
          - Silêncio, meu anjo! Estamos a debater um assunto importante e apesar de já estares azulado, esse não me parece ainda o roxo que pretendemos!
          Claro está que quando a comunidade chegasse a uma conclusão sobre o roxo do senhor, já ele estaria verde ou amarelo. E mudo. Vicissitudes inerentes a esta mania da precisão.
          A precisão pode dar jeito em algumas matérias. Nenhuma delas, a meu ver, que separe a vida da morte por meia-horinha apenas. Por exemplo, seria útil determinar-se o RAL do galão escuro e do galão claro; os mililitros da bica cheia, da bica meia-chávena, da bica curta, da bica italiana; a temperatura exacta (em graus centígrados, por exemplo) de um copo de leite morno. Isso sim, seriam coisas úteis para o dia a dia. A mim poupavam-me uma trabalheira do caraças. Acabava-se a treta de ter de pedir café curto onde sei que o café normal vem quase cheio, para poder ter o café meia-chávena que quero. Ou a treta de ter pedir um galão claro na Tentadora, onde os tipos são semíticos com o leite, para conseguir ter o galão "para o escurinho" de que gosto, e não preto como eles querem. 
          Certo é que se as coisas fossem assim tão arrumadinhas, nunca teria tido a oportunidade de aprender a ser feliz com um café cheio, apesar de o preferir curto. Ou de ser feliz ao decidir ignorar os ouvidos moucos do empregado azedo que grita para trás do blacão
          - Pão de leite com fiambre e manteiga! 
          quando pedi um pão de leite com fiambre e pouca manteiga.
          Resumindo: bom, bom, é só precisar de um galhinho. Alguém?

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Valter vai (mesmo) nu

                Valter acordou diferente.
                Olhou-se ao espelho e aparentemente tudo em ordem. Talvez os olhos mais magoados do que o habitual, talvez o rosto mais severo, mas tudo na conformidade do desalento que o acompanhava há anos. Ignorou-se, longe de saber a desgraça que a noite lhe trouxera.
                A discussão violenta da noite passada deixara-o exausto, mas não era cansaço que sentia. Sabia que não voltaria a ver Leonor, mas não era angústia que o corpo acusava. Estava seguro da separação - ou da sua inevitabilidade, talvez -, mas não era alívio o que despertara com ele. Bom, talvez algum alívio, mas não aquele alívio desejável; geral, sereno. Um alívio inquieto. Alívio por se saber no caminho certo - ou inevitável, talvez -, e inquieto por ainda não ter lá chegado.
                Preparou a infusão de mel que tomava quando precisava de falar em público, e por entre o vapor adocicado que lhe embaciava os óculos a cada golo sorvido, fez uma última vistoria aos textos que preparara para a apresentação daquela tarde. Tinha uma enorme oportunidade em mãos, e apesar de ser mais da responsabilidade do acaso do que do seu talento ou determinação, decidiu agarrá-la com a avidez do filósofo promissor que fora em tempos.
                Caminhava em roupão pela pequena sala debilmente iluminada, envergando numa das mãos meia-dúzia de folhas impressas com as suas impressões, que haveriam de impressionar a plateia, e na outra, uma chávena fumegante a sacralizar o momento num ritual de defumação. Apesar da casa despida da opinião de Leonor, gargarejou, solene, o último golo de chá, pousou a chávena na mesinha de centro, e no momento em que se preparava para simular, para o vazio, a abertura da palestra, deu-se conta da desgraça que o seu corpo produzira durante a noite. Nenhuma palavra inteligível lhe saía da boca. Nada. Nem o mais pequeno monossílabo compreensível. Desesperado, movia os lábios em esgares extravagantes na esperança de se tratar de uma falha momentânea. Apesar do empenho aflito, apenas sons, harmoniosos até, mas nada que pudesse servir para esclarecer uma plateia. Valter deteve-se um momento de pé, cabisbaixo, as mãos caídas ao longo do corpo, a acompanhar a presilha do roupão que pendia felpuda e assimétrica. Com as mãos caducas das folhas impressas caídas aos seus pés, despejou o peso do corpo na poltrona. Sabia muito bem que nada daquilo era inexplicável, aliás, não seria razoável esperar desfecho diferente. Com os olhos secos de lágrimas gastas, amaldiçoou a sorte (só um bocadinho, a sorte) e os anos de conversas sérias, redundantes, inúteis, todas idênticas, todas de si para si (amaldiçoou muito os anos de conversas de si para si), com que tentara, ignorante, fazer-se entender a Leonor. Onde pode estar a inteligência de um homem que espera resultados diferentes de uma mesma acção? Em lado nenhum. Onde pode estar a inteligência de um homem que ao atirar uma bola para a esquerda, espera que ela vá para a direita? Nos últimos anos com Leonor, melhorou: passou a esperar apenas que a bola fosse um bocadinho menos para a esquerda. À primeira vista, dir-se-ia inteligente a adaptação, mas não, é ainda mais errado. Ser capaz de reconhecer que faz falta uma mudança e ser tão maricas a pedir. É preciso coragem para pedir. Quem pede não pode ter medo de que as coisas aconteçam. Ou pode, mas nesse caso é ainda mais medíocre do que o tipo da bola.
                Se a evolução da espécie fizera cair o excesso de pelagem do corpo humano por ausência de função, era apenas justo que o destino tivesse decretado o fim das suas  palavras inúteis. Odiou Leonor com a imensa paixão da revolta, e desejou, sem certezas, que o destino lhe tivesse roubado a ela a capacidade de olhar exclusivamente para a direita.
                Recompôs-se com esforço do choque inicial e tentou desenhar mentalmente uma estratégia que lhe permitisse concluir com sucesso a ansiada palestra da tarde. Não conseguiria falar, é certo, mas talvez pudesse fazer as coisas de outra maneira. Afinal tinha a apresentação meticulosamente preparada, com imagens explicativas e textos projectáveis. E havia sempre a possibilidade, ainda que improvável, de que a desvirtude da fala lhe regressasse a qualquer momento. Estava decidido a arriscar tudo para não perder a oportunidade que o destino lhe pusera no caminho. Depois de tantos anos de estudos e reflexões complexas sobre questões fundamentais da existência humana, e numa altura em que Valter já não esperava que a sua carreira de filósofo acontecesse para além das aulas que prestava a alunos do segundo ciclo de um Liceu da periferia, não iria agora permitir que um percalço, ainda que enorme, deitasse tudo a perder. Vivera durante demasiados anos quase resignado, quase satisfeito, quase feliz na sua condição de quase filósofo. Um dia, quem sabe, haveria também  de viver quase em paz com a ausência de Leonor. Nunca imaginou que esta sua quase vida pudesse um dia encher o peito de ar e atrever-se a respirar fundo novamente. Foi exactamente o que aconteceu no dia em que Horácio Estima, Presidente da Associação de Pensadores e Filósofos Portugueses lhe telefonou pessoalmente, inquirindo-o sobre a sua disponibilidade para integrar o painel de oradores das Jornadas de Reflexão Filosófica, este ano sob a temática "O papel da análise conceptual na filosofia contemporânea". Valter não se preocupou demasiado com a falta de decoro do convite de última hora, para substituir o reconhecido professor Arnaldo Mesquita que caíra na cama doente a poucos dias do acontecimento. Já não tinha idade para falsos puritanismos. Independentemente da motivação do convite, era sem dúvida uma grande oportunidade.
                Delineada a estratégia para contornar o incontornável, Valter livrou-se do conforto morno do roupão, vestiu as calças de bombazine castanha que o esperavam penduradas de véspera na cadeira do quarto, voltou a pendurar no roupeiro a camisa que tinha previamente escolhido para o grande dia, e decidiu-se pela camisola preta de gola alta. Ninguém estranha que um filósofo se apresente numa conferência sem camisa bem engomada, e talvez a garganta aconchegada lhe remediasse a desgraça. Vestiu um blazer suficientemente coçado para a imagem despojada de um pensador à séria, e correu escada abaixo tão depressa que por momentos se esqueceu de que corria, muito provavelmente, para a humilhação pública. Entrou de rompante na pastelaria, e antes que Valter, imprudente, tentasse pedir alguma coisa,
                - Bom dia Professor Valter. É o costume, não é verdade?
                Valter sorriu ao tomar consciência do que podia ter acontecido se tivesse, naquele dia, evitado a familiaridade daquele café, como fazia nos dias em que não lhe apetecia grandes conversas. Limitou-se a um aceno de cabeça afirmativo, colorido por um largo sorriso forçado. A D. Alzira  depositou o galão escuro e o queque de passas no balcão, e, felizmente, também ela não tinha grande vontade de conversar. Valter engoliu o queque em três dentadas e demorou o galão morno na garganta, inclinado a cabeça ligeiramente atrás. Mal não faria. Correu para o Fiat Uno beije que o esperava à porta, sem se lembrar sequer de se despedir da D. Alzira - ou melhor, sem sequer se lembrar que jamais se poderia ter despedido da D. Alzira -, e acelerou até ao Centro de Convenções da Ajuda. No rádio velho soava uma mistura de interferências com uma música estridente da moda. Valter aproveitou a desordem sonora para pôr uma vez mais à prova as suas (in)capacidades vocais. Apesar da descoordenação verbal agora minorada pelo ruído confuso, pode confirmar que nada mudara.
                Quando chegou ao Centro de Convenções já os trabalhos se tinham iniciado. Correu para os Bastidores onde o Presidente Horácio Estima o aguardava ansioso e quase arrependido por ter confiado tamanha responsabilidade a um simples professor de liceu. O Presidente Estima acompanhou Valter pelo braço até à saleta onde deveria aguardar a sua altura de entrar em palco. Enquanto caminhavam apressadamente falou, perguntou, tudo, felizmente, sem esperar resposta.
                - Mas onde é que você se meteu, homem? Já estava a ficar aflito. Pronto, mas agora já cá está que é o que importa. Lembre-se do que combinámos, tem um comando em cima do púlpito que deve usar para mudar a projecção. Não há que enganar.
                O Presidente soltou o braço de Valter impelindo-o para dentro da saleta, e fechou a porta com uma frase,
                - Prepare-se que é o próximo a entrar!
                Antes que tivesse tempo para aflições de última hora, ouviu-se uma voz metálica chamar o seu nome. Valter retirou da pasta as folhas impressas, ajeitou-as fazendo-as bater verticalmente na madeira da secretária que justificava o nome de sala, a um espaço tão exíguo, e depois de fazer ressoar dois ou três sons cavernosos na garganta, tentou, sem sucesso, imitar a voz que o chamara. Não conseguia sequer dizer o seu próprio nome. Nem o galão morno, nem o aconchego da gola alta tinham surtido qualquer efeito. Valter tomou consciência do sarilho em que se tinha metido e começou a transpirar terror testa abaixo. As mãos molhadas ondularam as suas notas de papel, e foi assim, reluzente de pavor, que se apresentou perante uma plateia repleta de ilustres pensadores internacionalmente reconhecidos. Caminhou timidamente no palco em direcção ao círculo de luz que gritava humilhação, ajeitou o microfone à sua invulgar altura, e com os ombros encurvados de pudor, arremessou, com um clique, o primeira imagem para a enorme parede branca atrás de si. Da plateia negra que se estendia frente ao palco sopravam murmúrios, certamente inquisitórios.
                - Quem é este? - Jurou ouvir.
                O burburinho inicial diluiu-se rapidamente na penumbra, e o sigilo do círculo perfeito de luz que designava inequivocamente o orador, quebrou-se à revelia de si próprio. Sem saber muito bem como tudo aconteceu, Valter endireitou os ombros e lançou-se destemido à punição, proferindo um encadear de sons melodiosos que acompanhavam o ritmo das imagens projectadas. O burburinho da plateia negra voltou a fazer-se ouvir. Sentado na primeira fila, o Presidente não pode ignorar durante muito tempo os olhares interrogativos dos restantes espectadores, e demasiado orgulhoso para admitir o erro da escolha, depôs com segurança,
                 - Este homem é um génio!
                A plateia, invertebrada e submissa à opinião inquestionável do Sr. Presidente, retomou a ordem e aplaudia agora a performance absurda de Valter. A sua apresentação terminou ovacionada pelo público eufórico, que de pé canonizavam, sem pensar, um equívoco. O Presidente, inicialmente inchado de orgulho pelo poder magnânimo da sua influência, e mais tarde dominado pela incerteza da real nudez do orador, manteve-se fiel à sua avaliação inicial,
                - Verdadeiramente surpreendente! De uma clarividência desconcertante!
                Valter não compreendeu de imediato o porquê dos acontecimentos. Do alto do palanque não se deu conta de que a onda de aprovação se devia exclusivamente à liderança cobarde de um, e ao aval cego de todos os outros. Dividido entre a vergonha e a vaidade e aterrorizado pela euforia da multidão, abandonou o auditório antes que o Presidente, ou alguém, o pudesse encontrar. Pensava agora em Leonor, no desejo que tinha de lhe falar, e foi com o raciocínio embriagado que decidiu procurá-la. Só poderia estar em casa, na casa da tia há anos emigrada no Canadá. Correu para lá, estacionou o carro em frente à porta, e tocou à campainha. Claro que Leonor estava em casa. Na verdade não tinha saído o dia inteiro. O tumulto da noite anterior corroera-lhe por completo o ânimo e  telefonara para o consultório a avisar que não iria trabalhar. Naquele dia Leonor não esperava nada, nem ninguém, muito menos Valter, e foi com o coração apertado que viu o Fiat Uno estacionado lá em baixo. Abriu de imediato a porta. Valter subiu os degraus aos pares e deteve-se apenas ao ver Leonor, vestida com o desleixo de um domingo inútil, e o olhar húmido a suplicar uma coisa qualquer. Uma explicação, uma justificação, ou até mesmo uma acusação, um insulto...  Valter caminhou devagar na sua direcção, dando-se tempo para ler os seus desejos. A cabeça ligeiramente inclinada de Leonor, expondo o pescoço nu à vontade de Valter, não deixava dúvidas quanto à rendição. Valter abarcou o pescoço delicado de Leonor com as mãos largas, e no momento em que os seus lábios tocaram os dela, sentiu duas lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto, incitadas pelos olhos fechados do beijo. Já no sofá, com os corpos agasalhados um no outro, Valter tentava uma vez mais fazer-se entender àquela que era, sem dúvida e apesar de tudo, a mulher da sua vida. Leonor por sua vez, escutava atenta o melodioso discurso sem sentido de Valter, e em vez de estranheza, pode finalmente encontrar o que precisava de ouvir, nas coisas que ele não dizia. 


               E agora com licença que o narrador vai para dentro. Valter e Leonor fizeram desta história o que bem entenderam, que não é mais do que as coisas como elas são - escorregadias - e o narrador reserva-se o direito de não ter saco para atirar mais bolas.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Preocupa são

Não te preocupes meu amor
esta tristeza vai muito para além de ti
e de mim
Tem o tamanho das coisas como elas não são
Por isso nunca te preocupes meu amor
ela vai muito para além daqui
Não há quem culpar
Esta tristeza não me chega de ti
nem de mim
Tão pequenos tu e eu
Inquietar-nos seria em vão
Por isso te digo
não te preocupes meu amor
Eu cuido não me preocupar
se me falhaste ou nem me viste
Que relevância perto das coisas como elas são?
Eu cuido não me preocupar
mas a tristeza insiste
e insiste
Não chores meu amor
não te preocupes se me mentiste
A verdade está ainda por descobrir
nada garante que se encontre mais salubre que esta triste
mágoa de não saber procurar

segunda-feira, 2 de junho de 2014

INÚTIL

Lembrei-me há dias deste ser levezinho, que nasceu de um generoso convite da minha querida Estelle Valente. No lindíssimo blog "Les Ombres du Temps", empresta as suas maravilhosas fotografias a quem lhe empreste algumas palavras. Assim fizemos. Considero esta foto um bocadinho minha e este ser levezinho é todo teu, Estelle. 


    Fotografia : Estelle Valente

   

   Segura-me inútil, assim tombada de tudo e de nada.
   Segura-me, inútil!
   Segura-me ainda que de nada te sirva.
   Somos iguais, tu e eu, não vês?
   Abraça com força o inútil de mim.
   Larga o resto que não sobra.
   Não há que temer.
   Deixa ao medo o nada que resta do que seguras,
   é tão pouco o que te confio.
   Não pode ser assim tão difícil,
   um quase nada de gente,
   levezinho.
   Não há Cerélac capaz de engordar a gente que não sou.
   Nasceu assim o bébé,
   enfezado.
   Nem com papas lá vai.
   É só,
            atirar ao ar e voltar a agarrar
            atirar ao ar e voltar a agarrar
            atirar ao ar e voltar a agarrar....
            Só isso.
   Vais ver como ri de felicidade,
   ou lá do que riem os seres levezinhos...
   É só isso que quer,
   que o segures.
   Nem que o atires,
   que o segures.
   Mas se para isso tiver de voar,
   não se importa,
   fecha os olhos com força e quando voltar a olhar,
   já ri,
   seguro.
   Segura-o inútil, assim tombado no ar,
   de cada vez que voa,
   de cada vez que ri.
   Segura-o inútil, assim tombado de tudo e de nada.
   Inútil?
   Não... levezinho, apenas.
   Lembra-te,
                     atirar ao ar e voltar a agarrar
                     atirar ao ar e voltar a agarrar
                     atirar ao ar e voltar a agarrar....
   Repara como ri.
   Que importa se de felicidade ou se de outra fantasia qualquer?
   Segura-me, inútil!
   Ri-te, inútil!
   Aproveita se te faço útil.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Todos juntos, vá lá... (Perdoa-me Vinicius)

Era uma vida muito sem fim
tinha um caminho mais que ruim
Não se podia parar no meio
porque o passado roubara o recreio

Era uma vida muito danada
só tinha medo e um pouco de nada.
Não se podia fugir de lá
porque correr assustado não dá

Era uma vida muito engraçada
tinha uma graça desmesurada
Não se podia viver ali
porque diabo me calhou a mim?

Era uma vida muito engraçada
tinha uma graça com pouca piada
Era preciso quem lá ficasse
por isso reza e espera que passe

terça-feira, 13 de maio de 2014

Da sede em geral, e do amor em particular

          Quando sei alguma coisa, sei exactamente o que quero.
          Se peço uma Água das Pedras e me oferecem Vidago, agradeço mas vou ao café do lado.
          O pior é a sede.
          As generalizações são traiçoeiras. Não tanto no caso da água que é, incolor, inodora, insípida, ou seja, suficientemente in para ser inócua, mas em casos um pouco mais fora de moda, tomar a partícula pelo todo, pode ter consequências trágicas.
          Mas mesmo no caso simples da água. quando me calha em sorte o saber, só me basto com o que quero. Nem mais nem menos. Parece-me justo aproveitar os momentos de lucidez para fazer a coisa certa.
          O pior é a sede.
          A sede estraga tudo, quando aperta, não é preciso ser-se estrangeiro para se ser capaz de qualquer coisa. O ideal é ir tomando água ao longo do dia, para evitar que o diabo se nos instale no corpo e desate a fazer asneira da grossa por aí.
          Para enorme desgosto do meu pai, que me preferia mais sóbria,
          tenho bebido Vidago vezes demais!
          Antes água que vinho, é certo.  Ainda assim lamento, não saber cuidar sempre (ou pelo menos quase sempre) da partícula como ela merece. Eu (e vocês também, não pensem...) mereço exactamente aquilo que tenho; no meu caso, ora um copinho de Pedras, ora uns garrafões de Vidago, no vosso, noutra proporção qualquer.
          Prometo melhorar, Pai. Sem chorar nem nada. Chorar só piora as coisas, desidrata. Vou só respirar, pai. Levantar a cabeça, respirar e andar. Quando me voltares a ver vou ser toda partículas reluzentes, vais ver. Qual todo qual quê! Ninguém vai poder ver o todo. O olhar vai-lhes ficar grudado em cada milímetro meu, todos no sítio certo, distintos, únicos, escolhidos por mim e não mais por esta sede louca que se torce cá dentro.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

...

Vivia por ti se preciso fosse
Assim seria
sem medos nem rodeios
sem angústias ou coveiros
Tolerava por ti o duelo doce
de quem suspeita que a vida é só o meio
Traz-me a guitarra e o sinal
o sinal de não faz mal
Toca o destino em ré menor
quem sabe encontras quem te embale
De música pouco conheço
só o desenho da clave de sol
Onde a penduro, não sei bem
por agora deixa-a ficar
enroladinha, não faz mal
Toca o destino em ré menor
guarda o maior para o final

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Anita vai sozinha ao bloco

Eu até gosto de hospitais.
Na verdade até me acalmo com hospitais.
Há quem se acalme com álcool, cocaína ou heroína, por isso, paizinho, há que ver as coisas pelo lado positivo: até não estou nada mal! Não se pode dizer que seja mais barato, mas é certamente menos prejudicial à saúde. Sim, apenas menos prejudicial, se não vejamos: são poucos os que entram num hospital sem nada e saem assim mesmo. Na sua maioria, as pessoas saem do hospital com qualquer coisinha que lhes justifique o mal-estar. Parece-me justo. Para não variar, eu faço parte da minoria (apre, que já me falta a paciência!), entro saudável e saio ainda melhor. É preciso ter azar.
Numa tentativa de contrariar o destino, decidi recentemente fazer um check-up à minha condição humana. Escolhi um médico, queixei-me de tudo o que podia ter, e saí da primeira consulta com uma resma de exames para realizar com urgência. Foi um mês magnífico! Entre macas e batas brancas, muitas vezes me despi e vesti eu à procura do nada que me atormentava. Fui inspeccionada da ponta dos cabelos à unha do dedo mindinho. Tudo normal. Análises quase perfeitas. Tinha quase uma série de coisas, mas na verdade não chegava a ter nada. Tinha quase colesterol, quase sinusite, quase escoliose, quase varizes, mas pior ainda, estava quase pré-diabética. Uma hiponcondríaca pré-diabética é já de si humilhante, mas quase pré-diabética é doença fatal para alguém da minha fraca condição espiritual. Quase e pré, na mesma frase, é diagnóstico que ninguém merece. Que espécie de falhada sou, Deus meu?
Já o médico batia com a resma de relatórios admiráveis na mesa, para os organizar num molhinho também ele admirável, enquanto sorria encantado dizendo,
- Você está óptima, Sofia, tem saúde para dar e vender! 
quando me lembrei de um último trunfo que me podia salvar a honra.
- Doutor, esqueci-me de lhe mostrar um sinal que tenho no dedo do pé. 
Visivelmente enfastiado, dedicou-me mais uns minutos da sua atenção,
- Vamos lá ver isso.
Viu.
- Isto é para tirar imediatamente!
Teria preferido um urgentemente, mas o imediatamente serviu-me bem a gravidade desejada.
Seguiu-se mais uma semana magnífica. Visitei três médicos em poucos dias. Dois cirurgiões que concordaram tratar-se de um caso para a cirurgia plástica, e um cirurgião plástico que, de tão vaidoso, não duvidou ser a pessoa indicada para tratar do assunto. Gosto de médicos confiantes, pelo que, nem a sua escassa simpatia, nem o seu sorriso malandro me incomodaram; estava entregue a um perito!
Marcámos a data da cirurgia que, para minha enorme felicidade, teria de ser realizada em bloco operatório. Em bloco, imagine-se! Não estávamos ali a brincar, não era uma coisa para: estique-se aqui na marquesa que lhe arranco isso em três tempos. Nada disso! Tratava-se de um assunto sério que merecia o respeito de todos. Ou isso, ou, como concluí mais tarde, o cirurgião vaidoso só trabalhava em bloco. Mariquices de quem tem um ego transbordante e se pode dar ao luxo de certas extravagâncias.
Durante as semanas que antecederam a operação (repare-se bem na grandeza da palavra. Operada. Eu ia mesmo ser operada. Finalmente fazia-se justiça e eu ia ter um tratamento à altura dos meus sintomas. Físicos ou espirituais, pouco importava, desde que julgados na medida certa. E a medida certa era, posso garantir, enorme.) dediquei-me à dura tarefa de convencer o meu seguro de saúde da necessidade incontornável do procedimento requisitado pelo médico. Não foi fácil. Chorei ao telefone perante a eminência da não aprovação do pedido, ameacei processar a seguradora ou o médico, jurei que pretendia agir judicialmente contra a parte que se concluísse estar a agir de má fé - ou a seguradora por duvidar da seriedade do médico vaidoso, ou o médico vaidoso por requerer actos desnecessários à resolução do problema. Alguém atentava contra a minha saúde e eu estava decidida a levar o caso até às últimas consequências. A seguradora tentou acalmar os ânimos, garantiu que remeteria novamente o caso a apreciação do seu gabinete clínico, que certamente o aprovaria. Enervei-me ainda mais, claro está. O meu espírito já débil incendiou-se ao saber que, uma pressãozinha aqui e um apertão acolá, bastariam para ver aprovada a cirurgias. Contestei a necessidade de existência do gabinete clínico da seguradora, uma vez que eu já tinha escolhido um médico, que era vaidoso, é um facto, mas não fazia parte desse grupo iluminado de profissionais que diariamente se sentam a uma secretária e dão o seu aval, ou não, às decisões de outros profissionais. Aliás, o médico vaidoso não tinha sustentado a sua decisão na apreciação de meia dúzia de relatórios. O médico vaidoso tinha pegado efectivamente no meu dedo, dedo esse que fazia parte de um conjunto de dedos (cinco) separados entre si por carrapetas fedorentas deixadas pelas meias pretas de inverno. Logo aí, o médico vaidoso levava larga vantagem.
A seguradora acabou por aprovar o pedido, desconfio que mais para não me voltar a ouvir, do que por entender necessária uma ida ao bloco para fazer a excisão de um sinal.
Dei entrada no hospital às duas da tarde. Tinham-me pedido para me apresentar em jejum e foi o que fiz. Quando a recepcionista me disse para aguardar na sala de espera, perguntei se teria tempo de ir buscar uma água. A senhora respondeu-me, num revirar de olhos, que devia estar em jejum. Pensei mandá-la para aquele sítio ou ao oftalmologista, mas segurei-me. Sentei-me tranquila à espera de vez, e procurei na internet a definição exacta de jejum. Verifiquei que era eu que estava certa; jejuar é apenas não comer, e que eu saiba a água não se come. Tive vontade de esclarecer o assunto junto da senhora dos olhos tortos, mas voltei a segurar-me. Pareceu-me óbvio não haver oftalmologista em sítio nenhum do mundo capaz de a salvar.
Na sala de espera tive oportunidade de responder afirmativamente a duas velhotas que me perguntaram se estava ali sozinha. Pedi-lhes um momento, mandei rufar os tambores, deixei descair a beiça e os cantos do olhos e respondi, gloriosa: sim. A minha mãezinha que me perdoe, cada um faz o que pode pela vida, e nenhuma das velhas viria algum dia a saber quem eram afinal os progenitores capazes de deixar a filha ir sozinha para uma operação. E ainda bem, porque se viessem a saber, acabariam por descobrir também que só não estavam presentes porque eu não permiti. Como disse: cada um faz o que pode pela vida e por um bocadinho de atenção.
Repeti este sim diversas vezes ao longo do processo: ao enfermeiro que me conduziu ao quarto e me estendeu três embrulhos plásticos (bata + sapatos + touca, tudo descartável); à enfermeira que me veio colocar o soro; ao auxiliar que me empurrou a maca até ao bloco (aliás, este tipo irritou-me à brava. Eu ponho a touca quando quiser. Quem é que disse que só é preciso colocá-la à entrada do bloco?) e haveria de ter muitas outras oportunidades de responder sim até ao final da tarde, altura em que deveria ter alta. Foi uma barrigada de atenção a tarde inteira. Porém, no momento em que vi os tectos brancos deslizarem sobre mim ao longo dos intermináveis corredores a cheirar a éter, desceu em mim um pânico incontrolável. A leveza com que passavam a minha maca de mão em mão
- Esta senhora vai para o oito. Levas?
- É para quem?
- Para o professor. 
deixava-me de boca aberta. Para o professor? Qual professor? Não será melhor dizeres-lhe QUAL o professor? Queres-me convencer que o vaidoso é o único professor do hospital? Levantei a cabeça entoucada de um verde estéril, fixei a cara do tipo que agora me deixava e olhei para o tipo a quem estava entregue
- Olhe, desculpe... Olá, o meu nome é Sofia Cunha e vim só tirar um sinal do pé.
Olhou-me como se ouvisse um morto falar, como se fosse impossível uma tipa numa maca dizer o que quer que fosse e eu reforcei a ideia
- Esquerdo. É o pé esquerdo.
E assim passei a fazer de cada vez que me passavam de mão
- É para o oito. Levas?
- Olhe, desculpe... Olá, o meu nome é Sofia Cunha e vim só tirar um sinal do pé
Sim, fiz esta figura por várias vezes. Antes fazer papel de tonta do que sair de lá sem um órgão saudável.
Riam-se, comentavam entre eles a minha aflição, tratavam-me como a anormal que sou, mas achavam graça e por isso preocupavam-se. Que tarde perfeita!
Mas o que é bom não dura para sempre e este acabou no momento em que o médico vaidoso me espetou a agulha no osso para aplicar a anestesia e perguntou
- Dói-lhe Ana Sofia?
- O que é que te parece, ó vaidoso? Espeta uma agulha no teu dedinho para veres o que é bom!
Uma enfermeira maternal tentou acalmar-me
- Pense em coisas boas. Onde é que gostava de estar agora, Ana Sofia?
- Poupe o seu latim, mãezinha! Eu sou ansiosa há trinta e sete anos e isso não vai mudar no momento em que me estão a cortar metade de um dedo!
- Respire fundo, Ana Sofia...
- Por amor de Deus parem de me chamar Ana Sofia. Como é que querem que eu descontraia se não param de me chamar o nome dos ralhetes? Não fui eu, mãe, foi a mana, juro!
Esperneei, gritei, pedi socorro, mas o vaidoso não se deixou comover. Ao fim de poucos minutos já me tinha cosido a cabeça do vizinho do dedão com sete pontos e o seu cabelo continuava impecavelmente penteado, nem um fiozinho fora do lugar. Já de pé, olhou-me os olhos arregalados de ansiedade e estou certa de que pensou
- Deixe lá, cada um faz o que pode pela vida. 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

...

Quero, posso, e não mando
Vagueio por aí limitada a querer
Quero, posso, e só ando
Frente ou trás
Por onde passo,
não estás.

Zás!

Quem manda aqui?

Por onde vais,
não vás
Diz-me ao menos que caminho te traz.

Quero, posso, e não mando
Vagueio por aí limitada a querer
Quero, posso, e não ando
Nem para a frente,
nem para trás.

Quem manda aqui?

Quero ou quis?

Sem ti,
tanto me faz.