sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Chuva de morte (ou neve rasteira)

Ontem nevou junto ao chão.
Para os mais distraídos, choveu apenas.
Mas diz quem andou (atento) por Sintra, que as gotas de chuva se transformavam em flocos de neve pouco antes de se esborracharem no chão.
Estou aborrecida com a chuva, por ter a lata de reduzir a segundos um espectáculo assim. Parece que se zangou com o frio, que decidiu fazer birra e não lhe congelar as gotas a tempo. Da discussão resultou este nevar rasteiro, que só por óbvia falta do que fazer, ou algum atacador desapertado, chegaria a ser observado por alguém.
Pouco me importam estas desavenças domésticas. Continuo a achar que a chuva não tinha o direito de nevar apenas a um palmo do chão, e chego até a pensar, se não será isto uma vingança mesquinha, para com os mais distraídos. Uma forma de selecção bastante nazi, capaz de reservar naturalmente este espectáculo memorável, aos que são capazes de ver coisas assim pequeninas. Um grande nevão toda a gente vê. Mas e esta neve rasteira, capaz de se confundir com a neblina agarrada ao chão da manhã? E o mundo submerso do joelho para baixo, quem reparou?
Pode ser que a chuva se tenha zangado com o frio.
Pode ser que a chuva tenha decidido castigar os mais distraídos.
Pode até ser que a chuva tenha decidido apenas premiar os mais  sensíveis.
Pode ser.
Mas de repente dei comigo para aqui aflita, às voltas com a ideia de que esta história pode ser bem mais complicada.
E se se trataram de gotas kamikazes, arrependidas no último momento?
Gotas kamikazes que se cansaram da fatalidade de anos a fio em vôo picado para a morte, e ontem decidiram implodir-se em flocos de neve, como pipocas de algodão, na esperança inútil de que a leveza as salvasse da morte certa. Salvar não salvou, mas adiou. E assim ficaram para ali a pairar, baloiçando os últimos segundos, entre o descanso de só mais um bocadinho, e a fatalidade do reconhecimento da asneira
- Por que caraças fui eu saltar?
Tenho pena que tenhas saltado, mas tenho ainda mais pena que te tenhas implodido num floco de neve
-Para quê? Se já não havia nada a fazer. Para quê?
E agora estou para aqui irritada, por não ter estado em Sintra.
Desculpa.
Queria ter ido mais cedo, mas tive de passar no Banco para tratar dos papéis para o empréstimo da casa, lembras-te? A greve de comboios também não ajudou e depois encontrei o João. Mas foram só cinco minutos, juro. Queria falar comigo, nada de importante. Não tive como dizer que não. E depois sabes como é, conversa puxa conversa estava-me a soprar disparates ao ouvido, e sabes como é, conversa puxa conversa sobre como estão grandes os miúdos (o mais pequeno é a tua cara) e estávamos de mãos entrelaçadas, e o João
- Podia ser nosso, o mais pequeno.
Fingi que fugia várias vezes, mas quando dei por mim tinha passado meia hora. Sabes como é, o tempo passa a correr. Mas não te preocupes com João, a sério. Lá acabei por conseguir fingir que fugia e enfiei-me no comboio apinhado de gente impaciente. Não te preocupes com o João, já te disse. Não vês que consegui meter-me no comboio, mesmo apinhado e mesmo a suspirar? Sabes como é. Deixa para lá isso do João por favor.
Com ou sem João, a verdade é que teria sempre chegado atrasada.
E assim foi.
Quando aí cheguei, já não havia flocos de neve para salvar. Sintra estava já irremediavelmente coberta de um descanso eterno e molhado. Tinha caído a noite e as luzes dos automóveis reflectidas na chuva inerte do chão, deixavam bem clara a desgraça. Doeu-me que nenhum automobilista tivesse o cuidado de abrandar em sinal de respeito pelo vosso último suspiro. E deixei-me ficar ali a imaginar que se não fosse pelo João, teria chegado a tempo de me pôr de joelhos no chão e rabo para o ar, a deixar cair levemente nas mãos essas gotas kamikazes de esperança. Depois, deitava-as todas juntas num frasco e levava-as ao hospital. Ou então à feira popular. Têm lá uma daquelas rodas gigantes de fazer algodão doce. Deitava-as no buraquinho do açúcar, estendia-lhes um pauzinho como se faz aos periquitos, e levava-as para Sintra outra vez.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Falta, não falta?

Há muitos anos o meu pai escreveu-me uma dedicatória que dizia
"O sol está longe mas é belo"
Na altura não compreendi exactamente o que queria dizer com aquilo. Hoje compreendo, mas de quando em quando, tenho vontade de voltar a ser a miúda sentada no banco traseiro da velha Diane a caminho do Porto, e perguntar
"Achas que falta muito?"

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pontes de areia

Por muito que me apeteça culpar a areia da praia, hoje sei que não posso. Passaram-se anos que a culpei descaradamente sem pinga de remorso. Nunca se queixou. Limitava-se a ficar para ali estendida ao sol, que de tempos a tempos lhe aquecia as costas e lhe secava a água trazida pela maré.
Ocasionalmente, irritada com a passividade da areia que se preocupava demasiado com o bronze e muito pouco com os meus queixumes, culpava a minha irmã
- Bolas mana. Estragaste tudo outra vez.
(Bolas não é asneira, pois não?)
(Culpar a areia também não é asneira, pois não?)
(Mas culpar a irmã é, não é?)
Para fazer uma ponte de areia em condições é preciso alguma habilidade, muita paciência e areia no ponto certo, nem demasiado seca, nem demasiado molhada. Reunir as três num momento só, nem sempre é possível.
Por isso, por aqui continuo de joelhos na areia, a esgravatar pontezinhas que vão desabando por isto ou por aquilo. Por alguma onda desajeitada que não sabe ainda mergulhar bem e que descontrolada veio inundar onde não era suposto. Felizmente uma outra onda agarra-a logo pelo cachaço e leva-a de volta, para que repita o mergulho sem exageros. São matreiras estas ondas descontroladas que ainda não sabem mergulhar na medida certa. É preciso contar com elas, para que não nos apanhem despercebidas.
Atenta a tudo, continuo a arrastar montes de areia, já não apenas com as mãos, mas também com os braços, à laia de retroescavadora empenhada, na esperança de um dia, lá no fundinho do buraco, encontrar uma mão. E nesse momento, com o braço enterrado até ao ombro, sorrir-te, sem que aqueles que não têm as unhas desconfortavelmente cravadas de grãos de areia, entendam o motivo da felicidade. Ainda assim, se a ponte cair no momento crucial de largarmos as mãos e desenterrarmos os braços, continuaremos a ter motivos para sorrir. Basta subir ou descer um pouco mais no areal, e procurar a areia certa, porque a habilidade já a tivemos num aperto de mão areado e a paciência há-de chegar.