quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sem título (o que no caso já é um título)

Há dez anos sobreviveu à morte.
Chorou tanto que foram precisos 784 mil lenços de papel aromatizados para lhe secar as lágrimas.
Ele, indiferente ao odor a alfazema, continuou morto.
Ironicamente tudo leva a crer que ela não chegará a sobreviver à vida.
Mas desta feita não vai precisar de lenços de papel.
Menos mal.

domingo, 27 de novembro de 2011

Usados de qualidade

Esteve ali anos esquecido. Tão esquecido que se o vendesse poderia anunciar:
"Usado, como novo"
Todas as divisões quadradas têm quatro. Num guardo a mala de viagem semi-aberta, no outro repousa atravancada a mesa de computador que não uso, e no terceiro (sim: E no terceiro) escondo um escadote ferrugento. Esta divisão quadrada foi até hoje triangular. Não sei bem explicar porquê; simplesmente não me acontecia fazer lá nada. Cheguei a comprar-lhe uma poltrona - com o entusiasmo com que compraria um segundo peixe de dois euros, para fazer companhia a um primeiro peixe de dois euros. Para o bicho não ficar ali sozinho, coitadinho - mas também a poltrona;
"usada, como nova"
e duas almofadas coloridas (aprendi a lição dos peixes), e claro;
"usadas como novas".
Hoje apeteceu-me mudar o destino. E mudei. E felizmente não se vendem cantinhos, nem mesmo com poltronas e almofadas. Tão felizmente que se agora o quisesse vender teria de anunciar:
"Não se vende"

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Assim se ama na Pérsia



Foi assim que encontrei Hafez. Morto e chorado. Nunca tinha visto devoção tão grande que não se prendesse com religião. Tentei falar com algum dos muitos devotos que visitavam o túmulo naquele dia, mas o inglês ingénuo da maioria dos iranianos e o meu débil farsi, não ajudaram. Quando finalmente encontrei duas mulheres com quem pude trocar mais do que dois sorrisos de conversa, perguntei curiosa o motivo de tanta comoção. Estava certa de que a resposta seria que para além de um grande poeta persa, Hafez tinha sido também um muçulmano irrepreensível e um fiel seguidor do Corão. Mas a resposta foi bem mais simples (ou não) da que imaginei. Entre véus escorregadios a denunciarem cabelos finamente cuidados, risos comprometidos em rostos excessivamente maquilhados, e alguns gracejos em farsi, a resposta à minha pergunta foi afinal: O Amor.                                          
Num país em que o destino feminino nasce traçado, mulheres de todas as idades confiam emocionadas  o seu futuro aos poemas de um defunto. Estranho? Não. Quando o real nos escapa à vontade, resta-nos sonhar que o irreal nos pode contornar a sorte. Nunca cheguei a saber a fortuna desta mulher. Nem a real, nem a sonhada.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Aforismo?

Morrer é fácil. Viver também. Para ambos é preciso descobrir as combinações certas, químicas e instantâneas no primeiro caso, físicas e duradouras no segundo. Lembra-te apenas que a vida não é um pudim.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quem quiser que coma, e quem puder que cale

Sr. Manel que me perdoe, mas falta-me o ar se fico calada. Acredito que é homem inteligente, capaz de compreender que a minha zanga nada tem que ver com ele. Apesar de tudo, é lá que hei-de voltar, sempre que quiser lavar o carro. Sendo este sempre, como é bom de ver, enquanto o Sr. Manel lá estiver.Considero-me uma tipa pacata, não uma tipa exemplar, que alívio, mas tolerante, e sobretudo consciente de que existe mais mundo para além do meu, mesmo quando não o consigo entender. No fundo sou uma crente. Acredito sempre que há uma justificação lógica para tudo aquilo que à primeira vista se me apresenta absurdo.
Se um carro trava bruscamente à minha frente, mesmo que quase me esborrache na sua traseira, não acredito de imediato que se trate de um idiota ao volante. Considero primeiro a hipótese de lhe ter entrado um cisco no olho, ou de ter tido uma quebra de tensão, ou de ter simplesmente cometido um erro.
Sou daquelas que acredita que existem apenas duas, ou três; na pior das hipóteses quatro pessoas puramente estúpidas no mundo inteiro, contabilizando já os ligeiramente anfíbios como pescadores, marinheiros ou trabalhadores de plataformas petrolíferas. Todos os outros travaram seguramente por terem uma justificação forte para isso, como uma criança chinesa de dois anos perdida na rua, por exemplo.
Agora que defendi os meus 58 quilos de gente, posso passar a explicar o que hoje me aborreceu na bomba onde trabalha o Sr. Manel.
Tornou-se moda nos últimos tempos as estações de serviço terem as bombas em pré-pagamento. Alegadamente para se precaverem dos clientes menos cumpridores que fogem sem pagar. À primeira vista não se desvenda problema de maior. Vamos à caixa primeiro e abastecemos depois. Não é grave. Mas há um dia (há sempre esse dia) em que tudo muda. E hoje foi um desses dias para mim. Estava com pressa, queria atestar o depósito, e tinha um vale de desconto para utilizar. Combinação fatal esta, entre alguém nestas condições e uma bomba com um letreiro pendurado a anunciar:
"PRÉ-PAGAMENTO OU PAGAMENTO NA BOMBA"
Dirigi-me à caixa e pedi em tom agradável,
- Não se importa de desbloquear a bomba 10 para eu poder atestar o depósito?
- Tem de fazer o pagamento na bomba, se quiser atestar.
- Sim, bem sei, mas tenho um talão de desconto para utilizar.
- Então tem de pagar aqui primeiro.
- Sim, bem sei, mas eu gostava atestar.
Depois de algumas bolas para lá, e outras tantas para cá, chegámos juntos à inovadora conclusão de que atestar o depósito e usar um talão de desconto são realidades incompatíveis. Antes que tivéssemos tempo de dar as mãos em agradecimento aos Deuses por este momento de improvável osmose, mandei a chata da tolerância esperar por mim no carro, e passei-me à antiga. Uma pessoa não pode estar sempre calada a comer toda a merda que lhe ponham no prato. Já fiz esse papel, e bem feitinho tanto quanto me lembro,
- Vá Sofia, ninguém se levanta da mesa sem comer a sopa toda.
Depois de sustida a respiração, lançava-me ao prato sem pestanejar.
- Acabei! já posso sair da mesa?
Para quem não sabe, eu já saí da mesa, e já comi toda a sopa que tinha para comer na vida, por isso, o que eu quero mesmo agora é o livro de reclamações. Ninguém sai da mesa sem eu escrever tudo o que tenho a escrever! E que já agora foi isto:
"Exmos Srs,
Desagrada-me profundamente a política de desconfiança que a Galp tem vindo a praticar para com os seus clientes. Sou uma pessoa séria, e exijo é ser tratada como tal. Do mesmo modo que os Srs legitimamente exigem que eu pague o combustível que abasteço. Não sei se estão a entender a lógica do: "eu faço a minha parte e tu fazes a tua". Eu não tenho de andar para trás e para a frente a fazer o vosso trabalho. É a Galp que deve encontrar uma solução eficaz para os clientes fugitivos, SEM PENALIZAR OS  CLIENTES CUMPRIDORES. Bem sei que a minha ginástica vos fica bem mais económica do que um simples sistema de cancelas capaz de fazer um controlo eficaz, mas atrevo-me a dizer que o preço do litro da mercadoria que os Srs comercializam, chega  e sobra.
Atentamente,
Sofia Cunha (ao momento com 237 batimentos cardíacos por minuto)"
Pensarão alguns estar na presença de uma princesa que julga ter nascido para ser servida. Infelizmente para a explicação simplória desses alguns, não é disso que se trata. Tão pouco se trata de um surto psicótico-comuna. Bom, talvez tenha alguma coisa de comuna.
O preço do barril subiu, e a gasolina subiu. Certo!
O preço do barril desceu, e a gasolina não desceu. Errado! Mas lá aguentámos sem refilar. E assim sendo: certo!
Os senhores de mala de couro a tira-colo deixaram de nos abastecer o carro, e a gasolina não desceu. Errado! Mas é mesmo assim, os tempos estão a mudar e temos de nos habituar. É o progresso. E assim sendo: certo!
Então e os senhores das malas a tira-colo a engordar as contas do desemprego?
Então a poupança resultante desse desemprego a engordar as contas das gasolineiras e não as nossas?
O IKEA vende móveis mais baratos porque partilha o trabalho connosco. Queres uma cama de casal  barata? Podes ter, mas acartas com ela às costas para a caixa, e depois para casa. Está certo! É justo. Tudo claro. Jogo limpo. A isto sim podemos chamar progresso, digo eu.
Não me caem os parentes na lama por andar para trás e para a frente na estação de serviço.  Mas assusta-me pensar nas milhares de pessoas que num dia não acharam muito grave ter de andar com uma estrela ao peito (é só uma estrela, que mal pode fazer?), e no dia seguinte andavam todos de pijaminha às riscas e corte de cabelo radical.
Desculpa mãe mas desta sopa eu não gosto. Tem agrião e mete-se-me tudo nos dentes. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mesa para vinte e nove, ou oito

Cheguei demasiado cedo. Em dias como este dez minutos de antecedência são mais do que suficientes. Meia hora é uma eternidade. Como é que só te lembraste disso depois de lá estares sentada a fingir naturalidade?  Ninguém aguenta trinta minutos de à vontade fabricado. Dez minutos no máximo, dizem as leis.
(E não me perguntem quais leis. As leis, ponto.)
Esgotei rapidamente os sms desnecessários que tinha mesmo de enviar, bem como as esquinas vazias para olhar... De tempos a tempos, o pezinho a balançar em sinal de ansiedade.
Puseram-me uma pastinha verde garrido na mão que mais ninguém tinha. Fui a primeira nova aluna a chegar. Fui a primeira a estar sozinha numa mesa do bar. Bom, a minha pastinha também foi a primeira a usufruir da negligência da dona e isso de alguma forma traz justiça à situação. Apeteceu-me engoli-la. Ou então perguntar ao rapaz da mesa ao lado
- Desculpa, esta pastinha verde garrido é tua?
Não tive tempo, porque ele
- Já não vais precisar desta mesa?
- Não, podes levar se quiseres.
Já não vais? Ensandeceste? Tenho idade para ser tua mãe pá! As mães não dizem pá, acho eu. A minha dizia.
Sim, leva a porra da mesa, e as cadeiras também. Deixa-me aqui sozinha numa mesa ridícula no meio das tribos de alunos veteranos de joelhos encolhidos colados uns aos outros. Vinte e nove numa mesa de quatro. Achas que faz diferença mais uma mesa ou menos uma mesa? Parece-te razoável deixares-me aqui nesta ilha de solidão, para passarem a ser vinte e nove numa mesa de seis? Uma mesa e duas cadeira foi o que me deixaste. As mesas estão aos pares por alguma razão, sabias? Quem és tu para mudar isso tudo? Como é que adivinhaste que eu não esperava ninguém? Eu que até tive o cuidado de não balançar o pezinho, eu que nunca cruzei os braços nem as pernas para evitar a linguagem corporal defensiva. Sabes o que custa aquele ar negligente com o braço apoiado na cadeira do lado? Eu tinha duas mesas e quatro cadeiras. Uma fortaleza. E tu, cheio de ti próprio arruinaste isso tudo com um simples
- Já não vais precisar desta mesa?
- VOU - Devia ter gritado.
Deixaste-me sozinha numa mesa com duas cadeiras. Podias ter levado também a cadeira em que eu  tinha o braço apoiado. Escusavas de a ter deixado ali perdida, sem mesa, com a minha pastinha verde garrido à vista de todos. Pior do que me deixares sozinha numa mesa, foi deixares-me na companhia de uma cadeira nua. Nua! Sabes o que é nua?
- Alunos do curso de Escrita Literária, venham comigo. Sala 7.
Tiveste sorte miúdo. Escapaste-te de boa porque tenho de ir para as aulas, senão ias ver.
Éramos oito na sala. Número mais que suficiente para uma tribo.
No intervalo para café o bar quase vazio e a ordem das mesas reposta.
Apenas uma mesa ocupada por sms desnecessários, e uma pastinha verde pousada na cadeira.
- Puxa mais uma mesa Sofia. Três chegam para nós todos.
- Desculpa, já não vais precisar desta mesa?
- Não, podes levar se quiseres.
Porém o pezinho a balançar mais do que nunca.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Provedor da bicharada pequena

1. Um elevado número (todos é muito, mesmo quando são só dois)  de Ácaros  tem reclamado pelo facto de a blogosfera em geral e o "Encalhando" em particular, persistir em confundi-los com o Caruncho.
2. O Ácaro é, comparativamente ao Caruncho, um bicho infinitamente mais popular entre o público em geral. Não há quem não tenha em casa uma mantinha remelosa cheia deles, para aquecer os joelhos nos serões mais frios. Já um soalho em madeira maciça, apetecível a uma tropa carunchosa voraz, não é para o bolso de todos (o caruncho refuta acusações de snobismo com relatórios de perícias médicas realizadas por vassouras pisteiras inglesas, que atestam a sensibilidade digestiva do Caruncho a soalho flutuante barato)
3. Independentemente das limitações médicas do caruncho, que muito me comovem,  não posso deixar de constatar que elas não são mais do que discussões paralelas que servem apenas para desviar atenções do cerne desta polémica: devem ou não o Ácaros sentirem-se humilhados por serem confundidos com o Caruncho?
4. Depois de profunda análise sobre esta questão, parecem-me justas as reinvindicações dos Ácaros, pelo que aqui fica a reposição da verdade:

Quem faz este chiqueiro...











... é o Caruncho e não os Ácaros.