quarta-feira, 7 de novembro de 2012

É só um instante

Um dia destes, hoje, acho, acordei determinada a morrer perfeita.
Não hoje; quando o meu tempo chegar, que já não deve ser hoje uma vez que o dia já vai longo, e não pretendo abrir a porta a ninguém.
Espero que o meu tempo também não chegue amanhã, nem depois, nem depois. Não se espera que me leve menos de três dias a resolver uma última imperfeição que tenho em mãos. É coisa complicada que não se alcança de um dia para o outro.
Tenho apanhado as malhas dos dias com a sofreguidão de quem não quer viver com as meias rotas, mas as filhas da mãe não páram de se suceder como foguetes malcriados, difíceis de domar. Costurei as que pude, e apliquei verniz incolor nas outras. Quase não se notam. Está um trabalho bonito de se ver, a sério. Na maior parte dos casos das que não soube coser, podia ter resolvido o problema, na hora, com o vermelho carmim da Risqué que tinha cá em casa. Mas não, preferi esperar e comprar o verniz adequado. Encontra-se por todo o lado, hoje em dia, até no chinês.
Cosidas ou envernizadas, o facto é que quase nem se dá por elas; as malhas, chamemos-lhes assim.
E durante muito tempo andei devagar, evitei meias demasiado finas, cadeiras de palhinha - que para quem não sabe, são verdadeiras assassinas de collants - e usei, todas  as manhãs, da maior cautela ao vesti-las, não fosse uma unha mal limada estragar-me o trabalho.
Mas um dia destes, se não me engano, hoje, acordei determinada a guardar a perfeição para o momento da morte. A morte é um instante, já a vida nem por isso - lenta e penosa, a vadia - e um instante de perfeição eu consigo garantir, basta apenas acertar no instante certo.
Por agora, enquanto esse instante não chega, arrisco. Comprei uma resma de meias elegantíssimas, densidade 8, e deitei fora uma gaveta inteira de meias elásticas, densidade 70, resistentes até a catástrofes naturais, óptimas para a circulação venosa e excelentes como método contraceptivo; ninguém se atreve a pegar numa mulher com pernas de cera, e quando surge um atrevido, é vê-lo suar até conseguir arrancar-lhe os collants.
Estou mais bonita, é certo - as pernas, pelo menos - mas tripliquei as horas dedicadas à costura, e esgoto frequentemente o stock de Risqué do chinês aqui da rua. Vou cosendo e envernizando à medida das necessidades e já não me preocupo tanto com a perfeição diária; ela vai acontecendo, aos soluços, mas convicta.
Na verdade nem sequer estou certa de querer resolver aquela última imperfeição.
- Fazia o quê, depois?
- Escrevia o quê, depois?
- Chorava o quê, depois?
- Ria com quê, depois?

- Abraçavas-me porquê, depois?

Apenas por precaução, apliquei verniz incolor num dos pares de meias elásticas antigas, e guardei-as. Agora já não me preocupo tanto. Quando chegar o momento certo, visto-as e pronto. Mesmo que a malha venha espreitar por cima do calcanhar no momento errado, não faz mal, puxo a meia com cuidado pela ponta dos dedos, escondo a imperfeição dentro do sapato e deito-me sossegada com as mãos sobre o peito.
Eu tinha avisado; um instante de perfeição consigo garantir.