domingo, 24 de novembro de 2013

O gato que há em mim

Mesmo não sendo admiradora de felinos domésticos, sinto que há um gato em mim. 
Não no sentido literal, naturalmente. Vai longe o tempo em que me parecia perfeitamente razoável,  que uma cobra engolisse um elefante inteiro, que mais tarde alguém usaria como chapéu. Ainda assim, lembro-me, com exatidão suficiente para ficar desde já horrorizada, das noites passadas a engendrar como haveria de me safar às ordens da mãe
- Põe o chapéu, Sofia!
Não há mãe que não se aflija com a cabecinha da sua cria ao sol. Para as proteger, espetam-lhes uma cobra com um elefante inteiro na barriga, em cima da cabeça. Bem pensado, de facto. Só os cuidados extremosos de uma mãe são capazes de parir tal ideia. Nada daquilo me fazia sentido, ainda mais por não ver nenhuma mãe, com animais selvagens na cabeça.
Os chapéus são coisas para crianças e agora que já não uso disso, deu-me para isto; 
para me achar contentora de um gato. 
Bem vistas as coisas, há evolução no meu processo mental. Seria pior, e bastante mais indigesto, se me achasse contentora de uma girafa, ou de outro animal exótico qualquer. Tal ideia jamais me passaria pela cabeça, é do conhecimento geral que não se engolem chapéus.
Quer o sol brilhe ou não, quer a mãe queira ou não, o que há em mim não é um chapéu, mas sim um gato.
Tenho um talento bestial para ser feliz estendida numa cadeira do meu terraço, a lamber enganos e pecados para fora de mim, durante um dia inteirinho. Quero chegar à noite toda emendada, por isso não faço intervalos para refeições nem nada. Não preciso de alimento para me deixar estar, sossegada, a crescer. A respiração reduzida ao essencial para que não me morra o corpo, e poupo anos de vida, penso. Que satisfação. O que não respirei agora, respirarei mais tarde, contigo. Nunca se sabe quando nos fará falta tempo extra, dias extra, horas extra, minutos extra, ou, no teu caso, um segundo extra que seja. Poupo para ti. Exalto-me por momentos ao pensar no nosso assunto, mas depressa retorno à sobrevivência da espera. Dez pulsações por minuto. Chega perfeitamente para o que vim aqui fazer; cuidar da higiene do passado e rezar-te no futuro. Não rezo com rezas ou assim, não me interessam orações. Rezar a sério é só pensar e querer com muita fprça. Rezar não é dizer palavras cadenciadas e desenhar uma cruz na testa ou no peito no final. Não. Rezar é cair, levantar, acreditar e fazer; tropeçar, continuar, acreditar e fazer... E assim sucessivamente até se cair de vez, ou até te encontrar de vez. 
- Tanta merda para chegares à brilhante conclusão que rezar é acreditar e fazer, Sofia! 
Rezar é um verbo, e um verbo pressupõe uma acção, qualquer professora primária pode confirmar isso mesmo. É um verbo falacioso, é certo, tal como esperar ou amar. A pessoa pensa que é só estar ali, sem fazer nada, e depois trama-se.
- Então e o gato, Sofia?
O gato ficou com o pêlo lindo, brilhante que nem dava para acreditar. Quem o visse parecia um gato novo, mas diz a vizinha de baixo que quando deixou o terraço, andou a noite inteira às voltas, engasgado. Pensava-se que morria, o desgraçado. Mas não, assim que me consegui livrar da bola de pêlo, pus-me a rezar.
Agora é só amar e esperar. Esperar e amar...


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Morgado

Em Fevereiro de 2012, durante o Curso de Escrita Literária da Restart, a minha querida professora Margarida Fonseca Santos, fez-nos escrever um conto infantil. Eu, que nunca me tinha imaginado nesse papel, escrevi. E pior, gostei. O Morgado ficou este tempo todo guardado na gaveta, sem desejo de ir a lado nenhum. Porém, o desafio de ler uma história aos alunos da sala da minha (sobrinha) do meio, a Joaninha, fê-lo sair. E agora é que vão ser elas. É que deixá-lo aqui para os graúdos, é uma coisa, mas lê-lo, ao vivo e sem as cores das ilustrações, a miúdos de sete anos, é um desafio muito maior.

***

O Morgado era um cão especial. Não só por ser da mais pura das raças, mas também por conseguir farejar uma lebre a quilómetros de distância. Tinha o faro mais apurado que o caçador alguma vez tinha visto. Era o cão de uma vida e por isso era tratado com exceção. Não se misturava com os restantes rafeiros.

Não! Nem pensar!

O Morgado era o príncipe da casa. Comia na sala junto à mesa dos donos, dormia numa banqueta forrada a pura lã de ovelha e usava uma coleira de couro verdadeiro, com uma medalha de bronze, onde se podia ler o seu nome e a morada do caçador. Nunca se poderia perder, o Morgado.

Não! Nem pensar!

Das poucas vezes que saía de casa, parava um momento à porta, levantava a cauda bem alto, enchia o peito com a enorme soberba de um cão de linhagem e, só então, com o nariz empinado caminhava altivo por entre os dezassete cães rafeiros, sem coleiras nem medalhas. Sua excelência, o Morgado ia só arejar. Olhava com desdém as brincadeiras empoeiradas dos rafeiros e seguia o seu caminho, em bicos de pés, para não se sujar. Não estava ali para brincar com cães de pêlo cerdoso e patas cheias de lama.

Não! Nem pensar!

Aos domingos de caça os dezassete rafeiros de perna curta viajavam amontoados num atrelado velho e ferrugento, enquanto o Morgado seguia viagem, magnificamente instalado, numa manta felpuda colocada traseira do carro, onde dormia tranquilo durante a longa viagem até à floresta onde moravam quase todas as lebres do Universo. Só raras vezes levantava ligeiramente a cabeça e espreitava, arrogante, a balbúrdia que ia no interior do atrelado. Jamais se poderia ali imaginar.

Não! Nem pensar!

Durante a caçada seguia confiante na frente da matilha, de cabeça baixa, focinho rasteiro, e numa linha recta que só o Morgado, cão de raça pura e faro delicado, sabia desenhar. Os dezassete rafeiros seguiam-no em Ss desastrados, com a cabeça no ar e sempre a espiar o mestre que os havia de comandar. Os rafeiros não precisavam de farejar.

Não! Nem pensar!
O ilustre Morgado sabia muito bem para onde os levar.

Um dia, porém, aconteceu o que ninguém podia imaginar. O distinto Morgado deixou de conseguir cheirar, e o caçador furioso queria-o mandar matar. Mas a mulher ofendida, com tão monstruosa ideia, gritou de imediato:

- Não! Nem pensar!

O caçador, contrariado, obedeceu à mulher, mas nesse mesmo dia, tratou de o castigar. Arrancou-lhe a coleira com um puxão e atirou-o para a rua, dizendo:

- Aqui em casa, não! Nem pensar!

Os primeiros tempos não foram nada fáceis para o ilustre Morgado. Foram até de grande desgraça, o pobre Morgado levou tempo até se acostumar. Dormir ao relento não tem graça nenhuma, e é muito triste não ter com quem conversar. Os rafeiros, toda a gente sabe, são cães que só sabem ladrar. Mas o pior chegou no domingo seguinte em que foram caçar. Ia o ilustre Morgado trepar para o banco traseiro, quando o caçador gritou:

- Sai daí malandro! Esse já não é o teu lugar!
e chamou outro cão, dez anos mais novo e acabadinho de chegar:
- Anda daí, rapaz, o teu reinado está só a começar.

O Morgado teve de se convencer que era no atrelado que teria de se enfiar. Meteu o rabo entre as pernas e, ajeitou-se a um canto, com as beiças cheias de baba de um rafeiro a taparem-lhe o olhar. Desgraçado da vida o ex-magnífico Morgado, estava triste que doía, e quando viu o outro cão, todo aprumado, abrir um enorme bocejo do alto do seu ex-lugar, partiu-se-lhe o coração e desmanchou-se a chorar. Então e não é que um dos rafeiros, que o Morgado suspeitava só saber ladrar, de pronto lhe disse:

- Deixa-te disso! Queres brincar?

O Morgado não fazia ideia o que isso era. Em casa do caçador costumava passar o dia inteiro a relaxar. Mas disse logo que sim, afinal não custa experimentar. Aquilo é que foi um reboliço no atrelado. Os rafeiros estavam loucos de felicidade por terem o mestre Morgado junto deles. Pouco lhes importava se conseguia cheirar, ou se não conseguia cheirar. Mordiam-lhe as orelhas, puxavam-lhe o rabo, tudo com jeitinho para não o magoar.

Não! Nem pensar!

O atrelado fez o caminho num verdadeiro virote, a balançar para lá e para cá. Foi uma sorte não se virar. De início o Morgado não sabia o que pensar. Não era mau de todo aquilo da brincadeira, mas o mau hálito dos rafeiros era difícil de suportar. Enjoou um pouco ao princípio, mas estava tão entretido com a galhofa, que pouco tempo depois já não dava por nada. Aliás, a meio do caminho lembrou-se, que já nem sabia cheirar. O mau cheiro que sentia só podia ser obra da sua imaginação. Quem é que disse que os rafeiros cheiram mal? Deve ter sido o caçador que nem sabe farejar.
Assim que chegaram à floresta saltaram todos cá para fora num reboliço que só visto. Aquilo é que foi correr sem parar. Tinham quase todas as lebres do Universo para caçar e tinham que se despachar. Os rafeiros corriam que nem tontos de um lado para o outro como de costume e o Morgado seguia-os para os tentar imitar. No fim da caçada, com as patas enlameadas e as beiças cheias de baba de tanto brincar, o Morgado deitou-se na relva, ao sol, de papo para o ar.

A caçada tinha sido uma desgraça. Nem uma lebre para amostra. O cão novo, coitado, não estava habituado a caçar. Apesar de um faro bestial, faltava-lhe experiência para se saber desenrascar. O caçador furioso com o seu novo cão de caça que afinal não sabia caçar, chamou o Morgado para a traseira do carro:

- Anda velhote, sempre dás para remediar! Este desgraçado caríssimo não serve nem para....

O ex-ilustre Morgado nem o deixou terminar. Fugiu para o atrelado e gritou

- Essa agora... Nem pensar!