quarta-feira, 11 de julho de 2012



Se desse, era isto:


Não sei se é literário,
mas tem linhas,
e nuvens,
e um tipo no sítio errado,
e letras.
Não são letras, são pombos!
Olha... então já não dá.




[Treta originalmente publicada em Novembro de 2011 num blog já morto e ressuscitada aqui]

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A graça da Graça

À noite escolho sempre o vestido.
Não por vaidade, apenas por ser mais confortável.
Ontem, por ser já muito tarde e chover desalmadamente, fiquei na dúvida; talvez as calças fossem uma escolha mais inteligente.
Abri o armário e os colares ecoaram violentamente na porta de madeira, em três intensidades distintas, até se silenciarem inertes.
(Se calhar não foi assim tão boa ideia pendurar ali as bugigangas todas)
Bom, dizia eu, abri a porta do armário e nem um único par de calças passado a ferro. Estava deliberada a sentença sem possibilidade de recurso: hoje usaria o vestido. Aprecio quando o Universo (para os mais esotéricos) ou o acaso (para os mais descrentes) tomam decisões. O acaso tinha-se decidido hoje pelo vestido e nem por momentos desejei questioná-lo. Agradeci-lhe apenas.
Tinham passado doze dias desde o meu último vôo, e a rotina que automatiza os preparativos de forma irrepreensível, encontrava-se já algo esbatida. Por ser nestas alturas que deixo para trás coisas importantes como as havaianas ou a escova de dentes, fiz a mala com o maior dos cuidados. Fechei-a, segura de faltar nada, e transportei-a em peso até à porta para não incomodar a chata da vizinha de baixo.
Enfiei o vestido pela cabeça, contorci-me para chegar ao fecho das costas, corri-o de uma só vez até ao pescoço com a prática das surfistas profissionais, e ajeitei-o ao espelho enquanto descontraía os braços do esforço. À excepção do fecho traseiro, o vestido é de facto uma peça descomplicada. Não é preciso entalar constantemente a camisa na saia de cada vez que se levantam os braços. Há quem a prenda nos collants para prevenir o incómodo, mas eu ainda não me rendi a essa solução, com a mesma convicção com que me recuso a usar touca de banho quando não quero molhar o cabelo: dá jeito, sim senhora, mas não há auto-estima que resista a qualquer uma das duas imagens. Enquanto não se proibirem os espelhos, ninguém me apanha com a camisa presa nas meias, ou com uma touca de banho de elástico franzido a vincar-me a testa. Naquele dia lavei o cabelo, substituí a camisa pelo vestido, e tive inclusivamente o cuidado de não arrastar as rodas da mala no soalho de pinho, para não aborrecer a Graça.
A Graça aborrece-se com facilidade, e não me custa nada facilitar-lhe um serão em paz, pelo menos enquanto a minha coluna colaborar. Para não lhe perturbar a telenovela, vagueei pela casa de vestido formal e chinelos de pêlo, enquanto tomava as últimas providências para que tudo ficasse tranquilo na minha ausência. Janelas e estores devidamente fechados para não entrar água, um breve aceno de perdão às bubanvílias do terraço por deixá-las entregues à sua própria sorte e ao mau humor do vento, luzes apagadas, televisão desligada no botão para poupar meia dúzia de cêntimos que não fazem diferença a ninguém mas que o planeta agradece, e tudo mais que me garanta as coisas no mesmo sítio quando voltar a casa. Talvez não as buganvílias.
Neste vai e vem de guardiã, mesmo de chinelos felpudos, é impossível evitar por completo o chiar da madeira. Sei bem onde mais lhe dói e evito lá pisar, mas o soalho está velho e já lhe sobram poucas zonas sem mágoa, pelo que o bem estar da minha vizinha de baixo não depende apenas da minha boa vontade, mas também da saúde do desgraçado de pinho.
Por sentir alguma agitação no andar de baixo, detive-me alguns momentos antes de sair a porta e dar início ao momento mais temível para a telenovela da Graça: descer três andares de escadas ínvias de madeira, com uma mala de doze quilos nas mãos, e sete centímetros de saltos nos pés. Ainda considerei a hipótese de descer as escadas descalça, e assim teria feito, não se desse o caso de ter as duas mãos ocupadas. Entre evitar o conflito com a vizinha, ou o ridículo de ser apanhada com os sapatos pendurados na boca, decidi-me por conservar a dignidade.
Com a mala pousada no chão e a porta ainda fechada, subi para os sapatos que me aguardavam à saída, chutando os chinelos para o lado num (dois, neste caso) trejeito(s) decidido(s), respirei fundo, levantei a cabeça e deitei a mão à chave. Abri a porta, em bicos de pés passei cuidadosamente a mala para o lado de fora, e dei três voltas à fechadura com os ombros encurvados na esperança vaga que a postura asfixiasse o barulho.
- Endireita as costas! Onde já se viu, uma rapariga da tua idade com medo de uma vizinha.
- Não é medo, é respeito.
(Tinha aprendido esta desculpa em pequena durante as férias de verão na Ericeira, e desde então usava-a sempre que me dava jeito, mesmo que não fizesse sentido nenhum)
Endireitei as costas, enchi novamente o peito de ar, e lancei-me às escadas num sapateado inevitável de quem usa sapatos dois números acima para prevenir o incómodo das dilatações próprias da altitude. Quem apenas me ouvisse, nunca diria que me esforçava por não fazer barulho, mas quem me pudesse ver, não teria qualquer dúvida. A carteira a tiracolo atirada para trás das costas, as duas mãos na pega da mala a tentar equilibrar doze quilos de bagagem sem arruinar o verniz dos degraus de madeira, nem romper os collants, as pontas esvoaçantes do lenço de seda a taparem-me os olhos,
(quem deixou a porta da rua aberta?)
e as passadas largas
(mais humilhantes que um par de sapatos na boca)
a desenharem círculos vagarosos no ar, para não falhar os degraus, nem deixar cair os sapatos.
Apesar do esforço, era inevitável que o salto batesse primeiro no degrau, e eu sabia muito bem que quarenta e cinco tacadas daquelas jamais poderiam passar impunes aos ouvidos da temível Graça.
(Engraçado ela chamar-se Graça)
Como sempre acontecia, lá por alturas da décima quarta chinelada, a respiração treinada cessava de conseguir controlar a ansiedade. O coração disparava, o mais pequeno ruído
(até mesmo o mais pequeno silêncio)
parecia-me o som da porta da vizinha a abrir e, a descida inicialmente pausada entrava em modo de aceleração descontrolada, que só por mero acaso nunca resultou em tragédia. Saltando os degraus aos pares, aterrei cá em baixo, desfeita. O rabo de cavalo pendurado de lado, o rímel desbotado pela pele humedecida de medo e, claro, as meia rasgadas.
No momento em que a porta da rua se abriu, dei-me conta de que nem sequer tinha posto o lenço naquele dia.
- Boa noite menina. Mais uma viagenzinha? Tem de ser, não é?
- Sim, tem de ser.
- Tenha cuidado, olhe que chove que Deus a dá.
- Obrigada Graça, até sexta. - Respondi com um enorme sorriso apavorado.
Tenha cuidado?
Tsst... Olha que esta!
Como se a chuva fosse coisa para me amedrontar...


[Treta originalmente publicada em Novembro de 2011 num blog já morto e ressuscitada aqui]

quinta-feira, 5 de julho de 2012

O tamanho das coisas

          O sacana grande brincava com o rapaz pequeno de manhã, e sacudia-o com força à noite. Algumas noites. Cada dia mais noites. O rapaz pequeno quase não existia, respirava apenas, para que o sacana grande pudesse brincar com ele de manhã, e sacudi-lo com força à noite. A mãe do rapaz também era pequena e também quase não existia, por isso o rapaz pequeno acreditava que era assim mesmo, que bastava respirar. Algumas manhãs o rapaz pequeno desejava vagamente existir, mas o dia acabava cedo, e a tasca do Sr Simões fechava tarde.
          Respirava apenas, então.
          A mãe pequena do rapaz pequeno existia mais um bocadinho, mas apenas o suficiente para conseguir ir às compras. Como castigo por não conseguir tratar do jantar sem ter de ir à rua, o sacana grande sacudia-a ainda mais violentamente.
          O rapaz pequeno cresceu, e acabou por descobrir o verdadeiro significado da expressão "anda cá que eu sacudo-te as moscas". Descobriu também que nenhuma mosca alguma vez sobreviveu à expressão. Felizmente o rapaz nem sequer existia, pelo que não podia ser uma mosca.
          Um dia, pela manhã, o rapaz pequeno agarrou numa faca grande, e com as mãos que tinha graças a não ser uma mosca, fatiou o sacana. O sacana ficou finalmente pequeno. Muitos bocadinhos pequenos.
          A mãe acabou de fazer a sopa, limpou as mãos encarnadas ao filho, arrumou as malas, e partiu com o rapaz para o lado de lá.
          A Rosa Maria e o Miguel viveram felizes para sempre numa casa cheia de moscas.
          O sacana grande, agora pequeno, nunca chegou a ter nome.
          Nem na lápide.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O fim das coisas

O fim devia vir sempre no meio.

Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e ele... doce... pôs...
Era simples, Miguel.
Parece contraditório, mas não é. Tu é que estavas cansado e baralhaste tudo.
O fim é uma coisa demasiado importante para acontecer apenas no final,
e assim sendo,
o fim devia vir sempre no meio.

O fim de um livro, por exemplo, jamais se devia deixar adivinhar pela mão direita vazia, três folhas apenas, fininhas, numa mão suada a ansiar o beijo demorado dos amantes que se desejaram durante demasiadas páginas para que acabem por não se beijar no final,
os amantes.

Uma mão vazia e suada porque sabe tão bem que o beijo dos amantes não cabe em três folhas apenas.
Uma mão suada a desesperar com o desespero dos amantes que não chegam a beijar-se,
ou a desesperar com os amantes suados quando o beijo chega.

Os amantes beijam-se sempre, mesmo que seja só no final. E também por isso,
o fim devia vir sempre no meio.

O fim dos livros, de alguns livros, daqueles em que se beijam os amantes, pelo menos,
devia vir sempre no meio.
O fim desse livro,
(é sempre o mesmo livro, independentemente dos nomes dos amantes)
devia acontecer com a mão direita ainda gorda de folhas,
mesmo que em branco, e fininhas,
desde que muitas.

Muitas folhas a não deixarem adivinhar que o fim se aproxima,
ou não deixarem temer que o beijo nunca chegue.
Bom, adivinhar ou temer, pouco importa. O importante é que se beijem,
os amantes.

Mas sem a mão gorda de folhas...
Sem a mão gorda de folhas o beijo não pode chegar, caramba!
O beijo dos amantes não cabe em três folhas, apenas.
Não, fininhas, assim.

Acho que não pedi demais. O homem vai à Lua, Miguel. O fim no meio não pode ser coisa complicada.

Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e ele... doce... pôs...
Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, mas esqueci-me de lhe dizer qual meio.
(Foda-se, como é que me fui esquecer de lhe dizer qual meio.)
(Era no meio do livro, Miguel.)
Um dia pedi ao Miguel que pusesse o fim no meio, e o cabrão meteu-o no meio dele.
Eu pedi, e ele... doce... pôs...
mas enganou-se,
ou cansou-se.
Foi isso, o cabrão cansou-se e agora não há nada a fazer.
Não há mão gorda de páginas brancas que lhe resolva o corpo gelado.
A temperatura é coisa que não deixa dúvidas.
O fim já foi.
Logo o teu.
E bem no meio, Miguel.
Logo no meu.

O homem vai à Lua, caramba!
Até um sacana de um cão já foi à lua. Uma lassie, um cão de cabelo esticado, imagine-se.

O fim devia vir sempre no meio, sim.
Mas não no teu, Miguel.
Não no teu.
Ou pelo menos não no meu, caramba!
Logo eu, que estiquei o cabelo de propósito.
Logo eu, que queria tanto ir contigo à Lua.