sábado, 26 de dezembro de 2015

Elogio da morte

Talvez devesse deixar de fumar. 
É um vício social, pouco  mais. Afinal só gosto de fumar acompanhada. 
Mentira, Sofia. Aliás, grande mentira, Ana Sofia! 
A idade tem-te refinado na mentira. Estás cada vez melhor. Cada vez melhor no que trata de te convenceres do que te convém. Que é como quem diz, estás cada vez pior. Por agora, decido melhorar um pouco: gosto de fumar de qualquer jeito. Sozinha, ou acompanhada. Não melhoro tudo, se decido seguir a fumar... Pouco importa. Preciso de medir o tempo em qualquer coisa mais palpável que um relógio. Talvez não mais palpável, apenas mais activo. A inacção desestrutura-me. Dá-me tempo em demasia para pensar. Por isso fumo. Preciso de movimento, de sentir que faço a roda girar. Mesmo que não faça. Cada ano mais refinada, já sei... Deixa-me estar. A roda enorme, não me cabe na mão. Nem nas duas, abertas. Acendo um cigarro. Meço as horas contigo em braseiros ardidos a dois, e as horas sem ti em braseiros sugados à tua espera. Às vezes não chegas. Acendo outro. Quando chegas, um terceiro, e um quarto, os dois a arderem devagar na nossa pressa. A medirem o crepitar exacto da nossa vontade. Longas puxadas incandescentes a dois. Tão grande, a nossa urgência. Não fosse pelos cigarros, já teríamos chegado. 
Onde vamos, hoje?

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

...

Procura-me onde não sei se estarei
Desconheço para onde vou
É por isso provável que lá me encontres... 
Já cheguei?
Segura-me firme, não me deixes fugir
não sei se voltarei
Precisa-me nestas horas de nada, nem de ninguém
Procura-me, que não te encontrei
Encontra-me por Deus
juro que te procurei.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Da virtude

A virtude não está no meio, está nas pontas.
No meio está, sem dúvida, o aperto, a dificuldade séria disto tudo, porém não a virtude.
Está a escolha, a espera, a incerteza. Enfim, o caminho. Porém, não a virtude. Ser isto e não aquilo. Optar. Acertar. Cair. Escorregar. Levantar.
E apertar, apertar...
E mesmo com força, voltar a escorregar. Passar horas, dias, meses, anos, um segundo que seja, sem acertar. Só errar. Depois encontrar, segurar, e voltar a escorregar. Cair e levantar. Nunca saber, só esperar.
Aguentar, aguentar...
No meio está isto tudo, porém não a virtude.
É bonito, mas não é a virtude.
Não duvidem, meus senhores, a virtude está nas pontas. Viver sem medo. Ser assim e gostar. Não ter pudor. Não pensar muito se revelar, ou ocultar. Mostrar. Dizer, de preferência a gritar. Na virtude não há limite de coragem ou decibéis. É ter coragem de ser, e clamar
O que é a virtude?
É decidir e respirar
O resto é alcatrão para lá chegar.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sueca de jardim

          A vida comove-me sempre mais que a morte.
Não que a morte não me comova, claro que comove, mas com a vida... com a vida é outra coisa. A morte, zás!, já a vida, zááááá..., não sei se me faço entender. Provavelmente não. A vida comove sem precisar de fazer barulho, sem se dar por ela. A morte não. A morte pinta as beiças de vermelho vivo e grita-nos aos ouvidos. A vida não tem beiças, tem uma boca pequena, vagamente animada com um rosa discreto e sussurra ao ouvido de quem a puder ouvir. Quase só respira. Quente. E a um só ouvido. Fá-lo sempre a um só ouvido. O outro, o ouvido, deve estar entretido com o resto que acontece, e que, não sendo a vida, é fundamental que exista, para que a vida possa acontecer.
          Melhor agora?
          Ainda não?
          Estão desatentos, vocês!
          Capaz de a vida vos respirar ao ouvido livre - têm um ouvido livre, espero!- e ninguém lhe obedecer. E depois bem podem libertar o ouvido, ou os dois, até, que a vida já não se importa.
          É simples,
          a vida záááááááááÁÁÁÁÁÁáááááááááááááÁÁÁÁááááááááá...
          Como o mar.
          Se não se põem a pau,
          se não nadarem,
          vem uma onda e ÁS!

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Banquete

         
          A miúda tem qualquer coisa, mas não sei o que é.
          À conta desta coisa que, sem nome, não é mais do que coisa nenhuma, agora faço listas para tudo. Sem listas não existo. Poupe-me a esse olhar enviesado, o senhor ao fundo. Não lhe agrada, andor. Não entende nem lhe apetece esperar, faça o favor. Acalmem-se os restantes, não pretendo divagar à cerca da memória e da idade, e de como as listas ajudam a retardar o fedor do envelhecimento. Nada disso. São outras as listas de que falo, são as nossas listas. Espanta-se provavelmente porque nunca precisou de as escrever, mas que as tem, tem. Desengane-se se acha que sou caso único. Aliás, agradeça-lhes pois sem elas não poderia brilhar, como brilha, nas conversas de café, ou nos jantares de família, ou nas reuniões de liceu, ou na conversa casual, inocente, com a amiga encalorada que encontrou no supermercado. Faz sempre calor nos supermercados. Menos nos iogurtes. Até nas carnes, refrigeradas. Pedaços de corpos nas montras; o porco dividido em freguesias num cartaz lá no alto; o puto que berra porque quer o puzzle do porco; a mãe que não, que aquilo não é um puzzle; o pai que sim que o puto é um mimado por culpa da mãe que não tem mão nele; a loura nauseada que é inadmissível, que os pais não deviam trazer as crianças às compras; e o porco, ao lado da vaca, que podiam tão bem ser um puzzle. Duas febras de Arroios a ver se o puto se cala.  
          À parte de um ou outro disparate proferido, talento que herdei de família, não costumo brilhar nos jantares. Não sei o nome do filme que adorei, nem do actor pricipal, quanto mais do secundário, ou da personagem, meu Deus, nem da personagem, Ana Sofia?; não sei como se chama o restaurante vegetariano perdido no meio do salgueiro-chorão de um jardim de Lisboa, com luzinhas de Natal o ano inteiro, como é que não te lembras do nome, rapariga? Luzinhas de Natal o ano inteiro, de que mais precisas?; Também não sei o nome do primeiro Presidente da República de Portugal, nem da primeira, nem da segunda, nem da terceira. Nem sei se são três as Repúblicas, acho que sim, mas, de facto, não sei. Há quem confunda achar com saber. São coisas diferentes em profundidade. Uma é chapinhar na poça, a outra é dar um mergulhinho de mar. Para muitos, salpicar a cabeça é quanto baste. Para mim não. Desculpem. Se não engoli, pelo menos, dez pirolitos, não, não sei. E normalmente não sei mesmo, porque não mergulhei. Não experimento aqui nenhum elogio à minha profundidade de conhecimentos, nada disso. Deus sabe que não padeço desse mal, da profundidade. Invejo quem padeça, mas também não desgosto desta existência arejada, sem amarras de sabedoria. Sei o que amei e nada mais, sempre sem saber porquê. Prefiro assim, surpreendo-me mais. Depois, se calhar saber, é uma festa. É de gestão de expectativas que aqui se fala. Se esperar nada, há-de me chegar qualquer coisinha. Bastante medíocre este pensamento. Ou não. Acho que o meu pai diria que não, por isso, para mim não. Mas medíocre na mesma.
          Muito medíocre a minha prestação em jantares, dizia eu. Nunca nada de concreto para dizer, o que, mesmo entre amigos, dificulta a comunicação. Interessam-me sempre mais as impressões das coisas do que as coisas em si. É mais fácil falar das coisas do que da sua impressão. Mais fácil não será, mas mais rápido é certamente. E não temos muito tempo, é certo. Também é mais fácil ouvir, imagino. Claro que mais fácil, se mais rápido. Por isso agora faço listas de tudo. Dos livros que li, dos autores que gostei, dos que nem por isso, dos restaurantes onde fui, dos espectáculos a que assisti. E assim já posso ser à vontade, e quem sabe brilhar um bocadinho ao jantar. Saco as minha listas e depois calem-me se puderem. Fui ver o último filme de tal e tal, da trilogia de tal e tal, realizado em 19tal e tal, fulano tal e tal faz um papel estrondoso, e estou agora a ler o livro tal tal, de fulano tal tal, um talento este americano, apesar de nascido nos confins do estado de tal e tal...
          - No estado de tal e tal? Mas isso fica onde?
          Faço um esforço para não desfazer em pedaços as listas que tenho. Em nenhuma delas encontro a resposta à pergunta. Inúteis uma a uma. Inútil tu também. De tantos tais e tais sobra-te um magnífico Isso fica onde? Encho-me de R´s: Respiro fundo, retomo a compostura, rasgo-as devagarinho, e respondo num sorriso redondo
          - Ora, deixe cá ver, se o puto não desfez o puzzle, há-de ser ali por baixo da vazia.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Da segurança.

Fiquei à beira do choro.
Não à beira das lágrimas, ou com os olhos rasos de água, como fico quando alguma coisa me comove. À beira do choro compulsivo. Os olhos só vermelhos, sequinhos, à espera de rebentarem à vontade. A engolir em seco e a arranjar desculpas para sair de fininho da sala, e ir afogar  o barulho do choro nas mãos. Não queria preocupar os pais. Ou talvez não quisesse perguntas
Estás a chorar, Sofia?
nem respostas
Comoveste-te, Sofia.
Acho que não foi bem isso que aconteceu.
Não foi tanto a alarvidade do agente. Foi o miúdo.
Não sou diferente nesta matéria. A todos chocou especialmente o desespero do miúdo.
Mas acho que ainda não foi bem isso que me aconteceu.
O que me tirou três vezes da sala para me recompor, foi o terror do miúdo pelo pai. Foi o outro polícia a ampará-lo, a guardá-lo, um escudo de vidro tão forte, enorme, a proteger mas a deixar ver tudo. Um fotógrafo interessado, outro polícia de cócoras, o miúdo aflito e toda a gente a saber que o miúdo aflito.
Vai ficar tudo bem
Um abraço apertado no escudo de vidro, enorme. O miúdo agitado e uma mão larga a empurrá-lo para o peito. E eu cá de fora  a querer dizer-lhe
Não olhes para aquilo
Vai ficar tudo bem, miúdo.
Pensa só Viva o Benfica
Já vai passar
esquece tudo e Viva o Benfica
Pensa que o teu pai é enorme, não são cinco polícias blindados que o desfazem.
Não, não penses nos polícias blindados.
Esquece os polícias blindados a desfazerem o orgulho do teu pai à porrada,
a desfazerem o teu orgulho no pai à porrada.
Não se desfaz essa matéria à porrada.
E eu ali, engasgada no choro e na contenção, quase a desejar ser o miúdo. Ou ter um escudo. Mesmo que fosse de vidro.
Mesmo que se pudesse ver tudo.
As pernas oblíquas pregadas ao chão, os braços a afastarem o corpo da barriga do polícia, o choro de boca aberta. E um abraço rijo, uma mão larga a forçar-me a cabeça no peito
Vai ficar tudo bem, miúda.
Nada disto se desfaz à porrada.




sábado, 28 de março de 2015

Clap, clap, clap, Doutora!

Tenho andado demasiado sóbria para o meu gosto.
Uma pessoa habitua-se à boa vida e depois não quer outra coisa. É normal.
O ser humano é uma coisa estranha. Deseja. Alguém dá (não me venham com a treta do senhor lá de cima. Chegar até aqui deu-me uma trabalheira dos diabos). E ele ainda reclama. 
E como não é um alce que está escrever; reclamo. Claro que reclamo!
Eu pedi paz, só isso. Não mais do que isso.
Fiz tudo o que me mandaram. Gastei uma pipa de tempo e duas de dinheiro em terapia, tomei os azuis de manhã, os brancos ao lanche e o redondinho em s.o.s. Enquanto o processo durou, parecia perfeito. Uma ilusão de movimento, de caminho para algum lado. 
Ora, Dra, deixe-me que lhe diga: este sítio para onde lhe pedi que me mandasse, e para onde me mandou sem me perguntar se queria. de facto, lá chegar (o canudo é seu, convenhamos), é pior que a morte. Não acontece nada aqui. Não existe nada aqui. Quase nem eu. Está tudo tão certo que chega a não importar se está bem. Está sempre tudo tão na mesma que o adjectivo se torna dispensável. 
Está.  
E assim estou eu também. Os azuis de manhã, os brancos ao lanche e o redondinho em s.o.s....
Estou.
Está aí alguém?
E agora, o que faço com isto?
Gosto?
A sério?
E se tomasse o redondinho de manhã? Talvez a coisa se animasse.
E se fumasse um cigarro no quarto alugado? 
E se fumasse um cigarro na sala da casa do quarto alugado? Isso é que era uma barrigada de riso.
Uma barrigada de riso com uma coisa sem graça nenhuma. Nem na adolescência me ri de parvoíces do género. 
Foi aqui que me trouxe, Dra. Estou capaz de tudo por um bocadinho de qualquer coisa. 
Acendi o cigarro. 
Porra! 
E agora, o que faço com isto?
Gosto?
A sério?
No caso até é fácil. Adoro fumar. Pesa-me na consciência que mate, mas só por um bocadinho. Passa-me logo. (Estou bem resolvida, Dra. Está a ver? Valeu a pena.) Adoro puxar o braseiro com um suspiro fundo, tão fundo, e deixar sair o fumo sem pressa. Trabalha à entrada e à saída, o fumo. Um escravo. O escravo que me resta. O único escravo que me apetece. 
Assim é no sítio onde cheguei. Uma falta de graça que magoa. 
Pode ser falta de hábito. 
Mas ele há coisa mais disparatada do que me esforçar por gostar de uma coisa tão desengraçada? Não, Dra, perdoe-me o mau jeito, mas aqui não fico. 
Não é nada de pessoal, Dra, acredite, mas tenho uma casa inteira para arejar.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Lenga-lenga derradeira


Três pêlos na cara
muitas rugas no queixo
dentes num copo
cabelo de desleixo

Um altinho nas costas
raízes grossas nas mãos
tantos risquinhos na boca
quatro rodinhas no chão

Uma dor de verdade
da doença de enfeite
traz-lhe um chá bem quentinho
e arranja que se deite

Já não vai saltar ao eixo?

Sorriso grande
sem risquinhos marcados
o copo vazio
os dentes molhados

Porque ao eixo não pode
vai saltar ao pé coxinho
resta saber se alguém
lhe faz rolar o caminho

Enrola o melão
desenrola a melancia
quem fará a gentileza
de empurrar a minha tia?

É que agora não posso
estou muito atrapalhada
Não contes comigo para isso
para quê empurrar o nada?

Para que brinque um nadinha
mesmo um nadinha de nada
o parque vê-se daqui
coitada se morre sentada

Se a empurrares de mansinho
salta logo do carrinho
mal veja outro nadinho
rolado por gente ocupada