quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Gosto mais de olás

Nunca sei muito bem como me despedir por escrito. Ao vivo é simples: um aperto de mão ou um beijo, depende. Ao vivo pode dar-se cor a um aperto de mão ou retirar-se excesso de intimidade a um beijo. Por escrito não. Pelo menos eu não sei.
Nunca imaginei encontrar limitações na escrita. Ou melhor, não queria nada encontrar limitações na escrita.
Desiludiste-me, ouviste?
Um beijinho é piroso e infantil.
Um beijo é de amor.
Um abraço é masculino.
Um até breve é quase sempre mentira.
Um aperto de mão não se escreve.
(Caramba, não há apertos de mão feitos de letras)
Desiludiste-me, ouviste?
Estava aqui a pensar que o beijinho ali de cima só é infantil e piroso, quando precedido do "um". Beijinho por si só é adulto, porém demasiado beto. Também não serve, portanto. O "um" é que dá idade ao beijo e não o "inho". Incrível.
Surpreendeste-me, ouviste?
Apesar de masculino, gosto do abraço escrito, mas a verdade é que ninguém anda por aí a abraçar-se. Abraçam-se os antigos companheiros de tropa, intercalando apertos com fortes palmadas nas costas, a confirmar a dureza que os fez sobreviver à guerra. Abraçamo-nos também todos muito nos velórios, para esconder as lágrimas nos ombros daqueles que não são netos do falecido.
(Acabo de sugerir que chorei no velório da minha avó. O que é mentira. Não chorei. Mas se gostasse de chorar em bando, teria chorado)
Um abraço é uma pieguice. Chorar abraçado é uma pieguice pior. Chorar abraçado no velório de uma avó velhíssima, que morreu sem dor, limitando-se a deixar de respirar,
(apre, que até morrer soubeste fazer bem)
é abaixo de cão.
Se fosse a tempo de te escrever uma carta para me despedir...
Ainda bem que não vou.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Cisco sem olho

O cabo ferrador tinha uma lágrima importante que eu não vi.
Numa primeira leitura, confundi-a com as lágrimas de bagaço. Só à segunda me dei conta daquela pérola ali escondida, a implorar ser descoberta.
Que raiva, quase não via aquela lágrima.
Fico triste por não a ter encontrado à primeira, e feliz por lá ter voltado a tempo de a secar.
(porque é que eu nunca posso ficar apenas uma coisa, ou outra?)
Uma lágrima diferente, escondida, que eu só soube distinguir depois.
Para o cabo ferrador dá-lhe igual que eu lhe descubra a lágrima importante à primeira, ou à vigésima sétima vez. Está para ali escrito, imortalizado numa crónica, tem tempo.
São as tuas que me assusta não ver à primeira.
(também me assusta um bocadinho que não vejas as minhas)
Quantas lágrimas de verdade terei ignorado por ignorância?
Desculpa-me pelas lágrimas que eu não fui capaz de ver, ou que confundi com restos de um bocejo banal. Se pudesse voltava atrás.
Alguns dos meus restos de bocejo também te passaram ao lado que eu bem me lembro. Uns porque eu assim quis, outros que apenas fingi querer esconder.
(devem ter sido mais os que fingi querer esconder)
Acho que desejei sempre que fosses capaz de ver mais além
(mais dentro neste caso)
e foste muitas vezes. As suficientes pelo menos.
Podemos ter uma lágrima secreta.
Queres ter uma lágrima secreta comigo?
Eu quero.
Se temos de ter lágrimas (e tenho), que seja contigo, e que seja secreta.

... e mais uma lágrima de cisco, num cisco sem olho.
(Esta podes fazer de conta que não viste. Não importa)

Está lido

Vergílio Ferreira disse-lhe isto:
"Recomeça tudo de novo. A terra não pode morrer. Como viveria ela sem ti?"
e ele disse-me isto:
"Recomeça tudo de novo. A terra não pode morrer. Como viveria ela sem ti?"
e eu li isto:
Amo-te e não quero a terra sem ti.
Se calhar ninguém me disse nada, mas o que eu li, está lido.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Já sei que agora é comigo

Não sou mãe, mas talvez por ser filha, leio regularmente artigos sobre como educar o seu filho, como fazer tudo bem, para que não sobre nada para ele resolver mais tarde. A teoria está explicada em todo o lado: livros, revistas, conversas de café, jornais, folhetos...  Já a prática caminha por aí. As práticas caminham por aí, fazem disparates, cometem erros, mas às vezes também acertam. Pois é, nós as práticas às vezes também acertamos, apesar de andarmos vezes demais longe da teoria.
Tropeço em informação de como ser boa mãe, com a frequência com que tropeço em artigos sobre como ser melhor pessoa.
(Está na moda, esta coisa do auto-conhecimento)
Começam geralmente por uma enorme lista de opções, precedidas de uma ordem: "Identifique por favor o seu tipo de personalidade":
1. Passivo
2. Agressivo
...
...
...
e 5.
como se fosse apenas mais um,
5. Assertivo
e não é. Não é mais um. Está ali para enganar os passivos e os agressivos deste mundo. Para nos fazer crer que há cincos por aí, a fazer quase tudo bem. Não há cincos. A mim não me cabe que haja cincos. Por isso, pela parte que me toca, podem não se cansar a disfarçar o objectivo no meio de uma lista de possibilidades reais. A assertividade é um objectivo e não uma característica por si só. Se a procurarmos muito, aproximamo-nos. Só isso, e com sorte.
(atenção que vou fazer um parêntesis enorme. Não se esqueçam do que deixámos para trás. Aqui vai: nestes momentos lembro-me sempre do meu pai, que tinha eu ainda poucos anos, me escreveu uma dedicatória num daqueles bloquinhos pirosos com desenhos queridos e cheirinho e tudo, que dizia o seguinte: "o sol está longe, mas é belo". Na altura fiquei especada, a olhar ora para ele, ora para a folha e a achar aquilo... no mínimo, esquisito. Todos os meus amigos tinham escrito coisas "cool" e de repente, a poesia sem rima do meu pai, estragou o ramalhete. Hoje entendo-o. Assim está a assertividade: quente!)
Voltando aos filhos, também aí existem listas sem fim sobre "o que fazer" e "o que não fazer". Descrente de que se consiga sempre fazer a coisa certa, preocupa-me apenas que não se faça nada. É feio não se fazer nada. É feio esperar que os filhos cresçam para que o problema passe a ser deles. É feio chutar a merda de geração em geração. É feio não se agarrar o touro pelos cornos, porque se tu não o agarrares, vou ter eu que o agarrar mais tarde. E eu não pedi para vir à praça. Entendes a diferença?
Não sei bem até que idade se pode culpar os outros por aquilo que não nos deram, as aprendizagens que não nos proporcionaram, as falhas, que se não corrermos rápido, iremos seguramente repetir.
(Pois é, iremos seguramente repetir. Porque somos afinal falíveis como os demais. Tão falíveis quanto os que não conseguiram pegar o touro)
Não sei bem até que idade se pode culpar os outros por aquilo que acabámos por ser, ou não ter.
Dava-me jeito e muito menos trabalho seguramente, culpar a sorte, ou a lua, ou a prima da minha avó que era demasiado rígida, ou demasiado negligente, ou demasiado outra coisa qualquer. Dava-me jeito, e posso, e até me apetece, mas agora é comigo. E se agora é comigo, pode ser o que eu quiser.
Pode?
Pode.
E eu a desejar culpar eternamente a prima da minha avó.
E eu a desejar não saber que,
pode.
E agora já sei.
Já ouvi, caramba!
Já sei que agora é comigo!

sábado, 2 de outubro de 2010

A minha crise

Voei a noite inteira do Rio de Janeiro para Lisboa, dormi o dia seguinte inteiro (intermitentemente é certo) e à noite enfiei uma roupa à pressa para comparecer num jantar chato, daqueles que é suposto ser giro e ao qual eu não podia faltar. 
Ligo a televisão para me fazer companhia neste processo e oiço o Sr. Sócrates a falar. Sigo para a casa de banho para dar uma corzinha à cara que gritava noitada e o Sr. Sócrates continuava a dizer coisas. Comecei a ficar preocupada. É verdade que o Sr. Sócrates fala frequentemente na televisão, mas assim tanto tempo e a falar comigo como se estivesse sentado no sofá lá de casa, com uma ar querido a explicar-me coisas, pareceu-me suspeito, e era. Fui ao tal do jantar com a palavra "cortes" na cabeça, porém, com o apetite voraz do costume.
Hoje já sei que há mesmo uma crise grave, sendo a definição de crise grave, uma crise que afecta directamente o povo (que para quem não sabe, somos nós), em percentagens razoáveis, entre outras coisas. Devia preocupar-me, mas sinceramente não consigo sentir ponta de ansiedade, por culpa deste assunto. Sem fortuna no banco, nem nenhuma tia rica às portas da morte, esta paz perante o caos eminente, não parece fazer muito sentido. Mas faz. 
Provavelmente o motivo da minha paz é absurdo aos olhos de quem já viveu uma crise e já comeu pão com dentes. Imagino até, que se alguém dessas fornadas desafortunadas (ou afortunadas) ler este "post", dê umas boas gargalhadas, à conta de tamanha e provável ingenuidade. 
Seja como for, eu nasci na bonança, cresci na bonança, nunca tive excesso mas também nunca me faltou nada. Tive tudo aquilo que os meus colegas de turma tiveram e ainda mais umas coisinhas. A única causa por que tive de lutar (e que me valeu uma valente sova) foi um cubo mágico que desejei só para mim e não partilhado com a minha irmã (a seu tempo contarei essa história. Merece um post só para ela). Comi carne ou peixe todos os dias, tive o quarto entupido com brinquedos caros, fui para a faculdade sem recorrer a créditos, comecei a trabalhar aos 18, tive carro próprio aos 19 anos... Enfim, teoricamente não tenho de que me queixar.
Mas tenho.
Dei-me conta que afinal tinha motivo para me queixar quando no outro dia, ouvi uma notícia sobre uma figura pública acusada de um crime hediondo, que apesar de reclamar a sua inocência, tinha já a sua vida destruída por tamanha suspeita. Decidido a dedicar o resto da sua vida a fazer prova da sua inocência, não consegui evitar sentir uma pontinha de inveja:
- Aquele cabrão tem uma causa. Uma causa das grandes que o agarra à vida, e eu tive um cubo mágico em tempos, e agora não tenho nada, ou tenho pouco.
(se calhar é pouco, apenas porque é o que tenho)
Resumindo, vida corre-me bem, mas é só isso: corre-me. Continuo a comer carne e peixe com a frequência que me apetece, troquei de carro, continuo a trabalhar, não sou aumentada há 15 anos é um facto, mas não me posso queixar. Ainda assim sou uma descrente.
Deixei há muitos anos de acreditar na política. Desagrada-me que os políticos pintem o cabelo de grisalho para terem uma imagem mais sábia e confiável. Pode dizer-se que se quer passar a imagem do que se é. Pode ser, mas eu tenho uma tendência (provavelmente ingénua, lá está) para acreditar que o que é, vê-se e pronto. O conceito de criar a realidade ultrapassa-me, ou pelo menos assusta-me, apesar de o saber "moderno".
Tal como me assusta o conceito de "pessoas informadas", na medida em que somos informados daquilo que alguém nos quer informar. Há maior ditadura que esta? A ditadura da pretensa informação?
Sem querer entrar na choraminguisse barata da vitimização, é isto que penso, ou melhor, é por estas e por outras que não acredito. 
No fundo, quero acreditar que com esta história da crise e dos maus tempos que aí vêm, passaremos a fazer como J.D.Salinger, que deixou de publicar, porém continuou a escrever. Porque escrever poderemos sempre, tal como plantar batatas. Desgraçados isso sim, dos que tiveram o azar de nascer em solo infértil.
No dia que conseguirmos ser felizes desta forma tão sublime, estaremos prontos para voltar a publicar.