sábado, 2 de outubro de 2010

A minha crise

Voei a noite inteira do Rio de Janeiro para Lisboa, dormi o dia seguinte inteiro (intermitentemente é certo) e à noite enfiei uma roupa à pressa para comparecer num jantar chato, daqueles que é suposto ser giro e ao qual eu não podia faltar. 
Ligo a televisão para me fazer companhia neste processo e oiço o Sr. Sócrates a falar. Sigo para a casa de banho para dar uma corzinha à cara que gritava noitada e o Sr. Sócrates continuava a dizer coisas. Comecei a ficar preocupada. É verdade que o Sr. Sócrates fala frequentemente na televisão, mas assim tanto tempo e a falar comigo como se estivesse sentado no sofá lá de casa, com uma ar querido a explicar-me coisas, pareceu-me suspeito, e era. Fui ao tal do jantar com a palavra "cortes" na cabeça, porém, com o apetite voraz do costume.
Hoje já sei que há mesmo uma crise grave, sendo a definição de crise grave, uma crise que afecta directamente o povo (que para quem não sabe, somos nós), em percentagens razoáveis, entre outras coisas. Devia preocupar-me, mas sinceramente não consigo sentir ponta de ansiedade, por culpa deste assunto. Sem fortuna no banco, nem nenhuma tia rica às portas da morte, esta paz perante o caos eminente, não parece fazer muito sentido. Mas faz. 
Provavelmente o motivo da minha paz é absurdo aos olhos de quem já viveu uma crise e já comeu pão com dentes. Imagino até, que se alguém dessas fornadas desafortunadas (ou afortunadas) ler este "post", dê umas boas gargalhadas, à conta de tamanha e provável ingenuidade. 
Seja como for, eu nasci na bonança, cresci na bonança, nunca tive excesso mas também nunca me faltou nada. Tive tudo aquilo que os meus colegas de turma tiveram e ainda mais umas coisinhas. A única causa por que tive de lutar (e que me valeu uma valente sova) foi um cubo mágico que desejei só para mim e não partilhado com a minha irmã (a seu tempo contarei essa história. Merece um post só para ela). Comi carne ou peixe todos os dias, tive o quarto entupido com brinquedos caros, fui para a faculdade sem recorrer a créditos, comecei a trabalhar aos 18, tive carro próprio aos 19 anos... Enfim, teoricamente não tenho de que me queixar.
Mas tenho.
Dei-me conta que afinal tinha motivo para me queixar quando no outro dia, ouvi uma notícia sobre uma figura pública acusada de um crime hediondo, que apesar de reclamar a sua inocência, tinha já a sua vida destruída por tamanha suspeita. Decidido a dedicar o resto da sua vida a fazer prova da sua inocência, não consegui evitar sentir uma pontinha de inveja:
- Aquele cabrão tem uma causa. Uma causa das grandes que o agarra à vida, e eu tive um cubo mágico em tempos, e agora não tenho nada, ou tenho pouco.
(se calhar é pouco, apenas porque é o que tenho)
Resumindo, vida corre-me bem, mas é só isso: corre-me. Continuo a comer carne e peixe com a frequência que me apetece, troquei de carro, continuo a trabalhar, não sou aumentada há 15 anos é um facto, mas não me posso queixar. Ainda assim sou uma descrente.
Deixei há muitos anos de acreditar na política. Desagrada-me que os políticos pintem o cabelo de grisalho para terem uma imagem mais sábia e confiável. Pode dizer-se que se quer passar a imagem do que se é. Pode ser, mas eu tenho uma tendência (provavelmente ingénua, lá está) para acreditar que o que é, vê-se e pronto. O conceito de criar a realidade ultrapassa-me, ou pelo menos assusta-me, apesar de o saber "moderno".
Tal como me assusta o conceito de "pessoas informadas", na medida em que somos informados daquilo que alguém nos quer informar. Há maior ditadura que esta? A ditadura da pretensa informação?
Sem querer entrar na choraminguisse barata da vitimização, é isto que penso, ou melhor, é por estas e por outras que não acredito. 
No fundo, quero acreditar que com esta história da crise e dos maus tempos que aí vêm, passaremos a fazer como J.D.Salinger, que deixou de publicar, porém continuou a escrever. Porque escrever poderemos sempre, tal como plantar batatas. Desgraçados isso sim, dos que tiveram o azar de nascer em solo infértil.
No dia que conseguirmos ser felizes desta forma tão sublime, estaremos prontos para voltar a publicar.

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