terça-feira, 5 de abril de 2016

Piroseira em ar

Hoje não inspiro. Nem expiro. 
Recuso-me a respirar, se não for para te encontrar. Que desperdício de energia se não te puder beijar. Respira para te sentir durar. Mesmo ao longe e devagar, respira para te poder achar. E beijar. Ou só adivinhar. Tranquilo, quero só calcular. Não imaginas como sou ótima a imaginar. Respira sem parar. Que seria se te soubesse sem respirar? Nem arfar, só respirar.
Ninguém respira como tu a minha vontade de te cansar. Respira por mim, prometo não te beijar. O que te custa se tens mesmo que respirar? Deixa-me acreditar que respiras para te desejar. Só te quero olhar, a respirar. Só te quero tocar. Fica tranquilo, nem agarrar, só tocar. Se soubesses do que sou capaz sem te segurar. Só voltar contigo para aquele lugar, que ficava aqui tão bem se fosse junto ao mar. Mas não é. Ou talvez seja. Afinal na praia há luar e eu tenho urgência de te embalar. 
Respira, mesmo que passe a vida a procurar. 
Prometo não te encontrar. Só te quero sentir a respirar. 
Quero-te cismar e então descansar.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da sobrevivência

          Há quem me acuse de ser desarrumada. Eu não concordo. Sou despistada, sim. Faço desaparecer muitas coisas; esqueço-me de datas, de todas as datas, mesmo das mais importantes. Porque as datas não são importantes, os acontecimentos sim. Que me importa lembrar quando aconteceu, se me lembro tão bem do sabor do teu beijo? Tu sabes a data, eu sei o beijo. A data serve para exibir dedicação, o sabor serve para te beijar outra vez, mesmo quando não estás por perto. E isso, sim, é dedicação. Também há quem me chame fantasiosa. Com isso talvez concorde. Concordo mesmo. A data não é assim tão repugnante, faz, aliás, um brilharete com as namoradas. Ainda bem que sou mulher. Os homens percebem mais facilmente que não se ligue nenhuma a uma data. Mesmo que não percebam, na maior parte das vezes também não se lembram. Eu gosto de rir daquilo que me difere da maioria das mulheres - não quero saber de datas para nada, e não me importa um caraças que um homem veja futebol. Rio à vontade, porque também choro com as que me aproximam do arquétipo. E são tantas. Apesar de tudo, tento vê-las com normalidade. Se não existissem, eu seria um homem. E isso é que não, por amor de Deus.
          Dizia eu, antes de derrapar nesta verbosidade chata, que tantas vezes me desvia o raciocínio: há quem me acuse de ser desarrumada, mas eu discordo. Apesar de ser uma despistada incorrigível, gosto das coisas no sítio certo. Pior, fico aflita se não o encontro. Se não sei, pelo menos, de onde saiu, e onde deveria estar. É o que me acontece com o medo.
          Não com todos os medos. Alguns conheço-lhes bem o arrumo. Às vezes abro a gaveta da cómoda, só para me certificar de que estão no sítio certo. Se estiverem bem arrumados, aí permanecerão até à minha morte. Pelo menos acredito que sim. Já se passaram alguns anos desde que os fechei bem dobradinhos nas gavetas. Deixei-lhe umas bolotas de alfazema para ficarem confortáveis, e sempre que abro a gaveta, sorriem-me agradecidos. Eles também gostam de estar no sítio certo. Não são nenhuns vagabundos. Não pediram para nascer. Se os parimos devemos tomar conta deles. Mesmo dos mais horríveis.
          E é aqui que tudo muda. É sempre o filho enjeitado que tira o tapete aos pais. Mas também é ele que lhes pode certificar a mestria. Eu não sou mãe, mas já pari muitos medos. Arrumei alguns, e deixei outros tantos a flutuar por aí. Sempre que o vento sopra a desfavor, voltam inteirinhos para me assombrar os dias. Só de escrever isto já estou cheia de medo outra vez. É como tudo: os grandes nunca morrem. Nós é que temos de arranjar maneira de lhes sobreviver.