quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Um quarto assim

          Desde os quatro anos que Jaime não saía à rua, ou à casa dos avós, ou a outra casa qualquer. Desde os três anos que Jaime não saía para lado nenhum. Nem para a sala. A sua sala. Sabia que existia sala naquela casa, apenas porque de tempos a tempos podia ouvir a mãe encaminhar a única visita da casa, 
          - Entre Sr. Prior. Passemos à sala.
          Jaime sabia a sala grande, enorme para que lá coubessem as conversas graves, murmuradas em ladainhas mucosas, que se repetiam todas as quartas-feiras. Na verdade Jaime não sabia a sala enorme; imaginava. Sabia apenas o seu quarto pequeno. Ou se calhar nem isso. As coisas só são pequenas se comparadas com outras maiores. Por isso, Jaime sabia apenas o seu quarto assim. Na sala as conversas dos outros ecoavam de forma distinta, por isso, não assim, a sala; necessariamente diferente. Na verdade não aconteciam conversas no seu quarto. Talvez por demasiado pequeno, ou demasiado assim. Mas independentemente das conversas e dos ecos, só sabia o seu quarto assim. Era a único espaço que conhecia.
          Recordava-se vagamente dos longos dias de verão passados na praia grande, durante a época balnear, mas a debilidade dessas memórias não lhe bastava para reconstruir o cheiro a maresia. Ou talvez as memórias lhe chegassem através de relatos de outros, e por isso lhe surgissem sempre inodoras. É impossível descrever um cheiro, diriam os mais cépticos. Impossível não é, mas é muito difícil, replicariam os mais crédulos. Jaime diria simplesmente que num quarto assim, é impossível, sim. Não há benevolência que descreva seja o que for num quarto onde não acontecem conversas. Seja ele grande, pequeno ou assim.
          Entregue às maleitas que, de dia para dia, lhe deformavam o corpo (obra do diabo, diziam os médicos), sobrevivia há 64 anos estendido e imóvel, na cama de dossel que o mantinha a salvo do apetite dos insectos que não lograva afugentar.
          Quando o seu pai sucumbiu ao desgosto, Jaime não pode assistir ao funeral. A mãe seguiu os passos do marido poucos dias depois, e mais uma vez Jaime não compareceu à cerimónia.
          Na manhã da missa do sétimo dia, o caseiro deu por encerrada a vida naquela casa, e desferiu sete ruidosas voltas à fechadura da porta de entrada, que ecoaram nos ouvidos de Jaime, como uma condenação em tribunal. Na vila ninguém tinha conhecimento da existência de Jaime. Todos comentavam frequentemente o infortúnio daquela família, cujo único filho caíra ao poço ainda mal andava. E foi como se sentiu naquela manhã; caído nas profundezas de um buraco, para onde ninguém voltaria a olhar. A aflição, impotente, não conseguiu apoderar-se dele, pelo mesmo motivo que nunca conseguira apoderar-se de uma maçã, ou de um prato. As naturezas mortas são, por definição, tranquilas; ou quietas. Não se sentia triste, nem contente, apenas vivo. Talvez nem isso. Na realidade morrera aos quatro anos. Não por obra do diabo que alegadamente lhe desfigurara o corpo, mas por obra dos que o amavam, mas que por vergonha lhe apagaram a alma. Permaneceu então pousado para sempre, na exacta posição em que a mãe o deixara no dia da sua morte, inevitavelmente sossegado (do corpo, e também cabeça), à espera que o fim lhe oficializasse a morte.
          Jaime nunca chegou a aprender a ler, nem a escrever. Desaprendeu até de falar o pouco que alguma vez tinha dito. O seu conhecimento do mundo limitava-se à realidade que lhe chegava pela janela de um casarão plantado no meio do nada. Nem o pai, nem a mãe alguma vez trocaram com ele mais do que as palavras essenciais à sua sobrevivência.
          - Abre a boca que a sopa arrefece.
          Teria sobrevivido independentemente da temperatura da sopa. Um
          - Abre a boca
          teria bastado.
          Inquieto pelo incómodo das feridas do corpo há anos inerte, vivia ironicamente no sossego próprio da doença e do desconhecimento. O corpo sossegado por não se conseguir movimentar, e a cabeça sossegada por quase nada saber. Sabia que o sol nascia pela manhã, que se punha ao final da tarde, que a sopa devia comer-se ainda quente, e pouco mais.
          Cinco dias passados da segunda condenação em vida ditada pelo som do ferrolho, Jaime acordou uma manhã, mais cedo do que o costume, com uma voz grave e longínqua que lia em voz alta coisas que não compreendia. Coisas indecifráveis para alguém que, como ele, nada sabia. Coisas de planetas diversos, e países distantes.
          Mas o que era distante?
          Coisas de rios e montanhas.
          Mas o que eram rios?
          E montanhas?
          Por oposição ao silêncio de outrora, o seu dia era agora passado a escutar esta voz que não fazia ideia de onde viria. Quando não podia mais segurar o sono deixava-se adormecer, acordando no dia seguinte com essa mesma voz, insistente, a debitar matéria ininterruptamente. De início desconsertado com a informação proferida, Jaime foi-se acostumando à voz ritmada que lhe preenchia os dias, e foi construindo a realidade a partir dessas palavras. Ao cabo de um ano o seu mundo era já redondo e o país onde vivia tinha já um nome. Os rios doces nasciam nas montanhas e corriam para os mares, que por sua vez eram salgados. Ao fim do segundo ano conhecia a razão pela qual o sal dos mares não contaminava a doçura dos rios, e a meio do terceiro ano, desafortunadamente, deu-se conta da teimosia dos homens que não se contentavam com rios doces e mares salgados. Insistiam em ir mais além, mais distante (já sabia o que era distante. Já conseguia imaginar, pelo menos), muito para lá daquilo que as coisas são. Foi então que se lembrou da mãe e do pai incapazes de suportar a realidade insuportavelmente salgada de um filho diferente, e que por vergonha construíram um rio de mentira que lhes trazia a doçura da normalidade perante os habitantes da vila, mas que tanto lhes amargava na boca nos poucos momentos que subiam ao quarto do filho para o alimentar.
          Agora demasiado sábio,
          (Sim, demasiado, porque penosamente sábio)
          Jaime passou o que restava do seu tempo a tentar evitar aquela voz, que cada vez mais próxima, insistia em depor informação que não desejava mais ouvir. Aos 67 anos a aflição conseguira finalmente deitar-lhe a mão. Angustiado, esforçava-se em vão por fazer chegar aos ouvidos as mãos inertes, há anos pousadas sobre o lençol de linho. Raras vezes conseguia emitir sons, roucos e desajeitados por anos de silêncio, que abafassem a voz que a cada dia se ouvia mais próxima da porta do seu quarto. Parecia destinada a fazer o seu caminho, a voz, lentamente, degrau a degrau, palavra a palavra, aproximando-se com tempo; o tempo necessário para que as condições perfeitas se instalassem. E as condições foram-se instalando, com a tranquilidade e a indolência com que uma nuvem de pó faz o seu caminho de volta ao tampo da mesa de onde foi sacudida com um espanador.
          O sol deixou de nascer de manhã. Aliás, deixou de nascer de todo, numa tentativa, divina talvez, de cegar a lucidez que atormenta os demasiado sábios. Mas a escuridão dos dias pouco podia fazer pela desgraça de Jaime; não se pode regressar do desassossego do conhecimento.
          Numa manhã invernosa, num horário em que o sol teria já nascido, fossem outras as circunstâncias, Jaime despertou do sono perturbado, com o ranger da sua porta que há três anos não se abria. Iluminada por uma vela insuficiente que segurava na mão direita, surgiu à entrada uma figura pequena de rosto acabrunhado e envelhecido, que segurava na mão esquerda um enorme livro aberto.
          - Estás pronto? - Perguntou piedoso.
          Jaime agitou-se na cama, empenhado em conseguir responder, mas nada, nem o mais ténue grunhido conseguiu emitir. A figura aproximou-se lentamente e Jaime reconheceu uma certa familiaridade naquele rosto. Apesar de mais envelhecido, era sem dúvida o homem que costumava a ver a arranjar o jardim das traseiras, nos tempos em que havia jardim. A expressão de misericórdia intacta, igualzinha à que tinha quando arrancava as ervas daninhas para que não perturbassem o esplendor colorido das gerberas.
          - Essa barba está enorme, Jaime. É assim que se parecem os homens sábios. Pareces-me pronto, Jaime.
          O caseiro pousou o enorme livro sobre a cómoda, abriu cuidadosamente a primeira gaveta, e tomando na mão um punhal de cabo de marfim, perguntou
          -Estás pronto, Jaime?
          Claro que estava pronto. Demasiado pronto, até. Talvez aqui não sirva o "demasiado". Estava pronto, apenas. Demasiado sábio, logo, pronto.
          Jaime assentiu com a cabeça e o homem aproximou-se. A luz incapaz da vela agora pousada na mesa de cabeceira, iluminava a enorme barba grisalha apenas o suficiente para que se cumprisse o desígnio. Sabia que era sua a decisão, e não teve dúvidas. No momento em que sentiu a lâmina gelada roçar-lhe a traqueia, posta caridosamente a jeito para que decidisse, Jaime optou pela solução radical. Naquele ponto já não havia barba rasa capaz de lhe apaziguar a alma. Fitou o caseiro em agradecimento, e quando viu descerem-lhe as pálpebras expulsando um mar enorme, dir-se-ia até um oceano, sobre a face rosada, e apertar com firmeza o cabo de marfim em sinal de consentimento para que se cumprisse a vontade do filho, Jaime desferiu um movimento brusco de cabeça ao encontro do sossego final.
          E de repente tudo apenas assim outra vez. Nem grande, nem pequeno.
          Sossegadamente assim, apenas.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Matemática das verdades

          Ao Nuno, por não precisar de contar pelos dedos.


          Às vezes a minha Lua está sempre cheia.
          Um dia, se tiver sorte, ou coragem, a minha Lua vai estar cheia para sempre.
          Por agora contento-me com as vezes em que a minha Lua está sempre cheia.
          São cada vez mais, essas vezes. 
          No outro dia aconteceu-me uma dessas vezes em noite de Lua Nova. E isso significa que,
          um dia, se tiver sorte e continuar a ter coragem, a minha Lua vai estar cheia para sempre.  
          Nunca fui pessoa de fé. Gosto da verdade verdadinha, da que se pode confirmar com uma conta de somar ou de subtrair. Ou até mesmo de dividir. A sério, pode ser de dividir. Conto pelo dedos, se for preciso.
          Sempre me baralharam as divisões matemáticas, não as outras de que é feita a vida. 
          (Sim, a vida também é feita de divisões.)
          E vai um... Ou dois... Nunca me fez sentido, aquilo. Vai para onde?
          Mas não te preocupes, deixa as contas comigo, já te disse que conto pelos dedos se for preciso. 
          Neste caso não vou sequer preocupar-me em esconder a mão atrás das costas. Nestes assuntos importantes não há vergonha possível. Faço qualquer coisa pela minha Lua cheia para sempre, pela nossa Lua cheia para sempre. 
          (Sim, divido a Lua contigo, claro.)
          Uma Lua a dividir por dois, por nós dois pelo menos, dá uma Lua cheinha para cada um. A mesma. 
          Pode ser? 
          (Vês, podes ficar tranquilo, nestes casos nem preciso de contar pelos dedos)
          Faço qualquer coisa por uma verdade verdadinha, daquelas que de tão verdades, não existem, se não tratarmos de as fazer. Se calhar só por isso faço tudo por ela. Que graça teria fazer tudo por uma coisa que, de tão simples, existe por todo o lado? 
          Antigamente não havia a roda, nem o fogo, nem o ipad. E pior, havia Plutão e a Terra plana. Tudo verdades verdadinhas até alguém ter tempo de as fazer, ou desfazer.
          É mais difícil desfazer do que fazer. Ou talvez apenas mais difícil de compreender. Faz-se o que se faz porque se precisa das coisas. Mas desfazer uma coisa já feita, que não chateia nada,
          (Que mal fazia Plutão ali no final? Ou que mal fazia a Terra plana? Nenhum.)
          é coisa para precisar que se conte pelos dedos.
          Mas não sou eu que vou aborrecer quem gosta de desfazer as coisas. Cada um sabe de si. Se calhar da mesma maneira que eu preciso da nossa Lua cheia, também alguém precisou de Plutão dali para fora. Se calhar dividiu-o demasiado, ou esqueceu-se de contar pelos dedos. Quem sabe até dividiu Plutão com alguém, mas esqueceu-se que nestes casos o resultado tem de ser sempre um. Só um. O mesmo. Para os dois.
          Há pessoas assim, egoístas.
          Eu também já fui assim. 
          Um dia não quis dividir um cubo mágico com a minha irmã, e ficámos as duas a perder: zero cubos mágicos para cada uma. Parece que eram caros e os pais só podiam comprar um cubo mágico para as duas. Nessa altura eu tinha dificuldades com as divisões todas, não só as matemáticas. A minha irmã não. Sempre foi boa com os números. Ao ver-me espojada  no chão, a chorar, e a contar pelos dedos com a mão atrás das costas,
          (Naquela altura eu ainda tinha vergonha.)
          a minha irmã disse aos pais que podiam comprar só um cubo mágico para mim, que não fazia mal, que ela não se importava. Mas os meus pais nunca gostaram que as meninas não cumprissem com as obrigações escolares, e a boa prestação a matemática da minha irmã não foi suficiente para encobrir a minha total incapacidade de lidar com os números. Zero cubos mágicos para cada uma. Que injustiça. Para a minha irmã. 
          Posto isto sou bem capaz de ter sido eu a espatifar Plutão sem me dar conta.
          Se fui, peço desculpa, e prometo não repetir a graça. Agora, a minha conta há-de dar sempre uma Lua, a mesma Lua, para os dois. Continuo péssima a matemática mas aprendi a contar bem pelos dedos. Desde que a conta dê certa, pouco importa se é talento ou trabalho.
          No meu caso é trabalho. 
          Pode ser?  
          A verdade está sempre relacionada com o tempo, e isso tenho de sobra; até ao fim da vida.
Não que me sobre tempo. Claro que não sobra. Aliás, contigo há-de sempre faltar-me tempo. Mas se me disponho a usar todo o que tenho para que a conta dê resto zero, então tenho de sobra, sim. Que não é mais do que uma forma megalómana de dizer: tenho o tempo todo para encher a Lua contigo. 
          O tempo todo sobra sempre para alguma coisa. Mas só para as coisas simples. Para fazer um bolo, por exemplo, não é preciso a vida toda, por isso sobra. Quando dizemos que temos tempo de sobra para fazer qualquer coisa de que desconhecemos a duração, significa apenas que estamos tão empenhados 
          (ou dependentes) 
          em concluir essa tarefa, que nos dispomos a usar todo o nosso tempo de que dispomos para a terminar, com ou sem êxito, até que não sobre nada. 
          Essa entrega,
          (ou desespero. Desespero, claro.) 
          é mais do que suficiente para legitimar o exagero da expressão "isso tenho de sobra". 
          Tenho a falta de talento para a matemática com que nasci, mas tempo de sobra.
          Comprei até um caderno quadriculado.
          E assim sendo, vou usá-lo todo, todinho, para garantir que a nossa Lua vai estar cheia para sempre.
          Mesmo que só me aconteça na véspera do fim. Ou no dia do fim.
          Nestes casos pouco importa se o resto é zero. 
          O importante é que se use o caderno todo.