segunda-feira, 26 de março de 2012

Pode, sim.




          O que eu gostava que as músicas falassem. Ou que pelo menos ouvissem. Ou que pelo menos esta, só esta, claro que só esta, me pudesse ouvir gritar-lhe,
          - Casas comigo?
          Ou nem perguntar, ordenar apenas
          - Casa comigo.
          Onde é que andaste este tempo todo? Procurei-te por todo o lado. O vestido já nem branco. As flores já nem vivas. Mortas. Um molho de flores apanhadas de propósito. Um altar improvisado; baixinho. E eu de pé, nas tábuas tortas, com um molho de flores apanhadas ao acaso, estragadas, se calhar já mortas, a escorrerem-me das mãos. E as mãos cerradas nas flores mortas. Porque mesmo mortas, são flores. Porque mesmo morta, sabia que havias de chegar. E para nós, flores mortas servem perfeitamente. Bem vistas as coisas nem precisamos de flores, nem de vestido, nem de altar. Agora que chegaste não precisamos de nada.
          É impossível que não me ames de volta. Um amor assim não se faz sozinha. Não é possível que eu tenha feito isto sozinha.
          - Caramba, queres ver que fiz isto sozinha?
          - Foda-se, fiz isto sozinha.
          Como é que se pode amar uma música? Já sei que não se pode. Já sei isso tudo. Mas pode, sim. Não sei como, mas pode. Eu amo. Eu amo porque vi o mundo cair à minha volta quando apareceste. Eu amo porque vi o mundo pequenino, três tábuas apenas, quando apareceste. E eu de pé naquele bocadinho de mundo tão grande quando te vi.
          E que eu morra aqui se não foi amor o que ouvi.

sábado, 24 de março de 2012

Para o gordo baixinho, com amor.

         
          Uma mulher sabe que é genuinamente feliz quando vibra com um simples agrafo.
          Não sou crente nas notícias, nem tão pouco nessa coisa da actualidade. Talvez seja uma descrente na isenção do que por aí se diz ser a actualidade, ou pior ainda e muito provavelmente, talvez seja apenas uma preguiçosa desavergonhada que encontrou uma desculpa porreira para não se preocupar em demasia com o que se passa por aí exactamente. Seja como for, exacto ou não, de vez em quando pego num jornal. Com a pontinha dos dedos, é certo; mas pego. Sempre com uma mesa onde pousá-lo, é certo; mas pego.
          Agora vou passar a pegar um bocadinho mais, e tudo por culpa de um agrafo. Um simples agrafo. Nisso sim sou crente. Não nos agrafos (talvez também nos agrafos), mas na felicidade que me chega com as coisas pequenas; como um agrafo.
          (Tenho um fraquinho recente pelo ponto e vírgula, apesar de muito provavelmente não o usar muito bem. Dá-me graça, o sacana.)
          Também tenho um fraquinho recente pel' O Público. É certo que perdeu a elegância esguia do antigo formato (dimensões, quero dizer. Acho que formato é outra coisa no mundo dos jornais), mas ganhou um coração de ferro. E como sempre me acontece, foi o coração que me salvou. Tanto me dá que seja agora baixo e gordinho.
          Ler o jornal foi, para mim, durante muito tempo, um momento absolutamente trágico. Sempre invejei os que eram capazes de se deliciar ao sol de uma esplanada qualquer enquanto desfolhavam as páginas soltas de um jornal. Tentei, vezes sem conta, copiar-lhes a agilidade . E dei por mim, vezes sem conta,  incapaz de apreciar o momento, tal era a preocupação em manter as folhas devidamente alinhadas. E dei por mim, vezes sem conta,  a bater furiosamente na mesa do café, com um molho de páginas rebeldes que nunca tive a capacidade de manter em ordem.  E dei por mim, vezes sem conta, a abandonar cabisbaixa as esplanadas, com vergonha do monte de lixo em que tinha conseguido transformar o pobre jornal. E dei por mim, vezes sem conta, a pensar comprar um agrafador de mesa na drogaria do Sr. Antão.
          Mas agora acabou-se a vergonha. Alguém comprou o agrafador por mim (deve estar feliz o Sr. Antão. O negócio anda mau) e resolveu-me a questão.
          Queria por isso agradecer ao gordo baixinho que soube fazer-me feliz. E já agora aproveitar para perguntar se não há por aí nenhum gordo baixinho que resolva,  de uma vez por todas, o problema dos bules de chá em inox que insistem em mijar para trás.
          Não é difícil fazer-me feliz. Um dia de sol, um jornal agrafado e um bule de chá bem educado chegam perfeitamente.

domingo, 18 de março de 2012

Sim, turquesa como o sol

          Montou-se num cavalo branco (ou azul) e galopou sem parar. Estava certo de que haveria de chegar a algum sítio; diferente. Porque a Terra é redonda, passou centenas de vezes pelo ponto de partida. Nunca o reconheceu, de tão certo que estava de que galopava para a frente.
          Quem o viu passar, centenas - sim, centenas - de vezes a alta velocidade, nunca ousou interromper-lhe o caminho. Assim,
          galopou,
          galopou,
          galopou,
          galopou...
          E um dia, muitos dias - sim, centenas de dias - depois, já muito velho e cansado, apeou-se finalmente num prado. Qual não foi o seu espanto ao ver que o bicho era mesmo azul.
          Não branco. Nem branco ou azul. Azul.
          Não se sabe ao certo se parou de velhice, ou se o prado era de facto um sítio diferente. O que se sabe, isso sim, é que o velho nunca mais precisou de montar. Descansou os três dias que lhe sobravam, tranquilo, junto ao seu puro sangue árabe turquesa.
          Nesses três dias lá no prado, nunca ousaram dizer-lhe que o cavalo era alazão.
          Ainda bem.

sábado, 10 de março de 2012

IVAA - Imposto de valor amoroso acrescentado


Imediatamente depois das de amor, as cartas mais perigosas de abrir são as que precisam que as extremidades sejam destacadas pelo picotado.

Ou,

as cartas de amor deviam vir com as extremidades destacáveis pelo picotado.