sexta-feira, 4 de abril de 2014

Anita vai sozinha ao bloco

Eu até gosto de hospitais.
Na verdade até me acalmo com hospitais.
Há quem se acalme com álcool, cocaína ou heroína, por isso, paizinho, há que ver as coisas pelo lado positivo: até não estou nada mal! Não se pode dizer que seja mais barato, mas é certamente menos prejudicial à saúde. Sim, apenas menos prejudicial, se não vejamos: são poucos os que entram num hospital sem nada e saem assim mesmo. Na sua maioria, as pessoas saem do hospital com qualquer coisinha que lhes justifique o mal-estar. Parece-me justo. Para não variar, eu faço parte da minoria (apre, que já me falta a paciência!), entro saudável e saio ainda melhor. É preciso ter azar.
Numa tentativa de contrariar o destino, decidi recentemente fazer um check-up à minha condição humana. Escolhi um médico, queixei-me de tudo o que podia ter, e saí da primeira consulta com uma resma de exames para realizar com urgência. Foi um mês magnífico! Entre macas e batas brancas, muitas vezes me despi e vesti eu à procura do nada que me atormentava. Fui inspeccionada da ponta dos cabelos à unha do dedo mindinho. Tudo normal. Análises quase perfeitas. Tinha quase uma série de coisas, mas na verdade não chegava a ter nada. Tinha quase colesterol, quase sinusite, quase escoliose, quase varizes, mas pior ainda, estava quase pré-diabética. Uma hiponcondríaca pré-diabética é já de si humilhante, mas quase pré-diabética é doença fatal para alguém da minha fraca condição espiritual. Quase e pré, na mesma frase, é diagnóstico que ninguém merece. Que espécie de falhada sou, Deus meu?
Já o médico batia com a resma de relatórios admiráveis na mesa, para os organizar num molhinho também ele admirável, enquanto sorria encantado dizendo,
- Você está óptima, Sofia, tem saúde para dar e vender! 
quando me lembrei de um último trunfo que me podia salvar a honra.
- Doutor, esqueci-me de lhe mostrar um sinal que tenho no dedo do pé. 
Visivelmente enfastiado, dedicou-me mais uns minutos da sua atenção,
- Vamos lá ver isso.
Viu.
- Isto é para tirar imediatamente!
Teria preferido um urgentemente, mas o imediatamente serviu-me bem a gravidade desejada.
Seguiu-se mais uma semana magnífica. Visitei três médicos em poucos dias. Dois cirurgiões que concordaram tratar-se de um caso para a cirurgia plástica, e um cirurgião plástico que, de tão vaidoso, não duvidou ser a pessoa indicada para tratar do assunto. Gosto de médicos confiantes, pelo que, nem a sua escassa simpatia, nem o seu sorriso malandro me incomodaram; estava entregue a um perito!
Marcámos a data da cirurgia que, para minha enorme felicidade, teria de ser realizada em bloco operatório. Em bloco, imagine-se! Não estávamos ali a brincar, não era uma coisa para: estique-se aqui na marquesa que lhe arranco isso em três tempos. Nada disso! Tratava-se de um assunto sério que merecia o respeito de todos. Ou isso, ou, como concluí mais tarde, o cirurgião vaidoso só trabalhava em bloco. Mariquices de quem tem um ego transbordante e se pode dar ao luxo de certas extravagâncias.
Durante as semanas que antecederam a operação (repare-se bem na grandeza da palavra. Operada. Eu ia mesmo ser operada. Finalmente fazia-se justiça e eu ia ter um tratamento à altura dos meus sintomas. Físicos ou espirituais, pouco importava, desde que julgados na medida certa. E a medida certa era, posso garantir, enorme.) dediquei-me à dura tarefa de convencer o meu seguro de saúde da necessidade incontornável do procedimento requisitado pelo médico. Não foi fácil. Chorei ao telefone perante a eminência da não aprovação do pedido, ameacei processar a seguradora ou o médico, jurei que pretendia agir judicialmente contra a parte que se concluísse estar a agir de má fé - ou a seguradora por duvidar da seriedade do médico vaidoso, ou o médico vaidoso por requerer actos desnecessários à resolução do problema. Alguém atentava contra a minha saúde e eu estava decidida a levar o caso até às últimas consequências. A seguradora tentou acalmar os ânimos, garantiu que remeteria novamente o caso a apreciação do seu gabinete clínico, que certamente o aprovaria. Enervei-me ainda mais, claro está. O meu espírito já débil incendiou-se ao saber que, uma pressãozinha aqui e um apertão acolá, bastariam para ver aprovada a cirurgias. Contestei a necessidade de existência do gabinete clínico da seguradora, uma vez que eu já tinha escolhido um médico, que era vaidoso, é um facto, mas não fazia parte desse grupo iluminado de profissionais que diariamente se sentam a uma secretária e dão o seu aval, ou não, às decisões de outros profissionais. Aliás, o médico vaidoso não tinha sustentado a sua decisão na apreciação de meia dúzia de relatórios. O médico vaidoso tinha pegado efectivamente no meu dedo, dedo esse que fazia parte de um conjunto de dedos (cinco) separados entre si por carrapetas fedorentas deixadas pelas meias pretas de inverno. Logo aí, o médico vaidoso levava larga vantagem.
A seguradora acabou por aprovar o pedido, desconfio que mais para não me voltar a ouvir, do que por entender necessária uma ida ao bloco para fazer a excisão de um sinal.
Dei entrada no hospital às duas da tarde. Tinham-me pedido para me apresentar em jejum e foi o que fiz. Quando a recepcionista me disse para aguardar na sala de espera, perguntei se teria tempo de ir buscar uma água. A senhora respondeu-me, num revirar de olhos, que devia estar em jejum. Pensei mandá-la para aquele sítio ou ao oftalmologista, mas segurei-me. Sentei-me tranquila à espera de vez, e procurei na internet a definição exacta de jejum. Verifiquei que era eu que estava certa; jejuar é apenas não comer, e que eu saiba a água não se come. Tive vontade de esclarecer o assunto junto da senhora dos olhos tortos, mas voltei a segurar-me. Pareceu-me óbvio não haver oftalmologista em sítio nenhum do mundo capaz de a salvar.
Na sala de espera tive oportunidade de responder afirmativamente a duas velhotas que me perguntaram se estava ali sozinha. Pedi-lhes um momento, mandei rufar os tambores, deixei descair a beiça e os cantos do olhos e respondi, gloriosa: sim. A minha mãezinha que me perdoe, cada um faz o que pode pela vida, e nenhuma das velhas viria algum dia a saber quem eram afinal os progenitores capazes de deixar a filha ir sozinha para uma operação. E ainda bem, porque se viessem a saber, acabariam por descobrir também que só não estavam presentes porque eu não permiti. Como disse: cada um faz o que pode pela vida e por um bocadinho de atenção.
Repeti este sim diversas vezes ao longo do processo: ao enfermeiro que me conduziu ao quarto e me estendeu três embrulhos plásticos (bata + sapatos + touca, tudo descartável); à enfermeira que me veio colocar o soro; ao auxiliar que me empurrou a maca até ao bloco (aliás, este tipo irritou-me à brava. Eu ponho a touca quando quiser. Quem é que disse que só é preciso colocá-la à entrada do bloco?) e haveria de ter muitas outras oportunidades de responder sim até ao final da tarde, altura em que deveria ter alta. Foi uma barrigada de atenção a tarde inteira. Porém, no momento em que vi os tectos brancos deslizarem sobre mim ao longo dos intermináveis corredores a cheirar a éter, desceu em mim um pânico incontrolável. A leveza com que passavam a minha maca de mão em mão
- Esta senhora vai para o oito. Levas?
- É para quem?
- Para o professor. 
deixava-me de boca aberta. Para o professor? Qual professor? Não será melhor dizeres-lhe QUAL o professor? Queres-me convencer que o vaidoso é o único professor do hospital? Levantei a cabeça entoucada de um verde estéril, fixei a cara do tipo que agora me deixava e olhei para o tipo a quem estava entregue
- Olhe, desculpe... Olá, o meu nome é Sofia Cunha e vim só tirar um sinal do pé.
Olhou-me como se ouvisse um morto falar, como se fosse impossível uma tipa numa maca dizer o que quer que fosse e eu reforcei a ideia
- Esquerdo. É o pé esquerdo.
E assim passei a fazer de cada vez que me passavam de mão
- É para o oito. Levas?
- Olhe, desculpe... Olá, o meu nome é Sofia Cunha e vim só tirar um sinal do pé
Sim, fiz esta figura por várias vezes. Antes fazer papel de tonta do que sair de lá sem um órgão saudável.
Riam-se, comentavam entre eles a minha aflição, tratavam-me como a anormal que sou, mas achavam graça e por isso preocupavam-se. Que tarde perfeita!
Mas o que é bom não dura para sempre e este acabou no momento em que o médico vaidoso me espetou a agulha no osso para aplicar a anestesia e perguntou
- Dói-lhe Ana Sofia?
- O que é que te parece, ó vaidoso? Espeta uma agulha no teu dedinho para veres o que é bom!
Uma enfermeira maternal tentou acalmar-me
- Pense em coisas boas. Onde é que gostava de estar agora, Ana Sofia?
- Poupe o seu latim, mãezinha! Eu sou ansiosa há trinta e sete anos e isso não vai mudar no momento em que me estão a cortar metade de um dedo!
- Respire fundo, Ana Sofia...
- Por amor de Deus parem de me chamar Ana Sofia. Como é que querem que eu descontraia se não param de me chamar o nome dos ralhetes? Não fui eu, mãe, foi a mana, juro!
Esperneei, gritei, pedi socorro, mas o vaidoso não se deixou comover. Ao fim de poucos minutos já me tinha cosido a cabeça do vizinho do dedão com sete pontos e o seu cabelo continuava impecavelmente penteado, nem um fiozinho fora do lugar. Já de pé, olhou-me os olhos arregalados de ansiedade e estou certa de que pensou
- Deixe lá, cada um faz o que pode pela vida.