quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ouvia... via...via...

Daquela janela nada se ouvia.
E se ela gritava, oh se gritava
o mais que podia.
Pouco ou nada podia, a desgraçada.
Naquele beco, nem o gato fugia.
Sereno
surdo talvez
remexia, remexia
o lixo que por ali havia.

Daquela janela também nada se via.
Nem o beco
nem o gato
nem o lixo.
Por isso pouco interessava
o que em quem remexia.
Naquele beco para ela pouco ou nada existia.

Porque gritava então?
Se o mais que podia não se ouvia
e o mais que ela via era o nada que a perseguia?

Gritava porque só isso podia.
Queria lá saber se o gato
que talvez até fosse um sapato
não imaginava o que por ali se sentia.

O eco, esse sim, existia.
Oh se existia
oh se gritava gato sapato
no beco de uma alma cega
e vazia.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Três vivas ao Valium

          Eu já devia saber que uma pessoa deve estar preparada para tudo. Seja onde for, com quem for, ou em que circunstâncias for, eu já devia saber que qualquer coisa improvável pode sempre acontecer. A mim, quero acreditar que especialmente, acontece-me muito, essa coisa do improvável. Eu até gosto. Tanto de acontecimentos quanto de especialidades. E notem - antigamente usava reparem, mas a minha irmã usa notem com tal elegância, que não resisto a copiá-la no estilo - que não sou esquisita em sede de particularidades. Basta-me ser especial no que respeita a acontecimentos improváveis para ser feliz.
          Bom, mas dizia eu, que com esta idade já devia saber que se deve esperar tudo, mesmo tudo, de qualquer situação. Mas distraí-me e dei com os burros na água. Descurei o facto de que ir comprar cigarros à bomba a altas horas da noite, é uma situação, e o improvável aconteceu; fui apanhada de surpresa por uma operação stop de polícias sérios, daqueles altos e espadaúdos, sem bigodes nem braçadeiras vermelhas das brigadas de trânsito.
          - Boa noite senhora condutora, os seus documentos por favor.
          Teria sido bem mais inteligente da parte do senhor agente pedir-me um cigarro, porque isso eu tinha. Mas não, o tipo era demasiado atlético para fumar, por isso nem ofereci. Em vez disso, rasguei o sorriso mais amarelo que consegui, e constatei
          - Nesse caso temos aqui um problema.
          De imediato corrigi
          - Bom, na verdade quem tem um problema sou eu, bem sei. É que não os tenho comigo. Vim só comprar cigarros à bomba e deixei tudo em casa que é mesmo aqui ao lado.
          - Pois é senhora condutora, tem de facto um problema. Diga-me, em que ano tirou a carta?
          E é aqui que entra o meu torcicolo, mais especificamente o relaxante muscular que tinha tomado para o torcicolo, que começava por aquela altura a dar sinais claros da sua eficácia. É que os relaxantes musculares são uns bandalhos, relaxam tudo o que apanham pelo caminho, e não apenas os músculos que se pretende relaxar. Com a língua entaramelada, e a minha dificuldade genética para o pensamento matemático, balbuciei
          - Ora... três vezes três quinze e vai um... Não, não, espere, e vão dois... e assim sendo...1995, acho.
          - Senhora condutora, assim fica difícil.
          (O que me tira do sério que me esfreguem o óbvio na cara. Que está difícil sei eu. Já estava difícil em casa sem cigarros, quanto mais agora. É claro que estava difícil, caramba, e com tendência a piorar para o final da noite)
          - Lembra-se pelo menos de quantas perguntas lhe fizeram no exame de código?
          (Aquela pergunta matou-me. Especialmente por ter sido feita com a segurança de uma pergunta de rotina, daquelas que se fazem regularmente em situações idênticas à minha. Se me lembro de quantas perguntas tinha o meu exame de código? Estaria ele a gozar? Mais números? Quantas perguntas? Seria a resposta um número de tal forma memorável  que todos os condutores deveriam lembrar-se da resposta? Sei lá, um número tipo três perguntas e meia, ou sete perguntas e dois terços?)
          Graças a Deus consegui guardar este pensamento para mim. Duvidei por momentos das minhas habilitações para conduzir, e, trémula de receio e relaxamento químico, respondi
          - Francamente não faço ideia.
          O senhor agente, indignado por eu não saber a resposta a tão ilustre pergunta, abanou a cabeça em sinal de reprovação e disse
          - Isto assim está mau, senhora condutora. Que categoria de licença para conduzir é que tem?
          Tenho de lhe fazer justiça, esta era uma pergunta razoável. Qualquer condutor, em condições normais, deveria saber responder sem hesitação. O problema é que as minhas condições eram tudo menos normais. Eu era naquele momento uma condutora muscularmente relaxada - por indicação médica, note-se - e acolchoada por um fato de treino coçado, por cima de um pijama de inverno. A parte boa é que tínhamos passado dos números às letras. Tanto quanto o meu cérebro distendido pelos fármacos podia recordar, as categorias da carta de condução eram letras. E maiúsculas.
          - Categoria? Sim, claro, categoria. Ora... A?
          - ...
          - L?
          -... + ... + ...
          Vá lá, senhor agente, deixe-se de contas. Está bom de se ver que não sei que porra de letra hei-de pronunciar. Só sei que é maiúscula. Nisso acertei. Já é qualquer coisa. É a dos carros, caramba! O que é que este veículo lhe parece? Um triciclo? Não é um topo de gama, é certo, mas está bom de se ver que é um carro, não? Sejamos sérios, senhor agente!
          Uma vez mais consegui refrear a fúria a tempo, e dei o peito às balas
          - Tenho de ser honesta. Não faço ideia que letra é. Mas sei que a carta é cor-de-rosa. Para uma mulher não está mau, certo?
          Infelizmente o tipo não tinha ponta de humor e dei por mim solitária, acompanhada apenas pelas minhas gracinhas sem piada nenhuma, enfiada num único carro minúsculo, rodeado por vários carros enormes fortificados, e por vários agentes mascarados de ninja. Temi passar a noite na esquadra, torturada com sacos cheios de laranjas, até esgotar o alfabeto e acertar finalmente na letra correcta. Rendida, deixei cair a cabeça para a frente - ou ela caiu de relaxamento, não me recordo - e com a testa apoiada no volante  dei de caras com os meus sapatos ténis a vomitarem refegos das meias grossas de andar por casa. De tão descontraída - já nem o pescoço me doía - só consegui preocupar-me com o insignificante: não acredito que vou dentro nesta figura.
          Para grande surpresa minha, o senhor ninja mandou-me seguir. Não tinha humor, é certo, mas tinha um coração enorme. Ou isso, ou um torcicolo do caraças.

terça-feira, 21 de maio de 2013

A rapariga, a lebre e a tartaruga.

Tempos houve em que a rapariga desejou ser única.
Depois disso,
tempos houve em que acreditou ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que foi, de facto, única.
Ainda depois, 
tempos houve em que voltou a desejar ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que deixou de acreditar ser única.
Ainda mais depois, 
tempos houve em que voltou a acreditar ser única, que é como quem diz, 
tempos houve em que foi uma profunda idiota, que é como quem diz, 
imagine-se, 
tempos houve em que foi uma profunda idiota.
Mas a rapariga, apesar de profundamente idiota, até era esperta
e decidiu nunca mais desejar ser única
e nunca mais acreditar ser única.
Lamentavelmente continuou a ser única.
A única idiota inconformada do mundo inteiro.

Moral da história: 
A lebre é única e esperta. 
A tartaruga e a rapariga também, que é como quem diz, 
somos todos iguais, a merda é a meta.

terça-feira, 14 de maio de 2013

E eu sei lá que raio de título esta coisa há-de ter.

Os post-its têm-se revelado uma fonte inesgotável de inspiração, ou lá o que é, na minha vida. 

Ainda no outro dia estava eu para ali sem nada para fazer intrigado com o nada que não me cabe na cabeça não se faça sozinho e vai daí lembrei-me dos post-its sem conseguir estabelecer um encadeamento lógico de raciocínios pensamentos ou delírios que me pudessem ter levado aos quadradinhos amarelos que no meu caso ultimamente têm sido mais rectângulos cor-de-laranja ou azuis ou cor-de-rosa porque são os que se vendem no chinês mas que para o caso servem tão bem como os outros pelo que dizia eu estava ali sem nada para fazer e o nada sem maneira de me entrar na cabeça que precise de ser feito que não se consiga fazer sozinho e vai na volta post-its.

Foi assim mesmo. Sem avisar. De um momento para o outro vem-me à cabeça o desperdício que é um post-it.

Não é preciso pensar muito para concluir o desperdício de cola e de papel que para ali vai num quadradinho ou rectângulo tão pequenino num bocadinho tão reduzido de papel que impressiona possa conter em si tanta negligência daquilo que são afinal os recursos de todos e não apenas dos chineses portugueses ou marqueses que os vendem e decidem que um quadradinho ou rectângulo de papel que alguém vai querer colar nalgum lado para deixar algum recado se pode fabricar com uma quantidade tão pequena de papel e uma quantidade tão pequena de cola que afinal não servem para colar nem para deixar recados seja em que lugar for ou que tipo de recados venham a ser que afinal não são mais do que confetis para se atirarem ao ar em festas chinesas portuguesas ou marquesas regadas com o melhor champanhe comprado com o dinheiro de quem levou para casa uma coisa sem saber que estava a comprar coisa nenhuma porque afinal a cola não cola como deve e o papel não papela como deve porque se devesse ficaria colado e não fica e os recados a meio e a voar e a mãe sem saber que o pai não vai chegar e o pai a achar que a mãe sabe e o pai sem sequer imaginar que a mãe chora por não saber onde anda o papel ou onde anda o raio do homem que não deixou recado e se deixou seguramente o fez num papelinho rectangular que a esta hora está com certeza  a levar o recado onde o vento o levou e não ali no banco da cozinha onde a mãe não se cala de desgosto.

Se o pai não soubesse que os post-its não são de confiança não o teria deixado ali, com medo que a mãe soubesse a verdade e chorasse. Se o pai não soubesse que os post-its não são de confiança, teria deixado recado nenhum na porta do frigorífico, para que a mãe chorasse por culpa de outra pessoa que não ele. Os pais têm uma inteligência do caraças. 

Infelizmente a mãe não faz ideia do desperdício que pode conter um minúsculo pedaço de papel apesar de um dia eu a ter avisado mas isso foi na altura em que nem eu sabia o perigo que é usar uma coisa que desperdiça tantas outras e só por isso a avisei naquele papelinho que por esta altura está com certeza  a avisar as pessoas que moram onde o vento levou o papel e se ao menos não houvesse vento não seria a minha mãe chorar não é justo que a família para onde sopra o vento tenha tudo tenha um papelinho a avisar que o papelinho é uma desperdício e tenha outro papelinho que é um desperdício a avisar que o pai não vai voltar hoje nem nunca e a outra mãe da outra família desconfiada porque se o marido sabe que o papelinho não é de confiaça porque como já vimos não se pode confiar numa coisa que desperdiça tantas outras então por que raio havia de lhe deixar um papelinho daqueles a dizer que não vai voltar mais e por aí adiante até onde o vento levar papelinhos.

Enquanto houver vento todas as famílias hão-de andar num alvoroço por conta dos post-its que mais parecem confetis.

E por culpa de tanto alvoroço estava eu para ali deitado sem nada para fazer louco de curiosidade para saber porque raio o nada há-de insistir em ter quem o faça quando afinal basta ficar quietinho para que apareça feito basta ficar quietinho para que todas as mães chorem desalmadamente e para que todos os pais corram deslamadamente não há alma em coisas que não são o que dizem ser para longe do choro que afinal não é culpa sua porque o pai sabia muito bem que os papelinhos não são de confiança e a mãe é que não prestou atenção quando o filho lhe disse que os papelinhos não prestam a mãe é que não quis ouvir o que o filho lhe disse por isso no fundo a mãe até merece ficar para ali desvairada a bramir como uma cabra tresmalhada enquanto eu ali deitado quieto sem nada para fazer lixado da vida por me ter esquecido de perguntar ao pai como é que se faz o nada afinal.