quinta-feira, 23 de maio de 2013

Três vivas ao Valium

          Eu já devia saber que uma pessoa deve estar preparada para tudo. Seja onde for, com quem for, ou em que circunstâncias for, eu já devia saber que qualquer coisa improvável pode sempre acontecer. A mim, quero acreditar que especialmente, acontece-me muito, essa coisa do improvável. Eu até gosto. Tanto de acontecimentos quanto de especialidades. E notem - antigamente usava reparem, mas a minha irmã usa notem com tal elegância, que não resisto a copiá-la no estilo - que não sou esquisita em sede de particularidades. Basta-me ser especial no que respeita a acontecimentos improváveis para ser feliz.
          Bom, mas dizia eu, que com esta idade já devia saber que se deve esperar tudo, mesmo tudo, de qualquer situação. Mas distraí-me e dei com os burros na água. Descurei o facto de que ir comprar cigarros à bomba a altas horas da noite, é uma situação, e o improvável aconteceu; fui apanhada de surpresa por uma operação stop de polícias sérios, daqueles altos e espadaúdos, sem bigodes nem braçadeiras vermelhas das brigadas de trânsito.
          - Boa noite senhora condutora, os seus documentos por favor.
          Teria sido bem mais inteligente da parte do senhor agente pedir-me um cigarro, porque isso eu tinha. Mas não, o tipo era demasiado atlético para fumar, por isso nem ofereci. Em vez disso, rasguei o sorriso mais amarelo que consegui, e constatei
          - Nesse caso temos aqui um problema.
          De imediato corrigi
          - Bom, na verdade quem tem um problema sou eu, bem sei. É que não os tenho comigo. Vim só comprar cigarros à bomba e deixei tudo em casa que é mesmo aqui ao lado.
          - Pois é senhora condutora, tem de facto um problema. Diga-me, em que ano tirou a carta?
          E é aqui que entra o meu torcicolo, mais especificamente o relaxante muscular que tinha tomado para o torcicolo, que começava por aquela altura a dar sinais claros da sua eficácia. É que os relaxantes musculares são uns bandalhos, relaxam tudo o que apanham pelo caminho, e não apenas os músculos que se pretende relaxar. Com a língua entaramelada, e a minha dificuldade genética para o pensamento matemático, balbuciei
          - Ora... três vezes três quinze e vai um... Não, não, espere, e vão dois... e assim sendo...1995, acho.
          - Senhora condutora, assim fica difícil.
          (O que me tira do sério que me esfreguem o óbvio na cara. Que está difícil sei eu. Já estava difícil em casa sem cigarros, quanto mais agora. É claro que estava difícil, caramba, e com tendência a piorar para o final da noite)
          - Lembra-se pelo menos de quantas perguntas lhe fizeram no exame de código?
          (Aquela pergunta matou-me. Especialmente por ter sido feita com a segurança de uma pergunta de rotina, daquelas que se fazem regularmente em situações idênticas à minha. Se me lembro de quantas perguntas tinha o meu exame de código? Estaria ele a gozar? Mais números? Quantas perguntas? Seria a resposta um número de tal forma memorável  que todos os condutores deveriam lembrar-se da resposta? Sei lá, um número tipo três perguntas e meia, ou sete perguntas e dois terços?)
          Graças a Deus consegui guardar este pensamento para mim. Duvidei por momentos das minhas habilitações para conduzir, e, trémula de receio e relaxamento químico, respondi
          - Francamente não faço ideia.
          O senhor agente, indignado por eu não saber a resposta a tão ilustre pergunta, abanou a cabeça em sinal de reprovação e disse
          - Isto assim está mau, senhora condutora. Que categoria de licença para conduzir é que tem?
          Tenho de lhe fazer justiça, esta era uma pergunta razoável. Qualquer condutor, em condições normais, deveria saber responder sem hesitação. O problema é que as minhas condições eram tudo menos normais. Eu era naquele momento uma condutora muscularmente relaxada - por indicação médica, note-se - e acolchoada por um fato de treino coçado, por cima de um pijama de inverno. A parte boa é que tínhamos passado dos números às letras. Tanto quanto o meu cérebro distendido pelos fármacos podia recordar, as categorias da carta de condução eram letras. E maiúsculas.
          - Categoria? Sim, claro, categoria. Ora... A?
          - ...
          - L?
          -... + ... + ...
          Vá lá, senhor agente, deixe-se de contas. Está bom de se ver que não sei que porra de letra hei-de pronunciar. Só sei que é maiúscula. Nisso acertei. Já é qualquer coisa. É a dos carros, caramba! O que é que este veículo lhe parece? Um triciclo? Não é um topo de gama, é certo, mas está bom de se ver que é um carro, não? Sejamos sérios, senhor agente!
          Uma vez mais consegui refrear a fúria a tempo, e dei o peito às balas
          - Tenho de ser honesta. Não faço ideia que letra é. Mas sei que a carta é cor-de-rosa. Para uma mulher não está mau, certo?
          Infelizmente o tipo não tinha ponta de humor e dei por mim solitária, acompanhada apenas pelas minhas gracinhas sem piada nenhuma, enfiada num único carro minúsculo, rodeado por vários carros enormes fortificados, e por vários agentes mascarados de ninja. Temi passar a noite na esquadra, torturada com sacos cheios de laranjas, até esgotar o alfabeto e acertar finalmente na letra correcta. Rendida, deixei cair a cabeça para a frente - ou ela caiu de relaxamento, não me recordo - e com a testa apoiada no volante  dei de caras com os meus sapatos ténis a vomitarem refegos das meias grossas de andar por casa. De tão descontraída - já nem o pescoço me doía - só consegui preocupar-me com o insignificante: não acredito que vou dentro nesta figura.
          Para grande surpresa minha, o senhor ninja mandou-me seguir. Não tinha humor, é certo, mas tinha um coração enorme. Ou isso, ou um torcicolo do caraças.

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