quinta-feira, 5 de julho de 2012

O tamanho das coisas

          O sacana grande brincava com o rapaz pequeno de manhã, e sacudia-o com força à noite. Algumas noites. Cada dia mais noites. O rapaz pequeno quase não existia, respirava apenas, para que o sacana grande pudesse brincar com ele de manhã, e sacudi-lo com força à noite. A mãe do rapaz também era pequena e também quase não existia, por isso o rapaz pequeno acreditava que era assim mesmo, que bastava respirar. Algumas manhãs o rapaz pequeno desejava vagamente existir, mas o dia acabava cedo, e a tasca do Sr Simões fechava tarde.
          Respirava apenas, então.
          A mãe pequena do rapaz pequeno existia mais um bocadinho, mas apenas o suficiente para conseguir ir às compras. Como castigo por não conseguir tratar do jantar sem ter de ir à rua, o sacana grande sacudia-a ainda mais violentamente.
          O rapaz pequeno cresceu, e acabou por descobrir o verdadeiro significado da expressão "anda cá que eu sacudo-te as moscas". Descobriu também que nenhuma mosca alguma vez sobreviveu à expressão. Felizmente o rapaz nem sequer existia, pelo que não podia ser uma mosca.
          Um dia, pela manhã, o rapaz pequeno agarrou numa faca grande, e com as mãos que tinha graças a não ser uma mosca, fatiou o sacana. O sacana ficou finalmente pequeno. Muitos bocadinhos pequenos.
          A mãe acabou de fazer a sopa, limpou as mãos encarnadas ao filho, arrumou as malas, e partiu com o rapaz para o lado de lá.
          A Rosa Maria e o Miguel viveram felizes para sempre numa casa cheia de moscas.
          O sacana grande, agora pequeno, nunca chegou a ter nome.
          Nem na lápide.

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