sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Higiene oral

O que fazer com a realidade?
Uns recusam, outros abusam, eu mastigo.
Tenho uma dentição do caraças.
Já em miúda, sempre que ia ao dentista, o meu marfim, ou lá o que é, era generosamente elogiado, e a minha mãe também.
- Sim, senhora, isto é que é uma boca bem cuidada.
Obrigada, mãe, por todas as palmadas que me infligiste quando não queria lavar os dentes. Talvez abra uma excepção para o dia em que fui apanhada a fingir a escovagem, batendo violentamente com a escova no copo.
Tinha-te custado alguma coisa acreditar que aquilo era o som de uma piralha furiosa a lavar os dentes?
Não ouviste o que disse o dentista, mãe? Tenho uma dentição do caraças!
Era preciso abrires a porta da casa de banho num repente, e surpreenderes-me na mentira com uma palmada sonora na bochecha desnuda?
Aquilo doeu, caramba. Na nádega, e na alma.
Custava-te muito teres-me deixado acreditar que era muito espertinha?
Achas bonito destruir assim a crença de superioridade de uma miúdeca?
Não achas que a vida viria a ensinar-me isso mais tarde? Seguramente muito a tempo.
Tinhas de ser tu, minha mãe, a fazê-lo?
Mas tudo bem... Eu aguento.
Expurgado o meu trauma no que respeita  a descobertas precoces, a verdade é que tenho uma dentição do caraças e antes dos 90 ninguém ma tira. Depois não faz mal, não são precisos dentes para comer Cerélac.
Até aos 90 vou continuar a mastigar a verdade com a magnífica dentição que a sorte me deu, e que a minha mãe soube preservar. Bifes da parte da cabeça? Venham eles, desde que sejam bifes. Pastilhas Gorila (ninguém me tira da ideia que também são da cabeça. Duras de dar dó)? Chutem. Acabo com elas num ápice, até se desfazerem na boca numa consistência de pasta dentífrica.
- Mãããããããe... mmm m mm, mmm... (isto sou eu a pedir um lenço de papel à mãe para cuspir a pastilha)
Agora a sério, mandem vir tudo, do mais rijo, que eu mastigo. Mastigo, mastigo, mastigo... Junto mais um bocadinho de saliva e mastigo, mastigo, mastigo... Até ficar molinho, bem molinho. Só tem de ser verdade.
Cada um tem as suas manias, e eu gosto de uma laranja que saiba a laranja, mesmo não sendo fã de citrinos. Mas não me venham com essas modernices de carapaus que sabem a sardinhas. A sério, não acreditem na ingenuidade dos carapaus. São tramados, os tipos. Um momento de distracção e ali estão eles, elegantemente deitados na banca de mármore, os olhinhos semicerrados, tão pequenos como os das sardinhas, a barriga encolhida e os joelhos flectidos para o tamanho não levantar suspeitas. Tão matreiros que num instante
- Dois quilos, por favor.
Dois quilos que quando desensacados em casa, parecem quatro. Os malandros de barriga espraiada novamente, e um monte de olhos, enormes, a rirem-se da nossa imprudência.
Têm sorte estes carapaus. Se tivessem tido uma mãe como a minha, apanhavam uma palmada na hora.

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