sexta-feira, 14 de junho de 2013

E o ouro vai para...

Sobrava-lhe tudo.
Satisfeita, um pouco feliz, estendeu o corpo no sofá. 
Quase todos os músculos relaxados, à excepção do braço esquerdo hirto, a amparar a cerveja pousada na barriga para que não se entornasse
A mãe costumava dizer-lhe que o cérebro também é um músculo, Há que treiná-lo se o queremos em forma. O cérebro é de facto um músculo. Soube-o com certeza no momento em que lhe saltou da cabeça a ideia de que, se lhe sobrava tudo, só podia ser por não lhe faltar nada. Só pode ter sido o cérebro a atirar aquela ideia cá para fora, ainda dentro da cabeça. O fora e o dentro é uma questão muito confusa pelo que prefiro não me alongar sobre essa matéria. Fique-se com a ideia de que não lhe saltou nada da cabeça para fora. Saltou-lhe apenas uma ideia de dentro para um dentro que é um bocadinho fora de algum lado, para que a rapariga pudesse sabê-la. Só pode ter sido o cérebro a tratar desse assunto, uma vez que todos os músculos estavam relaxados, e o que não estava, tratava de conservar a cerveja dentro da garrafa, que para um braço, ainda para mais o esquerdo, é tarefa mais do que suficiente para absorver a atenção por completo.
Está bom de se ver que a rapariga era dextra. E ainda bem. Se assim não fosse, se a rapariga fosse canhota, surgiriam dúvidas. Uma mão inábil não pode segurar uma coisa na vertical e acumular a responsabilidade de atirar cá para fora, que ainda para mais é um bocadinho dentro, uma coisa tão importante como uma ideia.
Aquela ideia não era boa, mas era importante. Duas características accionadas pelo mesmo motor: o desassossego. A ideia não era boa porque lhe roubara o sossego, e a ideia era importante porque lhe roubara o sossego.
Depois de provada a resposabilidade do cérebro no que respeita ao arremesso de ideias de dentro para dentro, e a sabedoria da mãe, restava-lhe o motor para a atormentar.
Desassossegada, saltavam-lhe ideias da cabeça para fora. Para fora mesmo, desta vez. Daquelas que se podem ler nos corpos agitados. A camisola até aos joelhos a tapar agora pouco mais do que a linha do umbigo, a cerveja entornada no tapete de um século antigo, e as ideias, atléticas, cada vez mais longe, cada vez mais improváveis na medida alcançada. Porém, nenhuma que desse o menor sentido à incoerência,
Sobrava-lhe tudo mas nem por isso não lhe faltava nada. 
Sobravam-lhe coisas que não sabia onde pôr, talvez num caderno, ou num silêncio - mas os silêncios dos próximos três meses já todos ocupados por coisas sem lugar -, e coisa nenhuma dentro dela. Só o vazio onde pairar uma ou outra ideia perdida, que o cérebro não chegou a conseguir atirar cá para fora, por apanhar a rapariga distraída.
A rapariga raramente se conseguia distrair naturalmente, por isso lhe custou tanto ver o tapete estragado, tão distraído, o sortudo. Mas o cérebro é um atleta olímpico, e para chegar a esse nível só com muita persistência. Mais cerveja menos cerveja, mais dia menos dia, acaba sempre por conseguir o que quer: milhares de ideias espalhadas por todo o lado e finalmente uma capaz de acalmar a rapariga sem roupa, nem tapete, nem cerveja. Uma marca memorável. Longe, longe. Quase nem era uma ideia de tão remota.

Ainda assim, jogo é jogo, por isso: medalha de ouro para a rapariga, o lugar mais alto do pódio só para si, e uma bandeira escura - qual vermelha, qual verde, qual armilar, ou amarela, qualquer coisa com "a" "m" e "r". Escura. -, içada no alto e vaiada por todos.

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