segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Carta ao Pai Natal (fora de horas, claro)

          Querido Pai Natal,

          Ando há dias com esta carta às voltas na cabeça, mas por culpa da urgência dos doces e dos salgados, só hoje a escrevo. Não é urgente, por isso pouco importa a data. As rabanadas eram para sábado, já o que te quero pedir é para quando puderes, sem pressa.
          Desconfio que não faz muito sentido escrever-te a ti, mas não encontrei destinatário adequado ao pedido, por isso abuso do espírito da quadra  para evitar ficar para aqui a falar sozinha.
          Podes-me ouvir?
          Se não te apetecer nem oiças, basta-me que acenes com a cabeça de vez em quando. Pode ser?
Sabes o que é Pai Natal, tenho uma dúvida há anos para a qual ainda não consegui encontrar resposta, e como estou prestes a completar trinta e cinco anos, começo a ter alguma vergonha de ainda não perceber nada disto.
          Diz-se por aí - numa conjugação reflexa do presente do indicativo, demasiado genérica para o meu gosto - que se deve amar com cuidado. Parece que o coração é matéria delicada e mais vale não abusar. Eu tenho abusado, é certo, mas mais por mera inabilidade do que por convicção.
          Depois dos trinta, altura em que nos damos conta de que as birras não valem a pena; de que ele não vai voltar a respirar se estiver já morto; de que um dia nem a tua mãe vai lá estar para te dar dois açoites no rabo e ordenar-te que pares, ou para convencer o pai a comprar o cubo mágico à menina; de que a mãe nem sequer vai lá estar para que lhe grites à vontade o que gostarias de gritar ao patife do defunto; de que um dia vamos olhar em frente e só veremos uma linha; a da frente, claro; enfim, depois de me dar conta de que a vida é mesmo a vida e não há birra cheia de baba que mude isso, achei que devia ser uma pessoa melhor. Depois de alguma investigação científica sobre essa vasta matéria que é "uma pessoa melhor", entendi por bem que devia observar antes de agir, decidir antes de agir e mesmo depois de tudo isso, devia respirar, depois respirar ainda um pouco mais, e só então agir.
          Tentei isso tudo o melhor que pude, mas infelizmente errei ao acreditar que podia ser uma pessoa que não sou. Já tinha errado à primeira quando não quis ver que a vida era a vida, e agora, estúpida, voltei a errar ao achar que podia ser outra que não esta. E esta, apesar de respirar já bastante melhor, não sabe viver feliz de outra maneira que não seja a esticar as mãozinhas em concha e dizer,
          - Toma, é teu, mas vê bem o que fazes com ele.
          Se for preciso ainda explica,
          - Vês, não há mistério nenhum: tem dois ventrículos que funcionam na perfeição, uma aurícula esquerda saudável quanto baste, uma aurícula direita melindrosa, e uma artéria aorta um bocadinho mimada.      
          Mas se o tratares com jeitinho, vive-te feliz até aos cem anos.
          E se mesmo assim não se conseguir fazer entender, vai buscar um bisturi afiado e faz um cortezinho suave, enquanto esclarece,
          - Espreita aqui com cuidado. Mas não toques! Estás a ver ali ao fundo aquela veiazinha minúscula? Ali não deves mexer, senão aborrece-se. Prometes?
          Depois pega numa agulha fininha, tão fininha que quase não se vê para não deixar marcas, e cose a incisão com a delicadeza das modistas de outros tempos. Uma compressa esterilizada só por precaução e,
          - Toma, é teu novamente, mas vê bem o que fazes com ele.
          É certo que esta que sou podia meter as mãos nos bolsos em vez de andar para aí com elas estendidas, e já agora podia guardar o coração no lugar dele. Mas para isso teria de prescindir de toda a parte boa de viver com o coração bem vivo. Teria de prescindir do deslumbramento das coisas bonitas, de se sentir inchada de felicidade por culpa do sol baixinho das manhãs de inverno, da felicidade imensa que chega com as coisas parvas, de te amar com a demência do último dia do Universo, da última hora do Universo, do último minuto do Universo, do último segundo do Universo...  Teria até de prescindir do rímel desbotado por causa do reclame tolo da Coca-Cola... Mas como isso está fora de questão, observou, decidiu, respirou, respirou ainda uma vez mais, e comprou um rímel à prova de água.

          Confuso, Pai Natal? Imagino que sim. Mas não te preocupes, se não conseguires trazer-me a segurança das coisas certas, traz-me ao menos o carro de praia das Barriguitas, para eu me distrair.

          Um beijo enorme,
          S.

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