terça-feira, 24 de abril de 2012

Chichi cama

          O mundo apaga as luzes à noite para nos obrigar a descansar. Nós, teimosos, queremos tudo às claras, sempre. Mas as coisas não devem ser vistas às claras a toda a hora, porque se assim fosse para ser, a Terra não seria redonda. As coisas precisam de descansar, e com elas nós deveríamos aproveitar para descansar também.
          Raramente descanso, mas ontem, sem luz, descansei. Ainda assim, por falta de hábito, acendi a lanterna e li. O mundo não haveria de se zangar; que mal faz afinal um pequeno círculo de luz no meio do mundo preto, enorme? Tão preto. Tão enorme. Ao fundo uma vela sábia tremia na parede, provavelmente com medo de acordar o que o mundo ditara adormecido. Eu, teimosa, insisti em não obedecer.
          Sempre gostei de fazer as coisas certas, e por isso, apesar do frio na barriga de cada vez que
          - Vá, meninas, chichi cama.
          ia. Ia e apesar dos olhos fechados com força para não ver o escuro (para não ver o escuro, sua tonta?), tudo preto.
          Ontem o mundo - e os senhores da EDP - quiseram roubar a autoridade à mãe, mas eu, crescida, e já sem medo da noite, desobedeci; não lavei os dentes, nem fui para a cama, acendi a lanterna e li.
          Li com a coragem de quem pode fazer o que quer (posso?) e, por magia, o que eu queria saber apareceu feito (apareceu?). No silêncio escuro a lanterna pousada no ombro respirava nas folhas do livro aberto. Primeiro aflita, mas depois... ah mas depois devagar... muito devagar como é a respiração tranquila.
          Estou viva, mãe. Podes apagar a luz. Já fiz chichi e vou já para a cama.

1 comentário:

Anónimo disse...

As coisas de que tu te lembras...