segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Aconteceu aqui

É raro ir ao Centro de Saúde. No outro dia, não tive como evitar a visita.
Arrastei-me em braços próprios rua acima e lá fui eu a exibir as canadianas vermelhas pelo caminho.
(As canadianas devem ser contemporâneas do grená. Vai-se a ver e ainda são primos, ou assim)
O Centro de Saúde acontece sem se saber muito bem como, num prédio de habitação. E uso "acontece" no seu sentido mais primário. Aconteceu ali por mera casualidade. Nada naquele Centro de saúde parece obedecer a outra lógica que não a do acaso. Bom, se calhar estou a ser injusta, a localização talvez não seja coincidência. Vislumbro um laivo ténue de intencionalidade no facto do Centro de Saúde de Campo de Ourique, se situar em Campo de Ourique. Aconteceu-nos aquele centro de saúde, mas vá lá, aconteceu no bairro dos utentes, Campo de Ourique. Menos mal
Independentemente da minha observação muito pouco original sobre o nosso Serviço Nacional de Saúde, que também esse nos acontece (estou a gostar disto do verbo acontecer. Incrível como uma palavrinha tão aborrecida pode ser afinal tão cheia de coisas), a verdade é que esta minha visita ao Centro de Saúde, superou em muito o mero queixume sobre listas de espera gigantes, médicos que semeiam pinças nas barrigas dos doentes ou administrativas de cabelo louro com raízes pretas, a mandar naquele bocadinho de território tão fértil, que medeia entre o balcão e a cadeira coxa onde depositam o rabo todas as manhãs, geralmente com quarenta e cinco minutos de atraso.
Este cenário dantesco eu já esperava, o que me surpreendeu foi o outro.
Entrei no prédio de habitação e esforcei-me por acreditar que estava no sítio certo. Tirei uma senha, não sem antes interromper o sudoku do segurança para confirmar que aquela era a senha certa. É preciso ter muito cuidado em sítios destes, um erro é geralmente fatal. Ninguém perdoa. Tiraste a senha errada, agora aguentas-te mais uma meia-horita à espera da tua verdadeira vez, ó espertinha. Nestas circunstâncias opto pela minha versão burra-não-pensante, vagamente aparentada do grilo-falante e não presumo nada, nem o mais óbvio. Pergunto tudo. TUDO!
Confirmada a senha certa. Esperei. Algum (muito) tempo depois,
dlim-dlom... Senha 49, balcão 3.
Agarrei-me à mala e às canadianas (reparem que são três coisas para apenas duas mãos), tentei organizar-me rapidamente e quando arranco o primeiro salto à vara,
dlim-dlom... Senha 50, balcão 3.
Corri à vara (varas neste caso) o mais que pude aqueles longíquos três ou quatro metros até ao balcão e consideirei-me uma sortuda por ter sido atendida, apesar da simpática senhora não ter conseguido evitar um esgar moralista acompanhado de,
- Já tinha chamado o seu número.
E eu e com um ar agradecido e compreensivo,
- Pois...
A custo deu-me um papel gigante para a mão, com meia dúzia de letras a desperdiçar uma imensidão branca, e lá fui eu ao terceiro andar, entregar uma árvore A4 gratuitamente morta, a um balcão vazio. Coxeei um pouco à volta do balcão, em saltinhos curtos já com as canadianas penduradas no antebraço, a farejar a possibilidade da senhora daquele balcão ter ido à casa-de-banho. Afinal é mesmo assim, esclareceu-me a senhora da limpeza, naquele balcão não mora ninguém. É só deixar a árvore morta em cima do balcão que alguém lhe há-de vir fazer o enterro no fim do expediente.
Apesar de tudo aquilo me parecer suspeito, obedeci e sentei-me à espera.
Duas senhoras enchiam a sala de espera com uma conversa cantada em crioulo e lembrei-me dos meus pais que depois de reformados deram em gaiteiros ainda não velhos e foram viver para Cabo Verde. A senhora da limpeza, velha e franzina, arrastava um esfregona pesada e gorda para cá e para lá num chão sem remédio. Vi-lhe as cordas nas mãos, cheinhas de sangue, a ameaçar explodir a cada lambuzadela. Que desgraça seria, pensei, tudo sujo outra vez. Felizmente não houve tragédia, para além da que se passava na televisão onde o Fernando Mendes gritava preços certos.
No meio de tantos estímulos barulhentos, detectei um outro que se impunha perigosamente pelo silêncio. Ao fundo, piscavam ordens num placar luminoso, rectangular, discreto, com letras construídas por pontinhos vermelhos,
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
E de quando em vez, entre ordens, rebentava uma bombinha desenhada também a pontinhos vermelhos, como quem diz: BUM! Estamos a brincar, pode fazer o que quiser que não o levamos para a salinha das experiências científicas. E logo de seguida novamente o tom ameaçador (na verdade não era bem ameaçador, era mais surreal)
"Seja tolerante"
Plim
"Mantenha o silêncio"
Plim
"Beba água"
Plim
"Please don't drink and drive"
Qualquer uma destas ordens individualmente, seria vista naturalmente como um conselho. A conjugação de todas num único placar e num único Centro de Saúde é que atira tudo para o mundo de Dalí.
Seja tolerante? Beba água? Assim de chofre? Sem mais nem menos?
Por momentos senti que havia alguém por trás de um vidro espelhado a observar o comportamento humano, neste caso desempenhado por uma coxa de canadianas vermelhas, duas cabo-verdianas tagarelas e uma velha de cordas nas mãos. Seja tolerante, escrito num placar luminoso, é coisa de admirável mundo novo, que pressupõe tensão e conflito eminente entre indivíduos da mesma espécie. E lá estou eu a imaginar-me numa carneirada de seres humanos, todos vestidos com bata de bloco operatório, a ser levada por uma passadeira rolante, para uma sala muito branca (não há coisas mais ou menos brancas. Branco é branco).
Sem querer parecer paranóica, a verdade é que fiquei com medo e não quero lá voltar. Se calhar sou uma daquelas "alfa" que devia obedecer a ordens sem questionar e um erro de programação qualquer deixou-me perigosamente inteligente. Se a ordem seja tolerante está lá, é para ser cumprida e questioná-la não faz bem à saúde de uma "alfa". Também aqui é caso para me fazer de burra-não-pensante pelo menos enquanto puder.

3 comentários:

Anna^ disse...

Os centros de saúde "soam-me" sempre a qualquer coisa de surreal,mas com este relato, confesso que me arrancou algumas gargalhadas.
Haja paciência(com ou sem luzinhas).

Sofia Cunha disse...

"sejamos pacientes", com luzinhas :)

the dear Zé disse...

Ui.