quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Barrigas e ecrãs

- Come  a sopa ac, faz-te bem.
Assim estou eu aqui em frente a um ecrã vazio.
- Escreve qualquer coisa ac, faz-te bem.
E eu sem vontade nenhuma de comer a sopa. Só o cheiro me enjoa.
Quando se está assim esquisita, ou estragada, ou ausente, ou lá o que é, não apetece nada.
Os olhos pregados na profundidade que o ecrã do portátil não tem, mas parece ter, como que à procura de alguma coisa lá longe, num longe que afinal é aqui. Nos ecrãs antigos era mais verosímil acreditar que existia um mundo lá dentro, onde nos podíamos perder. Cabeçudos aqueles ecrãs, cheios de respiradores a arejar o mundo que fervilhava lá dentro, quais sarjetas da 33st em NY. Que abraços bons e cheios, de cada vez que era preciso mudar o ecrã de sítio. A parte de vidro ternamente encostada à maciez da barriga, a electricidade estática a embirrar com a camisola de lã, e os braços arqueados na sua extensão máxima a aconchegá-lo, até o pousar com cuidado na nova morada.
- Agora ficas aqui.
E um último empurrãozinho com a barriga, a rende-lo de vez ao seu posicionamento para os próximos tempos.
Numa visão romântica da coisa, acho que gostava mais dos ecrãs pré-históricos. Nestes fininhos de PC da moda, custa-me a acreditar que aconteça alguma coisa lá dentro.
Entre ecrãs finos e grossos, a inércia acaba por ganhar. O ecrã entra em modo de economia de bateria, e de repente, um espelho preto a reflectir a profundidade limitada da sala onde estou sentada; o meu olhar vazio, plano; a mão a segurar o queixo e a fazer-me rugas onde elas ainda não existem, e os olhos caídos na profundidade que ainda agora ali estava.
Acorda rapariga. Aqui não há sarjetas fumegantes onde se pode ouvir o metro a passar. Olha para a tua cara vazia, ganha vergonha e vai lá para fora viver o mundo a 3D.

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