sexta-feira, 7 de maio de 2010

A casa da minha madrinha

Situada na travessa dos quartéis, a casa da minha madrinha, tal como o nome indica, era uma das casas situadas num enfiamento de casinhas, pendurado no limite norte do Quartel de Campo de Ourique. A exuberância do Quartel, atestava que ALI morava a segurança, logo, as pequenas e frágeis casas nada deviam temer perante tamanha protecção. Quero com isto dizer, que a casa da minha madrinha, morava na sombra do Quartel, que a protegia dos poderosos ventos de norte.
A fachada já sem reboco, magoada pelo tempo e com o esqueleto parcialmente à vista, escondia um universo que tive oportunidade de saborear. A porta da rua, abria para um átrio escuro e minúsculo, de onde nascia uma enorme escadaria, que conduzia à entrada da casa da minha madrinha. Esse átrio, tal como a fachada, também tinha parte do esqueleto à vista. Aliás, todo a edifício parecia estar em estado de ruína precoce. As paredes já não tinham reboco, as escadas de madeira a armar ao pombalino, nunca conheceram o aconchego da cera ou do verniz... Um casquilho torto e desajeitado, pendurado no cimo das escadas iluminava toda esta realidade. Sentia que se respirasse mais forte, uma nuvem de pó inundaria aquele átrio já tão exíguo. Por esta razão entrávamos com cuidado, pisávamos o chão levemente, e deitávamos as mãos à cabeça de cada vez que a D. Chica (ai o que ela odiava que lhe chamassem assim. Chica é nome de burra, dizia) aparecia no topo das escadas, e num gesto brusco, lançava a mão à corda que lhe permitia abrir a porta da rua, sem descer as escadas.
- Maria Teresa, és tu?
A D. Francisca (chamemos-lhe assim, como ela gostava) era uma senhora alta e altiva, uma figura magra e ressequida pela vida que nunca lhe trouxe marido casadoiro, e que lhe matou cedo demais primeiro a irmã, depois a mãe e finalmente o pai. Era uma senhora dona do seu nariz e do nariz dos outros por vezes também. Solteirona até morrer.
Há três coisas de que me recordo com grande nostalgia de casa da minha madrinha: o cágado que morava no jardim e que raramente se deixava ver (cheguei a desconfiar que não existisse porra de cágado nenhum); a iogurteira em melamina, que vá-se lá saber porquê, a madrinha guardava no quarto de hóspedes; a máquina de lavar roupa que abria por cima, e que me obrigava a um esforço atlético para conseguir espreitar o conteúdo: bicos de pés, pontinhas dos dedos das mãos no rebordo da máquina, os gémeos em dolorosa tensão e finalmente a cabeça por entre o vapor que saía da máquina recém-aberta.
A casa era enorme. Em tempos, aí funcionou uma próspera escola de costura, onde a D. Francisca leccionava orgulhosamente cursos às jovens casadoiras. Não sou do tempo da escola, mas sou do tempo das memórias, que nem o quotidiano mais duro poderia apagar. O quarto junto à entrada da casa, faz ainda hoje parte dessa história: a sala de costura. O chão revestido a alcatifa industrial vermelho escuro, era o ninho ideal para os restos de linha, que a madrinha por detrás das suas lentes grossissimas, deixava cair no chão. Já há muito que os olhos a tinham feito desistir do ofício, porém, o seu orgulho ressabiado de mulher maltratada pela vida, não lhe permitiam oficializar essa desistência. Continuava a coser... e bem! As cadeiras daquela sala intrigavam-me... intrigar-me-iam ainda hoje. Eram iguais às da sala, a mesma madeira, o mesmo desenho no tampo, mas as pernas tinham sido cortadas, tendo agora cerca de um palmo de altura. Estas cadeiras baralhavam a escala do espaço, desorientando o espectador desprevenido. Não consigo encontrar uma razão lógica, ergonómica para esta especificidade, por isso resta-me acreditar que estamos perante uma questão de identidade: Como se as próprias cadeiras gritassem: “Caramba! Afinal nós somos as Cadeiras da Sala de Costura e não as cadeiras da sala de jantar”. Ergonomia ou identidade, o que me importa registar e fixar no tempo, é a imagem compacta da minha madrinha, sentada naquelas cadeiras. Uma espécie de posição de cócoras, assistida por um objecto atarracado na forma. Era delicioso ter a minha madrinha ao nível do meu olhar. A sala de costura, seria uma altura ideal para o diálogo entre gerações, não fossem os alfinetes que são uma constante por entre os lábios de uma costureira. Ainda assim, com a dicção perturbada... entendiamo-nos.
A máquina de costura, não era um mero objecto. Era uma personagem daquela casa. Não apenas da casa de costura, da casa toda. O som doce e cadenciado da Singer a cravar a agulha no tecido, enchia a casa de vida. Acho que é justo dizer que a casa de costura era o coração da casa, pelo menos enquanto por ali se coseu.
Em tom grave, interrompendo a música de fundo:
- O que é que vocês andam a fazer que estão tão caladinhas? Querem lá ver que hoje não há rajá para ninguém!
Esta era uma pergunta desnecessária dada a evidência da resposta. Se não estivessemos no quarto da madrinha enfiadas em pelo menos cinco vestidos cada uma e com três colares ao pescoço a estancarem-nos a respiração, estaríamos seguramente no quintal onde o grito não chegava concerteza.
Pude confirmar anos mais tarde, que o quarto da minha madrinha não era afinal assim tão grande. Noutros tempos ali couberam milhares de vestidos amarrotados em cima da cama, dezenas de sapatos pelo chão e milhões de bujigangas penduradas nos locais mais insuspeitos, e claro, duas pirralhas enroladas no meio de tudo aquilo. Era um verdadeiro inferno da moda, montado em cinco minutos por duas crianças mimadas e penosamente arrumada pela D.Chica, ao final da noite, quando já eu e a minha irmã nos acotovelávamos na cama do quarto de hóspedes.
A casa afinal não é enorme, o quarto de hóspedes tão pouco. Ainda assim coube tanta coisa lá dentro. Não tenho desejo nenhum de lá voltar. Quero guardá-la assim. Gigante.

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