domingo, 25 de julho de 2010

O caruncho e outras verdades esquisitas

Agora sim, é oficial. Vê-se. Por isso pode dizer-se sem medo
- Há caruncho no soalho.
Por mais que se diga por aí, que todos os sentidos têm função idêntica na nossa relação com o mundo, a experiência diz-me que a visão é de longe o mais importante. Só ela pode escrever uma verdade. Os outros sentidos são primos pobres e impotentes a insistir com a prima rica
- Despacha-te. Vem cá dar uma mãozinha. Já não posso com este tipo a duvidar da existência de caruncho. Nada rói assim, nesta gritaria. Qual é a dúvida? É caruncho caramba!
Como uma irmã mais nova que diz para a irmã mais velha
- Vai lá tu pedir à mãe. Ela a ti ouve-te.
Pois é, ou devia ser, mas afinal não é. Se não há buracos nas tábuas nem pó de madeira roída, não há provas. Logo, o caruncho é inocente, ou melhor, qual caruncho? Não há caruncho. O barulho infernal que não me deixa dormir, é outra coisa qualquer.
Chamei um senhor importante, com cartões de visita impressos em papel de primeira classe, para dar o veredicto final.
- Pois, não vejo cá nada.
- Sim, ainda não há sintomas visíveis, mas o senhor não está a ouvir o mesmo que eu? Dê-me um segundo que vou desligar o televisor (gosto desta coisa de uma única palavra me enviar para o tempo da minha avó).
- Não se incomode, não é necessário. Ouve-se perfeitamente.
E eu de sobrancelhas a espreguiçarem-se na testa...
- e...?
- Pois, mas assim, sem certeza...
- Sem certeza? Como assim?
Bateu com o martelo na mesa e encerrou a sessão. Não há cá caruncho e pronto!
É assim com o caruncho e com tudo na vida em geral. O que não se vê, não existe, mesmo quando ouvimos que está lá.
(Como farão os cegos? Jamais poderiam ser juízes.)
Penso vender a casa, mas não sei muito bem como explicar ao novo proprietário que o caruncho do soalho, não existe. Algo como
- O barulho que ouvirá à noite e que não o deixará dormir, não é caruncho. Se quiser, pergunte ao sr. importante com cartões de visita impressos em papel de primeira classe. Ele lhe dirá.
Com sorte, dir-lhe-á que a solução para o caruncho que (não) existe no seu soalho, é um par de tampões de ouvidos, ou um comprimido para dormir.
Resta a agonia da espera, por vezes demasiado longa, até ao espanto da primeira vez
- Olha... caruncho. Que desgraça. Tudo roído.
E tábuas de queijo suiço no chão, no lugar do carvalho.
(Gosta de queijo, o caruncho?)
Maltratamos os sentidos à excepção da visão. Um dia destes, os outros zangam-se e teremos um ensaio sobre a cegueira, mas ao contrário.
Agora desenrrasquem-se, a ver apenas.
E é muito bem feito.

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