domingo, 26 de dezembro de 2010

El Loco

Numa altura em que me preparo para regressar a Barcelona (que saudades...), lembrei-me deste dia três de Setembro. Aqui fica, sem edições envergonhadas, tal e qual foi escrito há onze anos.

Barcelona, três de Setembro de 1999

Cheguei a Barcelona pela manhã; apressei-me em direcção a um táxi, entrei e disse ao motorista “à la Plaça d’Espanya” . Olhou-me pelo retrovisor com um ar desconfiado. O meu sotaque ridículo denunciou-me de imediato.

Não falámos durante toda a viagem. Paguei e saí.

Subi a Av. Reina Mª Cristina, em direcção ao palácio de Victória Eugénia. Quando cheguei à fonte Montjuic, fui surpreendida por dois caixotes de madeira avermelhada lindíssima. Ao desviar o olhar de um para o outro, deparei-me com o inesperado (não esperava encontrá-lo Já), o pavilhão de Barcelona.

Apressei-me na sua direcção por um descampado de terra batida, onde brincavam uma série de cães vadios. Fiquei com as sandálias todas sujas e os pés também.

Para a próxima vou pelo passeio.

Ao aproximar-me dei-me conta de uma figura magra e esguia, que andava para trás e para a frente entre o volume do pódio e a espessa linha branca da cobertura em levitação. Parecia um leão enjaulado, ou “El loco” de Picasso, só que usava óculos de sol.

Sacudi os pés antes de subir a escadaria de acesso.

Cruzei-me com a figura magra atrás descrita e já de costas ouvi um “Hola” ameaçador. Era ele. Virei-me, aparentemente tranquila e reparei que trazia um cartão de identificação pendurado no bolso dianteiro das calças. Era o porteiro.

Paguei 550 pesetas para entrar, isto para estudantes claro. Malditas autoridades!

Ainda no topo da escadaria confesso que tive uma certa dificuldade em decidir por onde começar. Mirei (porque estava em Espanha) à volta, rodando sobre mim própria e de imediato cruzei o meu olhar com a “Dawn”. Não me apressei na sua direcção. Rondei o pavilhão e ela aparecia e desaparecia.

Dançava para mim.

Sentei-me no banco de pedra, no extremo mais longe da dita figura. Olhei-a fixa e demoradamente. Fotografei-a.

Os cães vadios continuavam a brincar na terra batida, alheios ao que se passava a poucos metros deles.

Vida de cão.

Passado algum tempo alguém se sentou ao meu lado, tentando ver o que eu escrevia. Odiei-o e fui-me embora.

Passei por trás do muro de travertina que serve de encosto ao banco, em direcção à estátua. Ao aproximar-me, a sua imponência aumentava. Estava num pedestal.

Quando a sua superioridade se tornou insuportável, virei-lhe as costas e fui para o centro do pavilhão. Esperei cerca de quinze minutos até me poder sentar numa das duas cadeiras Barcelona. Aproveitei esse tempo para observar o espaço.

Existem apenas duas cadeiras e vários bancos. O desgaste das primeiras é muito superior ao dos bancos e conferiu-lhes não só uma textura mais marcada, como também uma sensação de colagem ao toque. Tenho as costas a descoberto e sobe-me um arrepio cada vez que me encosto ou desencosto. Sinto algo que se divide entre a repugnância e o prazer. Ainda assim, permaneço sentada.

El loco tem uma enorme dificuldade em controlar a entrada das pessoas. Existe uma nítida confusão entre o exterior e o interior. Choverá sobre a Dwan? Hoje não concerteza, estão 25ºC.

Continuo sentada na cadeira Barcelona. Estou cercada de predadores. Não eu, mas a cadeira. Estão furiosos porque nunca mais me levanto. Estou absorvida pela escrita e não lhes dou a menor importância. Não sinto o mais pequeno remorso por ser egoísta. Teoricamente existe ainda outra cadeira livre, mas está demasiado próxima da minha , o que na prática significa que ninguém se atreve a sentar.

Estão furiosos.

Devem ser franceses.

A mola do meu bloco de notas fez barulho, tenho a certeza de que todos se assustaram, mas não disseram nada. Reina o silêncio, ninguém se atreve a falar.

Aliás, El loco parece-me deprimido (talvez fale com ele mais tarde).

Uma jovem aproximou-se de mim com um movimento brusco, em tom de ameaça. Não lhe liguei nenhuma. Está de jeans e sapatos ténis. Tem um lenço pendurado numa das presilhas das calças que se confunde com a textura do ónix. É um daqueles lenços banais debotados em amarelos e castanhos.

Lá vem o francês outra vez!

Tenho cinco pessoas à minha volta, ninguém se atreve. Ops…uma sentou-se. Estúpida. Ainda bem que o escrevo para não ter de lho dizer. Ainda por cima é feia, está vestida de caqui. Não é feia por estar vestida de caqui, nem porque não seja bonita, é feia porque se sentou onde não devia.

Agora é que o francês está desolado.

El loco continua deprimido, falo com ele mais tarde.

Aparece um amigo da “feia porque se sentou onde não devia” e foram os dois para dois bancos. Acho que são portugueses.

Sinto que o francês está a chegar ao limite da sua paciência, está prestes a explodir. Encostou-se a uma coluna.

Estou no topo da hierarquia desde as 12:00 e já são 12:35.

O francês aguentou até às 12:39 e acabou de se sentar ao meu lado. Exala um cheiro levemente desagradável, mas não o suficiente para me mandar embora. É uma pena que ele tenha dado este passo, pois eu preparava-me para me levantar e observar o desenrolar dos acontecimentos.

Está desconfortavelmente sentado, com o queixo apoiado na mão direita…ops… foi-se embora, são 12:43, nem chegou a tirar a mochila que tinha às costas.

Só consigo ver as pernas do El loco, imóveis claro. Está sentado na sua cadeira à porta do pavilhão. Só se levanta quando alguém se aproxima. Coitado, falo com ele mais tarde.

Gente a mais, demasiado calor humano, demasiada intimidade com pessoas que não conheço de parte nenhuma. Vou à livraria.

13:25 – comprei um livro e estou agora sentada na enorme língua de pedra que aponta para a estátua. À minha frente está o espelho de água maior. Houve-se água a correr mas não se vê de onde é que ela vem.

Os planos verticais tendem a desmaterializar-se através de reflexos implícitos ou explícitos. Os espelhos de água enfatizam esta situação. É pena que esteja incoberto, senão os brilhos seriam mais exuberantes. Também podia chover.

Apesar de estar incoberto, El loco continua de óculos de sol: daqueles Rayban que os meus pais usavam há vinte anos atrás. Melhor dizendo: “no tempo da outra senhora”, ou ainda “no tempo da Maria Carqueja”. Não conheci nem uma nem outra. Nem tão pouco conheci alguém que as tivesse conhecido.

Mais tarde falo com El loco, talvez ele saiba.

Continua imóvel, na sua cadeira, seguramente deprimido, com os seus óculos de sol. Desconhece que a luz na retina estimula o cérebro a produzir uma qualquer substância de que desconheço o nome. Há que avisá-lo.

Mais tarde falo com ele.

Depois de sair do pavilhão

Fui até ao “Centro de cultura Contemporànea de Barcelona”. Começou a chover. Será que El loco continua de óculos?

Uma das peças expostas no CCCB é um ready-made que consiste numa cadeira, também do tempo da outra senhora, com um letreiro que dizia qualquer coisa como: “Sit down untill death tears you appart”. Lembrei-me d’ El loco. Nunca cheguei a falar com ele.

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