terça-feira, 28 de dezembro de 2010

E se as janelas crescessem connosco?

Tenho saudades das janelas altas. Daquelas janelas onde só chegava em bicos de pés, ou em cima do banco pequenino com tampo de corda, suficientemente grande apenas, para caberem dois pés juntinhos a rezar. Em pequena o mundo acontecia-me muito pela janela. Hoje em dia fico pouco em casa, por isso acontece-me menos.
É pena.
Com o tempo as janelas mirraram, e olhar através delas passou a ser óbvio, frequente, comum e até inevitável. Como tudo o que se torna fácil, também olhar pela janela se tornou aborrecido, ou pelo menos, menos interessante.
É pena.
Olhar pela janela já foi de tudo para mim, desde um enorme entusiasmo, à fuga possível entre paredes. Hoje não é quase nada, apenas porque deixei de as ver, ou melhor, deixei de ver o que se passa através delas.
Quando eu era miúda, os meus pais mudaram-se para um subúrbio chato que já não era campo, mas ainda não era cidade. Como qualquer subúrbio recente, também naquele as pessoas ainda não tinham tido tempo de envelhecer, pelo que, vida de bairro era coisa que ali não havia. Em contrapartida, decorriam obras por todo lado, e entre os carros e camiões que por ali se passeavam atarefados, a levar cimento para dentro e lama para fora, havia um que me enchia as medidas e que baptizei de "carro pequenino".
(Que ingenuidade, bem sei)
O carro pequenino, era  um tractor cor-de-laranja, realmente pequenino, apenas com um lugar para o condutor e um enorme (dentro da sua pequenez, claro) depósito para entulho à frente. De cada vez que se avistava aquele brinquedo na rua, tocava a sirene lá em casa
- Olhóóóóóó caaaaaaaaaaarro "paquanino"...
Ninguém se interessava muito por aquele assunto. Às vezes, com sorte, o pai ou a mãe (ou a avó, antes de ficar demasiado fraquinha) agarravam-me pela cintura e ajudavam-me no exercício hercúleo de me pendurar no parapeito, enquanto
- Olhóóóóóó caaaaaaaaaaarro "paquanino"...
Questiono-me frequentemente sobre o motivo daquele entusiasmo todo, e não chego a conclusão nenhuma.
Desta vez não é pena, é só assim.
O coração saltava pela boca e o corpo corria desalmadamente casa fora, à procura da janela onde a cada minuto, o carro "paquanino" cabia melhor. O coração só esmorecia, quando deixavam de existir janelas que o enquadrassem. Nesse momento, soltava as mãos doridas do parapeito, deixava o corpo escorregar parede abaixo até se enrolar num montinho de gente, e desejava ter uma casa de vidro, ou mais dez centímetros, ou sete bancos pequeninos empilhados, ou uma avó fortezinha,
(Nunca desejei ir para a rua atrás dele. Porque será? Se calhar por que sabia impossível o desejo) 
ou um carro "paquanino" só para mim.
(Ter um carro "paquanino" só para mim também era um desejo impossível e ainda assim eu desejava-o.)
(E assim de repente fiquei sem argumento)
(E quem disse que eu queria argumentar?)
Daquelas janelas não se viam só carros "paquaninos".
Daquelas janelas também se conseguia ver, felizmente, a avó a descer a rua com um saco carregado com vinte e oito carcaças, dezanove pãezinhos de lenha, nove vianinhas e ainda um pão-de-deus dos grandes para o lanche. Eu, a adivinhar enervação, corria rapidamente a avisar o pai, para dar tempo que a irritação do exagero gritante lhe passasse, antes da avó chegar feliz com as suas sacadas de trigo. A partir de certa idade deixa de fazer sentido contrariar coisas sem importância, e eu orgulho-me de ter contribuído para que ela morresse feliz, a comprar quilos de pão que ninguém comia, sem nunca se dar conta que aquilo era um tremendo disparate. 
Do carro paquanino, às vinte e oito carcaças da avó, passando pela carrinha do colégio que chegava vezes demais, muita coisa se passou através daquelas janelas, nos tempos em que só lhes chegava de bicos dos pés. Agora que não preciso de me pendurar no parapeito, a vida através das janelas cessou de me interessar. Por isso digo:
- As janelas deviam crescer connosco e deviam existir bancos pequeninos com tampos de corda por todo o lado.

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