quinta-feira, 24 de junho de 2010

O rio dos meu avós














Cresci a acreditar que os meus avós tinham um rio.
E se calhar têm, ou tiveram.
Tivemos sim.
Tivemos um daqueles rios de verdade, afundado no meio da vegetação. Um daqueles rios onde se chega primeiro com os ouvidos. Um daqueles rios que se sabe que está lá, porque se consegue ouvir antes de se deixar ver. Um daqueles rios que tem tudo, até um moinho.
E nós tivemos isso tudo.
O rio limita a propriedade a Este (ou Oeste, ou Norte, ou outra coisa qualquer). Na outra margem, uma escarpa a pique, cheia de mato verde e macieiras de maçãs pequenas, vermelhas e riscadinhas por fora e de um branco alvo e acre por dentro.
No rio boiavam frequentemente bonecas de plástico decapitadas. Arrancar-lhes a cabeça para deixar sair a água era fácil, era só puxar, mas pôr tudo de volta já requeria mais perícia e nem sempre havia uma adulto por perto para repor a ordem das coisas. Assim, era frequente ver cabeças de plástico, com olhos vidrados, bater insistentemente na margem de pedra, ao sabor da leve ondulação provocada pela costura dos bichos.
Os bichos eram os alfaiates, que desenhavam círculos perfeitos e saltitantes na superfície lisa da água. Deixava-me ficar ali horas, com água pela cintura a olhar para eles, a fugir deles para dizer a verdade, mas a fugir com jeitinho para não perturbar o espelho de água. Eram rápidos os sacanas. literalmente a costurar a água. Que desperdício, pensava eu. Dou um mergulho e descoso isso tudo num instante.
Que é feito dos alfaiates? Nunca mais vi nenhum. Cansaram-se provavelmente.
E que é feito das câmaras de ar a servir de bóia? Ou das peneiras que íamos roubar ao moinho do avô e que usávamos para apanhar peixinhos minúsculos e prateados?
Braços no ar a erguer a peneira ao nível dos olhos, a escorrer água:
- Vês mana, cacei três. Ganhei.
E num repente, a peneira outra vez dentro de água, para não deixar morrer os peixes.
A relação entre o rio e o moinho ia muito para além da mais óbvia e utilitária, em que o primeiro faz funcionar o segundo. Andávamos sempre cá e lá a levar água para dentro do moinho e farinha para o rio.
Um dia levei essa relação ao extremo. Passei uma tarde inteira escada acima, escada abaixo a alternar banhos de rio com banhos de farinha, sem parar. A tarde inteira que é como quem diz, até ser apanhada em flagrante. Fui interceptada em pleno vôo, de mão no nariz e pestanas coladas com pasta de farinha, prestes a aterrar pela vigésima vez, na sala do trigo já moído e pronto a ser ensacado para vender. Ainda aterrei... Já não havia como não aterrar.
Fui corrida à chinelada até casa.
Cada palmada, cada nuvem de farinha.
Uma breve paragem no rio para um mergulho de limpeza e depois... o resto da tarde de castigo, confinada ao minúsculo quarto de visitas. Para me entreter, valeram-me as gavetas cheias de jogos de lençóis e atoalhados pirosos, de qualidade duvidosa, comprados no mercado e ainda nos plásticos. Tudo pronto a estrear quando o padre fosse lá a casa nas festas.
Os castigos sucederam-se e com eles os anos. O rio continua lá e continua a moer que eu sei, mas descascaram-lhe as margens para construir coisas.
E agora vê-se antes de se ouvir.
E agora já não há miúdos com as lágrimas nos olhos por culpa do amargo doce das maçãs riscadinhas.
E agora já nem as cabeças das bonecas lá querem nadar.
E agora as câmaras de ar do velho camião, acumulam-se inúteis a um canto.
E se calhar os alfaiates não se cansaram. Fugiram.
E agora está tudo descosido.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tudo descosido... Lindo! :)
MR